Usos de Drogas: Representações Sociais dos Profissionais de Saúde Mental de um CAPS AD do Nordeste do Brasil

Drug Uses: Social Representations of Mental Health Professionals of a CAPS AD in Brazil’s Northeast

Usos de Drogas: Representaciones Sociales de Profesionales de la Salud Mental de CAPS AD en el Noreste de Brasil

Janderson Carneiro de Oliveira1

Luci Mara Bertoni

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

Resumo

Neste artigo, analisamos as representações sociais que os profissionais de saúde mental têm acerca dos usos de substâncias psicoativas. Para tanto, foram realizadas entrevistas com os profissionais de saúde de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPS AD), sendo os dados analisados com base na Análise de Conteúdo. Dessas análises, emergiram três categorias reflexivas: a) “Drogas: um olhar dos profissionais do CAPS AD”; b) “Legalização versus criminalização das drogas: o que os profissionais de saúde mental têm a dizer?”; c) “Modelos de tratamento: Redução de Danos versus abstinência”. Os profissionais revelaram dificuldades em trabalhar com a abordagem da Redução de Danos e não apresentam uma posição consolidada a respeito da legalização e criminalização das drogas. Apesar das limitações, este estudo serve como um objeto de reflexão, tendo em vista que propõe uma reorientação das práticas assistenciais em saúde mental.

Palavras-chave: representações sociais, uso de drogas, profissionais de saúde, saúde mental, CAPS AD

Abstract

In this article, we analyze the social representations of mental health professionals about the use of psychoactive substances. Interviews were conducted with health professionals from a Psychosocial Care Center – alcohol and drugs (CAPS AD) and data were analyzed based on Content Analysis. From the analysis, three categories emerged: a) “Drugs: a look from CAPS AD professionals”; b) “Legalization versus criminalization of drugs: what do mental health professionals have to say?”; c) “Treatment models: Harm Reduction versus abstinence”. Professionals have found it difficult to work with the Harm Reduction approach, and do not have a consolidated position on drug legalization and criminalization. Despite the limitations, let this study serve as an object of reflection, in view of a reorientation of our mental health care practices.

Keywords: social representations, use of drugs, health professionals, mental health, CAPS AD

Resumen

En este artículo, analizamos las representaciones sociales de los profesionales de la salud mental sobre el uso de sustancias psicoactivas. Se realizaron entrevistas con profesionales de la salud de un Centro de Atención Psicosocial Alcohol y Drogas (CAPS AD) y los datos se analizaron en función del Análisis de Contenido. Del análisis, surgieron tres categorías: a) “Drogas: una mirada de los profesionales de CAPS AD”; b) “Legalización versus criminalización de drogas: ¿qué tienen que decir los profesionales de la salud mental?”; c) “Modelos de tratamiento: Reducción de Daños versus abstinencia”. A los profesionales les ha resultado difícil trabajar con el enfoque de reducción de daños y no tienen una posición consolidada sobre la legalización y criminalización de las drogas. A pesar de las limitaciones, dejemos que este estudio sirva como objeto de reflexión, en vista de una reorientación de nuestras prácticas de atención de salud mental.

Palabras clave: representaciones sociales, uso de drogas, profesionales de la salud, salud mental, CAPS AD

Introdução

Os diferentes modelos de atenção à saúde, práticas educativas e terapêuticas destinados ao cuidado dos usuários de drogas, tanto lícitas quanto ilícitas, estão vinculados a duas principais abordagens, a saber: o paradigma do proibicionismo, que se materializa essencialmente por práticas de abstinência; e a estratégia de cuidado pautada na Redução de Danos (RD), caracterizada por evidenciar a integralidade do sujeito e propor condições de uso menos nocivas às pessoas que desejam continuar ou mesmo que não conseguem parar com o uso abusivo de substâncias psicoativas (Alves, 2009).

A política proibitiva se configura como uma forma verticalizada de lidar com a problemática do uso e abuso de substâncias psicoativas, assumindo um discurso de guerra às drogas e apresentando a abstinência como único e principal modelo para se abordar a questão do uso de substâncias psicoativas. Por sua vez, a política de RD consiste em uma estratégia que visa minimizar os possíveis danos decorrentes do uso e abuso de drogas mediante uma articulação intersetorial, tendo em vista a reconquista da cidadania e o desenvolvimento de ações promotoras dos direitos humanos (Boarini & Machado, 2013).

Convém apontar que as políticas públicas podem contribuir para a reprodução do modelo biomédico do cuidado em saúde mental, caracterizado por uma abordagem individualista, curativista e hospitalocêntrica, ou para potencializar modelos integrais nas práticas educativas e terapêuticas na área de álcool e outras drogas (Alves, 2009). Além disso, os profissionais de saúde necessitam de uma formação acadêmica capaz de permitir a elaboração de um pensamento crítico-reflexivo, de modo a não reforçar um discurso estigmatizante acerca dos usos de substâncias psicoativas nas práticas voltadas para a prevenção e o tratamento dos usuários de álcool e outras drogas, nem se deixar contaminar, como afirma Cerqueira (2013, p. 321), por “um imaginário social perverso reproduzindo o que a mídia e os veículos de comunicação transmitem”, abordando a problemática das drogas sob um viés aterrorizador, permeado por elementos que compõem nossas teorizações e representações sociais.

O termo “representações sociais” foi inserido no campo disciplinar da Psicologia Social, na segunda metade do século XX, pelo psicólogo romeno naturalizado francês Serge Moscovici (1925-2014), quando ele se preocupou, no doutorado, em analisar de qual maneira os cidadãos parisienses se apropriavam dos conceitos da psicanálise, o que resultou na produção do texto “La Psychanalyse, Son Image et Son Public”, publicada em 1961, com tradução parcial, em português, em 1975 (Guareschi, 2012), sendo que somente em 2012 foi publicada uma tradução integral, intitulada “Psicanálise, Sua Imagem e Seu Público”.

De acordo com Moscovici (2000/2015), as representações sociais são concebidas como um produto de origem coletiva, e, uma vez estabelecidas socialmente, apropriam-se de uma dada autonomia, o que as torna capazes de transitarem com fluidez na vida grupal, de modo a se atraírem e se repelirem, em um intenso movimento, propiciando que algumas representações morram para dar lugar a outras, e isso evidencia o caráter dinâmico das representações sociais. Nesse sentido, Duveen (2015) considera que o conteúdo representacional advém dos processos de interação e comunicação, demarcando um delineamento de natureza idiossincrática, bem como um painel de controle que funciona sob a égide de um necessário equilíbrio entre esses dois processos sociais.

Para tanto, Moscovici (2000/2015) explicita que as representações sociais apresentam duas principais funções: 1) a primeira consiste em uma convencionalização dos fenômenos sociais que contemplam objetos e acontecimentos reveladores de um denso conteúdo representacional, unificando-os em uma dada categoria que permite ser partilhada por um grupo social, haja vista que “nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhes são impostos por suas representações, linguagem ou cultura” (Moscovici, 2000/2015, p. 35); 2) a segunda função das representações sociais estabelecida por esse psicólogo social constitui o caráter prescritivo com que tais representações se revestem, denotando-as uma força coercitiva, se considerarmos que “elas se impõem sobre nós com uma força irresistível” (Moscovici, 2000/2015, p. 36).

Além disso, Moscovici (2000/2015) argumenta que as representações sociais são criadas a partir de dois mecanismos: a) ancoragem, a qual se fundamenta em um processo que transforma algo estranho para nós em um objeto do nosso universo particular de conhecimento, conferindo nome a esse objeto; e b) objetivação, que, para esse autor, consiste em unir a ideia de algo não familiar com a nossa realidade, ou seja, “é reproduzir um conceito em uma imagem” (Moscovici, 2000/2015, p. 71-72).

Em relação ao processo de construção do objeto de pesquisa em representações sociais, Sá (1998) argumenta que aqueles que pretendem trabalhar com a teoria proposta por Moscovici (2000/2015) não podem se eximir de apresentar dois princípios em seus objetos de pesquisa, que são a relevância cultural e espessura social, o que não é difícil de percebermos quando abordamos, por exemplo, sobre os múltiplos usos de drogas em nossa sociedade. Assim sendo, o objetivo central deste artigo consiste em analisar as representações sociais que os profissionais de saúde de um Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Outras Drogas (CAPS AD) têm acerca dos usos de substâncias psicoativas.

O presente artigo justifica-se cientificamente, tendo em vista que as discussões aqui apresentadas podem contribuir para a elaboração de outros estudos e pesquisas preocupadas em convergir os temas representações sociais e usos/abusos de substâncias psicoativas. Além disso, os resultados da pesquisa poderão subsidiar dados para gestores e profissionais de saúde aperfeiçoarem políticas públicas municipais e refletirem sobre as práticas desenvolvidas no CAPS AD, o que pode configurar-se como uma justificativa social deste estudo.

Metodologia

O itinerário metodológico traçado neste estudo está fundamentado em um paradigma de pesquisa de natureza qualitativa. A pesquisa foi realizada em uma unidade do CAPS AD de um município que compõe a macrorregião de saúde do Sudoeste do estado da Bahia, em consonância com o Plano Diretor de Regionalização (PDR) desse estado (Secretaria Estadual de Saúde da Bahia, 2007). O CAPS AD consiste em um dispositivo de saúde mental que atende a população usuária de substâncias psicoativas, tendo em vista um cuidado psicossocial, territorial e humanizado, que o estabelece como um serviço de referência nessa área.

Fizeram parte desta pesquisa 6 (seis) profissionais do CAPS AD. Os critérios de inclusão amostral utilizados para compor a população participante foram: 1) apresentar idade maior ou igual a 18 anos e 2) ter trabalhado no CAPS AD por um período mínimo de 3 (três) meses, considerando que, com esse tempo, os profissionais podem falar com mais propriedade das características desse dispositivo de saúde.

A técnica de coleta de dados utilizada foi a realização de entrevistas semiestruturadas ou semiabertas, no período de 17 de outubro a 13 de dezembro de 2016. Essa modalidade de entrevista possibilitou que os profissionais de saúde contemplassem temas concernentes aos usos e abusos de substâncias psicoativas, bem como sobre os modelos de atenção à saúde e da produção do cuidado aos usuários de álcool e outras drogas. Após a transcrição das entrevistas, os dados foram analisados com base na chave teórica-metodológica da Análise de Conteúdo, do tipo temática, de Laurence Bardin (1977).

Na primeira etapa da análise, realizamos uma pré-exploração dos dados, por meio de leituras flutuantes do material coletado; em seguida, na segunda etapa, definimos, após uma releitura atenta dos dados empíricos, as unidades de análise, caracterizando-se como um processo de unitarização; na terceira etapa, as categorias foram definidas segundo os critérios de significados, dando origem às categorias temáticas; na quarta etapa, apresentamos sinteticamente os significados que emergiram deste trabalho, justificando os elementos trazidos nos resultados com algumas citações do corpus da pesquisa; por fim, na quinta etapa, realizamos a interpretação dos resultados (Bardin, 1977).

Cabe salientar que este estudo está de acordo com Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que regulamenta pesquisas com seres humanos. Antes de ir a campo, foi elaborado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em conformidade com a referida Resolução. Desse modo, o projeto que originou este artigo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), sendo aprovado com o número de parecer 1.770.134.

Resultados e Discussões

Convém apresentarmos os resultados e as discussões que emergiram do percurso metodológico supracitado. Assim sendo, o processo de categorização possibilitado pela Análise de Conteúdo evidenciou a emergência de três categorias: a) “Drogas: um olhar dos profissionais do CAPS AD”, apresentando o que os profissionais de saúde mental pensam sobre as substâncias psicoativas; b) “Legalização versus criminalização das drogas: o que os profissionais de saúde mental têm a dizer?” − nessa categoria, apresentamos as representações sociais dos profissionais sobre a legalização/criminalização das drogas; e, por fim, c) “Modelos de tratamento: Redução de Danos versus abstinência”, evidenciando de qual maneira as representações sociais desses profissionais acerca das substâncias psicoativas refletem nos modelos de tratamento presentes no CAPS AD.

Drogas: Um Olhar dos Profissionais do CAPS AD

Os profissionais concebem as drogas mediante um conceito já solidificado na literatura científica (Lapate, 2001; Fiore, 2013; Organização Mundial de Saúde, 2006; Karam, 2017), que define as substâncias psicoativas como aquelas que afetam o sistema nervoso central, podendo provocar alterações no estado de consciência, bem como nos aspectos comportamentais, de modo que potencializam o desenvolvimento de uma dependência. No entanto, emergiu, também, nas falas de alguns profissionais, uma concepção que revela um discurso acerca das drogas e de seus múltiplos usos, em que se evidenciam outros elementos socialmente construídos sobre as substâncias psicoativas.

Os profissionais entrevistados desconsideram o contexto sociocultural em que as drogas são consumidas e sustentam um conceito técnico-científico sobre as drogas, definindo-as apenas por uma perspectiva médico-farmacológica ao enfatizarem que as substâncias provocam mudanças biológicas, psíquicas e comportamentais, com possíveis riscos de dependência. O próprio conceito parte de uma realidade global, ancorando-se em uma literatura médica, o que se justifica quando percebemos uma soberania desse conceito em documentos produzidos pela Organização Mundial da Saúde (Organização Mundial de Saúde, 2006). Vejamos alguns relatos:

Rapaz, assim, o que vem à cabeça hoje sobre a droga é mais o conceito, vamos dizer assim, mais teórico mesmo da coisa, né?! Aquele conceito-chave, que a gente fala: qualquer substância capaz de alterar a função de organismos vivos, né. (P4).

Eu concordo com aquele conceito que diz que é toda substância que pode interferir no comportamento de alguém, né. Seja medicação, seja droga lícita ou ilícita, substâncias encontradas em algum alimento também, mas que age no sistema nervoso alterando comportamento, formas de pensar, formas de agir e que pode causar uma dependência. (P6).

Em relação a esse conceito previamente elaborado pelos profissionais de saúde, Olmo (1990) elucida que se trata de um conceito encontrado em diversos textos de especialistas da área, mas sem maiores aprofundamentos teóricos. Assim, embora essa definição não se configure enquanto tal, de maneira satisfatória e convincente, revela-se a partir de uma realidade universal e descontextualizada. Isso, indubitavelmente, ratifica a ideia de que se trata de uma simples conceituação, uma vez que não define muito bem, colocando o entendimento de substâncias psicoativas em uma nítida imprecisão, o que contribui, de certa forma, para obnubilar um real significado que emerge das drogas.

Em uma perspectiva moscoviciana, as classificações, imagens e descrições, até mesmo as reconhecidas por seu caráter científico, que transitam constantemente em nossas relações sociais, materializam-se devido a um conhecimento elaborado anteriormente. Esse conhecimento, por conseguinte, ancora-se em uma memória compartilhada no imaginário coletivo e no potencial reprodutivo que se encontra na linguagem, desatando os nós dos conhecimentos do tempo presente (Moscovici, 2000/2015).

Nessa acepção, outro elemento significativo presente no sistema representacional dos profissionais entrevistados reflete essa característica imprecisa de uma definição “consagrada” a respeito das drogas, deixando evidente a dimensão moral que este objeto consensualmente está acometido, o que faz recair sobre ele as dificuldades de natureza socioeconômica e ordem política, que, em vez de serem problematizadas macrossocialmente, são apenas justificadas sob uma análise moral, chegando até mesmo a associar a dependência química com o termo pejorativo denominado “vício”, conforme apresentado nos relatos abaixo:

É toda e qualquer substância que a gente traz pra vida da gente que gera dependência. Então pra mim tudo isso é droga. O que gera um vício, uma dependência . . . . Então assim o mundo das drogas . . . a gente vê muito pessoas sem expectativas, a gente vê muitas pessoas sem objetivos de vida, né, então geralmente essas pessoas elas tão mais propícias, ou seja, não têm uma . . . muitas das vezes as pessoas elas não têm uma rotina, elas não têm uma visão do que elas querem para o futuro, então assim, elas acabam se fechando mesmo, né, e muitas vezes isso aí faz parte, a rotina delas é essa. Então é essa a questão de o mundo das drogas, então são na maioria das vezes as pessoas, é mais por questão de cultura mesmo, de uma expectativa de vida, da falta de expectativa de vida e tal. Então é, pra mim é isso. (P1).

É. Eu já tolero mais o uso, até das ilegais, consideradas ilegais, principalmente da maconha. Já o crack e a cocaína eu não acho que sejam drogas que dá pra ficar só no uso, que nada vai acontecer de ruim, né, de dano. Não, sinceramente, não acho. A maconha eu acho que dá pra ainda ter um controle melhor de si, né, você com o uso da substância. Eu acho que as outras já têm uma interferência . . . muito mais complexas do que . . . sei lá, interfere na vida, na questão financeira, não é? . . . . Não sei. Talvez seja um engano meu. Mas, eu acho que tem. Não é a mesma coisa, não. (P3).

Alves (2015), em sua pesquisa sobre o contexto social dos usuários de crack, envolvendo suas características e significados a respeito dos usos dessa substância, aponta a existência de um pânico moral sobre o crack e os “craqueiros”. Nas falas dos entrevistados para esta pesquisa, ilustra-se uma dose desse conteúdo moral, quando percebemos uma tolerância para outras drogas, incluindo entre elas a maconha, mas o crack e a cocaína são definitivamente intoleráveis, insuportáveis, como se o uso em si desencadeasse uma desgraça tamanha capaz de desvirtualizar todas as qualidades e potencialidades dos usuários.

Diante disso, não podemos nos eximir, de modo algum, em reconhecer que há uma função coercitiva que elabora esse pânico moral a respeito dos usos do crack e da cocaína, que pode, sim, existir em relação a outras drogas, no entanto, de forma bem mais suave. Por compormos historicamente uma determinada sociedade e por vivermos em um determinado contexto temporal, somos impelidos coercitivamente a pensar e representar os objetos sociais da nossa era, de modo a reproduzirmos padrões de pensamentos consensuais, o que Moscovici (1988/2011, p. 46) explica com as seguintes palavras: “vocês reconhecem o fato social na coerção que se exerce de fora sobre a nossa vida e marca nossos gestos, nossos pensamentos e nossos sentimentos. Sob muitos aspectos, ela se assemelha a uma outra coerção que sofremos: a do mundo físico”.

Legalização Versus Criminalização das Drogas: O que os Profissionais de Saúde Mental têm a Dizer?

As entrevistas evidenciaram que os profissionais do CAPS AD não têm uma posição sedimentada sobre a questão da legalização/criminalização das substâncias psicoativas. No entanto, esses profissionais abordam que o contexto social brasileiro não está suficientemente maduro, no sentido de a população não estar preparada para acolher e vivenciar a legalização das substâncias psicoativas (hoje, ilícitas), ao mesmo tempo que reconhecem a necessidade de repensar uma nova política de drogas.

Para Boiteux (2017), há vários modelos de controle de substâncias psicoativas, perpassando do modelo proibicionista ao legalizador. O primeiro modelo busca uma interdição e criminalização das drogas, incluindo desde a sua produção, distribuição, posse e uso, justificando que somente por meio desse viés o uso de drogas e suas possíveis consequências poderão ser evitados; ao passo que o modelo legalizador, contrariando o modelo anterior, propõe uma nova abordagem de se perceber o fenômeno do uso abusivo de substâncias psicoativas. Esse segundo modelo considera que apenas a descriminalização dos usuários não responde satisfatoriamente bem à questão que se alinhavou a respeito do uso de drogas, e ele se sistematiza em quatro tipos: a) liberação total das drogas; b) legalização liberal, caracterizada pelo controle do mercado, mas que pode dar margem para alguns controles por parte do estado; c) legalização estatizante, em que há um controle total pelo Estado; e d) legalização controlada, que se configura como um modelo de natureza intermediária. Dessa forma, nós nos preocupamos em deixar explícito que, quando tratamos de legalização, não nos referimos a uma única modalidade específica do modelo legalizador, mas sim como uma proposta alternativa para pensamos um novo modo de abordagem às drogas, que diverge da lógica repressiva do proibicionismo clássico.

Embora essa questão não possa ser discutida sumariamente, não podemos nos eximir em pensar que tanto o fato de decidir sobre uma determinada questão quanto o fato de não tomar uma posição sempre partem de um conjunto de crenças, convicções e pensamentos que formam nosso sistema representacional e que, uma vez ancorados em argumentos consensualmente cristalizados, objetivam-se em nossas práticas cotidianas, materializando-se como elementos consubstanciados, a partir de produções de memórias produzidas coletivamente (Oliveira & Bertoni, 2019).

Para Moscovici (2000/2015), somos constantemente influenciados por ideias, imagens ou palavras, seja por mecanismos de ordem individual ou de natureza coletiva, que penetram a formação do nosso pensamento social. Esse autor argumenta que esse movimento ocorre por meio de duas funções que caracterizam as representações sociais: a) a convencionalização, quando as representações convencionalizam os objetos, pessoas e acontecimentos, alocando-os em uma categoria passível de ser compartilhada socialmente por um grupo de pessoas; e b) a prescrição, caracterizada por uma força prescritiva que se impõe sobre nós, capaz de decretar o que deve ser pensado sobre um determinado objeto social.

Diante disso, podemos explicitar também sobre a necessidade de repensar os processos de formação profissional, principalmente em uma perspectiva de formação continuada a respeito das substâncias psicoativas e suas problemáticas. Nesse sentido, alguns profissionais apontam:

Bom. Eu ainda não tenho opinião formada sobre isso. . . . Só que eu não sei se o Brasil está preparado pra isso, pra legalização das drogas, né, porque . . . a gente tem experiências em outros países, mas olha o tamanho dos outros países e olha o tamanho do nosso. Então, assim: eu não sei. (P5).

Não sei, ainda. Eu ainda não sei. É uma coisa que eu penso, mas ainda não sei se liberar assim, né? Talvez eu ainda tenha esse pensamento de senso comum, mas eu não acho que uma pessoa que faz uso, é uma coisa assim, não vai voltar pra sua rotina. (P3).

O proibicionismo tá ruim e a legalização eu tenho algumas ressalvas ainda, na verdade eu estou em cima do muro, bem em cima do muro ainda com essa questão. Não sei se é um certo conservadorismo, assim, de . . ., mas estou um pouco ainda em cima do muro, assim, conceder a legalização da droga talvez seja algo até meu mesmo assim, talvez eu também não tenha um embasamento porque eu não sou a favor da legalização, talvez seja até interessante mesmo. (P4).

Acselrad (2017) reconhece a necessidade de se buscar cada vez mais uma formação alinhada com os direitos humanos, tanto para os profissionais do campo da saúde quanto para os profissionais da educação, uma formação que se contraponha àquela formação predominante, ou seja, contraponha-se àquela alimentada pelo modelo proibicionista. Não é difícil perceber que, apesar de algumas políticas alternativas a essa abordagem predominante, tal como a RD, existem vestígios de uma formação ainda verticalizadora ao se tratar das substâncias psicoativas, que implica uma verticalização de práticas sociais de natureza educativa e preventiva, sobretudo quando alguns profissionais revelaram uma postura de possível conservadorismo, que seja talvez condicionada por pressupostos do senso comum.

Nesse sentido, a ilegalidade das drogas, legitimada por esse modelo de formação predominante, propicia condições de um péssimo uso das substâncias, tanto das drogas em si, por serem de má qualidade, sem nenhum controle nesse sentido, quanto das próprias condições de uso, que se configuram como fator de risco que potencializa agravos à saúde dos usuários de substâncias psicoativas. A proibição, também, pode provocar um determinado grau de isolamento por parte dos jovens e adolescentes usuários em relação aos grupos que podem fornecer informações e esclarecimentos, dificultando relações mais próximas entre os usuários e os educadores, por exemplo (Karam, 2017).

Os profissionais do CAPS AD, ainda que tenham evidenciado uma posição não muito bem delineada a respeito da legalização/criminalização das drogas, sinalizaram um discurso que não diverge daquele que está consensualmente condensado nas relações do senso comum, que consiste em uma suposta “imaturidade” dos brasileiros em relação à legalização das substâncias psicoativas ilícitas, ou melhor, que a sociedade brasileira deve se preparar para absorver a legalização das drogas que atualmente são proibidas.

Só que eu não sei se o Brasil está preparado pra isso, pra legalização das drogas. (P5).

Eu acho que o Brasil ele ainda é muito imaturo, ele ainda não tem, na minha concepção, com todos os meus valores e as minhas crenças e meu contexto, eu acho que ele ainda não tem maturidade suficiente para exercer a fiscalização que existe em outros países que legalizaram, onde você tem um controle maior desse uso que é permitido a uma certa parcela da sociedade, né, com fiscalização, a partir de x idade, x quantidade durante o mês. Eu não vejo o Brasil tendo esse tipo de maturidade dessa responsabilidade. (P2).

Eu tenho medo porque esse negócio da legalização em si, a gente vive em um país tão difícil, não sei se a gente tem maturidade para legalizar as coisas não, de uma maneira administrativa, política, econômica mesmo, não sei se o nosso país tem maturidade pra isso não. (P3).

De acordo com Acselrad (2017), o que ela denomina de uma formação de caráter dominante, ao se infiltrar e fundamentar toda uma legislação globalmente instituída, sustenta-se por meio de uma configuração bélica em praticamente todas as partes do mundo, ao passo que modelos alternativos e horizontalizados dificilmente são compreendidos e concebidos como vias de possibilidade de mudanças para se pensar um novo modelo que aborde esse problema intencionalmente produzido.

Nossos pensamentos e posicionamentos sobre os problemas que nos cercam perpassam pelas experiências pelas quais passamos previamente. Isso nos possibilita dizer que sempre recorremos às nossas memórias e, consequentemente, às nossas representações, que, uma vez solidificadas, não são facilmente manipuláveis e moldadas. Nossas memórias, das quais dependem nossas representações, condensam-se de tal modo que são capazes de condicionar e materializar nossas práticas (Moscovici, 2000/2015).

Os profissionais, apesar de afirmarem que não têm uma concepção formada sobre a legalização/criminalização das drogas, reconhecem a necessidade de uma mudança nos direcionamentos políticos no tocante à problemática das drogas e chegam até mesmo a sinalizar que a legalização pode se desenhar como um caminho viável para repensar a configuração da política de drogas.

Acho que alguma coisa tem que ser mudado nele, do jeito que tá . . . se for a legalização eu acho pode ser válido uma tentativa, mas eu não sou da linha assim totalmente otimista: vamos legalizar, vai resolver, que os traficantes vão perder espaço, que vai ficar tudo . . . eu não sou tão otimista assim não . . . . Então, eu acho que já tá fadado assim, já mostrou, tem um tempo já isso aí e não tá dando resultado, pelo contrário a coisa tá é piorando, né, assim tá matando mais, tá morrendo mais e não tá tendo, vamos dizer assim, respaldo para manter. Não tem argumento hoje que você usa pra manter essa política aí, né. (P4).

Não. Acho que sim, acho que daria pra ser legalizado, né. Claro que com toda uma normatização, né, referente a controle de qualidade, de quantidade, idade, esses critérios assim. Algo que tenha um regimento, um certo controle, uma padronização. (P6).

Diante disso, os profissionais de saúde apresentaram a necessidade de se redesenhar o modelo de abordagem às drogas, bem como as questões concernentes aos seus usos/abusos, tendo em vista a emergência de um paradigma alternativo que invista em práticas tolerantes e antiproibicionistas. Nesse sentido, Karam (2017, p. 218) argumenta que “sob qualquer ângulo a proibição é uma política falida”, sob a justificativa de que quando uma política revela-se falaciosa por tanto tempo, não é plausível que se continue insistindo nessa política, ou seja, não podemos esperar nenhuma mudança, se repetimos os mesmos e velhos erros, conforme a autora.

Modelos de Tratamento: Redução de Danos Versus Abstinência

As práticas alinhadas à política de RD foram apresentadas como necessárias, justificando uma mudança na assistência à saúde no âmbito do cuidado aos usuários de álcool e outras drogas, mas os profissionais revelaram dificuldades do ponto de vista prático, tanto para eles mesmos quanto para os usuários. Esses últimos, de acordo com os profissionais, geralmente chegam ao serviço com objetivo de parar definitivamente com o uso de substância psicoativa, e não para reduzir os danos, o que também condiciona a prática profissional.

É sabido que a abstinência total ainda se configura como o principal modelo de assistência para usuários dependentes de substâncias psicoativas em dispositivos de saúde ­mental, principalmente em estabelecimentos como as comunidades terapêuticas (CTs), em que algumas delas recentemente passaram a ser financiadas com recursos do SUS (Ministério da Saúde, 2011), sendo alvo de discussão no campo da saúde mental. No entanto, esse modelo de abordagem só faz sentido quando parte da própria pessoa que faz uso das substâncias, um desejo explícito em interromper definitivamente com o uso (Acselrad, 2017), o que comumente ocorre com os sujeitos que buscam assistência do cuidado no CAPS AD, mesmo que esse serviço oferte uma alternativa de cuidado, que é a RD, conforme relato dos profissionais.

Mas, para todos aqueles que perceberam: “ó, pra mim, reduzir não dá. Pra mim, eu tenho que ficar abstinente”. E tem algumas substâncias que elas são muito . . . a dependência delas é muito severa, que fica difícil a pessoa reduzir. É assim: ou abstinência ou retorno ao uso. Então, pra essas pessoas, a abstinência. O sucesso, entre aspas, do tratamento, vai ser se manter abstinente. E pra outras que não têm o intuito de parar com o uso total agora, se a gente conseguiu reduzir dano, eu acho que já foi benéfico e já foi válido. (P2).

Então, tudo isso faz parte, né, numa questão de Redução de Danos, e aí eu acho interessante, mas na maioria das vezes isso não é uma . . . os usuários que vêm eles não vêm querendo reduzir danos, assim, ou seja, reduzir danos no sentido de diminuir quantidade de uso e tal. A maioria dos usuários eles já vêm: “Não, eu quero abstinência. Eu quero parar”. Então, mas na maioria das vezes o serviço trabalha com o que os usuários querem e ele chega querendo abstinência. (P1).

Dessa forma, a RD, da mesma maneira que a abstinência, não pode se universalizar colocando-se como um único modelo de tratamento para todas pessoas que fazem uso abusivo de drogas. Há indivíduos que respondem bem ao processo terapêutico sustentado pelo paradigma da RD, enquanto há outros que não. Para a inserção nos dispositivos de saúde mental, como os CAPS, a oferta do cuidado por meio da RD não exige unilateralmente a presença obrigatória das práticas de abstinência, mas elas podem vir a ser uma consequência dessa prática humanista e tolerante. No entanto, não se pode desconsiderar também que optar pela abstinência total pode ser um desdobramento de um aspecto moral, cuja intenção é buscar a “completa limpeza” do corpo, mesmo que esse itinerário terapêutico trilhado por algumas pessoas seja muito mais doloroso e, quiçá, ineficaz. Isso, obviamente, pode ser oriundo do conteúdo das nossas representações sociais, que, não raras vezes, estão ancoradas em preceitos religiosos e fundamentadas em uma perspectiva moralista, concebendo os princípios de RD não como práticas de cuidado, mas como alusão e incentivo ao uso de drogas.

Para Moscovici (2000/2015), quando não nos apropriamos dos conhecimentos científicos para analisarmos um determinado fenômeno, como o consumo de drogas e seus desdobramentos, por exemplo, corremos o risco de percebê-los de maneira uniforme e consensual, não se perguntando o que sustenta a objetivação dessas práticas sociais, e isso, de certo modo, contribui para um fortalecimento desse pensamento comum. É notório, então, que a proposta da RD não se materializa com evidente substancialidade nos dispositivos de saúde mental, justamente porque a representação social presente consiste naquela de que é por meio da abstinência que todos dependentes se “libertarão” das drogas, e não pela redução dos seus possíveis danos.

Os profissionais desse serviço de saúde reconheceram as potencialidades da política de RD destacando aspectos relevantes que emergem dessa estratégia de cuidado como uma alternativa às práticas hegemônicas de abstinência. Reduzir danos não pode, de modo algum, ser confundido como uma apologia ou incentivo ao uso abusivo de drogas, como pode ser consensualmente pensado pelos próprios usuários e até mesmo por alguns profissionais. Quando algumas pessoas decidem e desejam usar algumas substâncias, principalmente se elas estiverem em um quadro de dependência química, o fato de ofertar ou não alguns objetos para que eles façam um uso seguro das drogas não se configura como um fator que iniba ou estimule o uso.

Ela quer fazer uso, mas você colabora para redução do dano que esse uso vai fazer. Então o quê que é pior: é a pessoa pegar e fazer um cachimbo arcaico num pedaço de latinha, numa latinha ou num copo de água ou num pedaço de cano usado e compartilhar aquilo ali com geral, ou ela ter o seu cachimbo específico, único, individual? E aí ela não se submeter a uma doença, de que o uso, uma DST ou uma doença que uso compartilhado pode provocar isso. Então, o uso reduziu o dano? Reduziu. (P2).

Tem que existir, tem que ser difundida. Tem que ter muito diálogo com relação a isso. Abrir a cabeça de muitas instituições, que a Redução de Danos, ao contrário do que muitos pensam, não é incentivo a uso. “Ah, poxa, você vai lá . . .”, aquela conversa: “ . . . você vai dar cachimbo pro cara, você vai dar isso pro cara, você tá incentivando o cara usar e tal”. Ele vai usar, sem você dar nada. Ele vai usar e vai usar com o que for, com o que ele achar. Não é porque você tá dando uma coisinha ou outra aqui pra ajudar ele não pegar uma doença sexualmente transmissível, que vai fazer ele usar ou não usar a droga. Então, é válido demais. (P4).

A lógica da RD, consoante Vallim (2017), preocupa-se em reduzir os prejuízos provocados pelo uso abusivo-nocivo, tendo como foco principal o cuidado com a pessoa usuária de drogas, bem como o respeito do desejo manifestado por essa pessoa em fazer uso das substâncias, e jamais repreendê-la ou julgá-la por isso. Nesse sentido, Queiroz (2001), ao discutir sobre a RD, explicita que essa estratégia não se fundamenta meramente em uma questão ideológica, visto que é evidente que a RD configura-se como uma abordagem que, além de ser humanizada, tem um baixo custo financeiro, se comparada com outras abordagens convencionais.

Nessa direção, os profissionais do CAPS AD sinalizam que este serviço potencializa uma produção de cuidado integral, na medida em que os usuários que dele participam são acolhidos de forma empática e não punitiva, de modo a construir em configuração coletiva, por meio do trabalho em equipe e em conjunto com o usuário, um projeto terapêutico singular, de acordo com as possibilidades e necessidades do sujeito.

Então, aqui eu acho um espaço onde possibilita ele [o usuário] ainda ter voz ativa, ser participativo, ser respeitado, né, ser acolhido, não ter nenhum tipo de julgamento de questão moral, esses critérios do acolhimento, que a gente conhece, né. Aquela escuta não punitiva, que a gente fala. (P4).

Porque cada indivíduo . . . por isso se chama de singular. O tratamento, o PTS é um Projeto Terapêutico Singular. É de cada um. Então, eu procuro nos grupos que eu ­tra­balho, eu procuro fazer, trabalhar sempre a motivação. Mostrar pra eles o quanto eles têm potencial. Quando a gente quer fazer, a gente consegue. Por mais que a gente tenha muitas dificuldades. Talvez a gente não consiga e aí essa questão que a gente fala da Redução de Danos. (P1).

Para Paiva e Costa (2017), a análise da problemática do uso abusivo de drogas não pode se esquivar de contextualizar essa questão em uma perspectiva socioeconômica e de ordem política, possibilitando a emergência de seres sociais e politicamente ativos e, concomitantemente, conferindo-lhes autonomia em seu próprio processo de cuidado. Isso significa que os profissionais da saúde, ao trabalharem com redução dos danos, podem despertar nas pessoas que fazem uso de drogas potencialidades e a “capacidade de construírem projetos de vida com certo grau de liberdade, dignidade e autonomia” (Paiva & Costa, 2017, p. 58).

Embora os profissionais tenham afirmado a necessidade de uma estratégia de cuidado baseada na RD, eles reconheceram que têm dificuldades em trabalhar com essa estratégia, considerando que muitos usuários que procuram o serviço não têm intenção de reduzir o dano, mas sim de interromper bruscamente o uso de drogas, mesmo que o processo de abstinência desencadeie momentos dolorosos. Além disso, notamos uma dificuldade de natureza pragmática por parte dos profissionais de saúde em operacionalizar um cuidado sustentado por essa abordagem redutora de danos, o que pode ser ilustrado nas seguintes falas:

Aqui mesmo a gente tenta com algumas pessoas e até mesmo a gente só acredita na tentativa, né. Ela não é palpável. Ela não é visível, às vezes. Então ela é mais difícil da gente acreditar, da gente propor e da gente embarcar nisso junto. Mas é uma coisa nova que mexe com a gente bastante, a questão da Redução de Danos. (P3).

Porque às vezes a pessoa chega, a gente, por mais que a gente trabalhe pra redução de danos, a gente, na maioria das vezes, a gente quer que as pessoas parem de usar. (P5).

Possivelmente, as dificuldades encontradas pelos profissionais em trabalhar com a RD não apenas se materializam como consequências da demanda de usuários que desejam a abstinência como único e principal tratamento, mas também podem ser produtos de suas próprias referências e daquilo que eles representam como prática de cuidado, principalmente, em se tratando de uso abusivo de drogas. Nessa perspectiva, para Lima et al. (2017), há uma morosidade por parte de muitos profissionais em perceber que a RD foi incorporada, em 2011, como uma política do Ministério da Saúde, o que faz persistir uma representação de que a RD se configura como uma estratégia que propicie ou facilite o uso de drogas.

Diante disso, é perceptível nas falas dos profissionais a evidente necessidade de uma formação permanente sobre RD, tendo em vista uma melhor compreensão dessa prática de cuidado, o que pode implicar uma assistência de qualidade para aquelas pessoas que não respondem a um projeto terapêutico pautado na abstinência ou mesmo não desejam abandonar o uso de drogas. Esses profissionais podem também pensar em projetos terapêuticos que conciliem ambas as abordagens de cuidado, uma vez que as práticas de RD e de abstinência não se excluem, mas podem se complementar.

Acho que a saúde . . . se a gente tivesse capacitação mais contínua de recursos humanos pra coisas como essas de Redução de Danos, a gente fazer melhor, né, ou entender de outra forma. Uma coisa contínua. Então eu acho que são duas coisas que poderiam nos ajudar bem mais. Deixava a gente melhor. (P3).

Quem tá na saúde mental voltado a esse público que faz uso de álcool e outras drogas, até dentro desse público, a redução de danos ainda é algo que precisa ser muito estudado e muito debatido. (P2).

A formação acadêmica dos profissionais de saúde, no Brasil, ainda apresenta deficiências no que diz respeito à abordagem da temática das drogas, principalmente sob a ótica da RD e dos direitos humanos. A produção do cuidado em saúde não pode se sustentar, simplesmente, como consequências de procedimentos técnicos-assistenciais e desdenhar indispensáveis aspectos éticos, sociais e políticos, os quais já devem ser discutidos nas matrizes curriculares dos cursos de graduação da área da saúde. Isso, seguramente, possibilitará que os profissionais egressos desses cursos compreendam que a qualidade da assistência nesse campo de cuidado perpassa tanto por questões subjetivas como por ações objetivas, o que faz denotar a dinamicidade e diversidade desse campo de cuidado (Lima et al., 2017).

Conclusão

Neste artigo, objetivamos analisar as representações sociais que os profissionais de saúde têm sobre os usos de drogas e seus aspectos nas práticas assistenciais em saúde mental, evidenciando que esses profissionais revelaram dificuldades em trabalhar com a abordagem da RD e não apresentaram uma posição consolidada a respeito da legalização e criminalização das drogas, às vezes, ancorando-se em proposições do senso comum.

As categorias que emanaram do processo analítico desta pesquisa nos fizeram pensar o quanto a produção do cuidado em saúde mental pode estar condicionada por nossas representações sociais. Isso pode assumir, mesmo que involuntariamente, as condições e práticas que nos fazem correr o risco de nos aproximarmos ou mesmo de termos como consequências aspectos iatrogênicos que, certamente, poderão afetar todo um planejamento terapêutico e pedagógico de atenção à saúde mental, embasado pelos princípios de uma clínica psicossocial, essa que rejeita o discurso unilateral, hegemônico e verticalizado em sua configuração e concepção do cuidar.

Notamos, também, que os profissionais de saúde, por sua vez, apesar do conhecimento teórico sobre drogas, não estão livres de elementos cimentados coletivamente que estão presentes até mesmo nos conceitos tendenciosos e idelogicamente estruturados. Ao padronizar e estabelecer de modo universal uma única e rígida definição de um fenômeno complexo, como são as drogas, é inevitável não esbarrar em questões de ordem sociopolítica e sociocultural.

Outrossim, apesar das controvérsias e dos debates em torno da problemática da legalização/criminalização das drogas ilegais, os profissionais, ao optarem por um determinado grau de imparcialidade, deixaram margens para levantar questionamentos sobre onde pode estar ancorada essa decisão de não se posicionar diante de um problema tão pertinente para esses profissionais e como isso pode se objetivar no desenvolvimento das práticas assistenciais desenvolvidas nos dispositivos de saúde mental, que, juntamente ao sistema representacional dos usuários, convergem-se e concedem materialidade a um modo de fazer também rico de representações.

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Recebido em 07/11/2019

Última revisão em 28/12/2021

Aceite final em 21/02/2022

Sobre os autores:

Janderson Carneiro de Oliveira: Doutor e mestre em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Bolsista CAPES. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Política, Álcool e Drogas na UESB. E-mail: jancopsi@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3052-4345

Luci Mara Bertoni: Doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Docente do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Política, Álcool e Drogas na UESB. E-mail: profaluci@uesb.edu.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3100-1351


1 Endereço de contato: Caminho 19 A, n. 20, Espírito Santo (Urbis VI), Vitória da Conquista, BA. CEP: 45.037-380. E-mail: jancopsi@gmail.com

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v14i2.1181