Pesquisa Brasileira em Saúde: Análise do Ano de 1990

Brazilian Health Research: Analysis of the Year 1990

Investigación Brasileña en Salud: Análisis del Año 1990

Eliane Cadoná1

Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI)

Marlene Neves Strey

Universidade Feevale

Resumo

Neste artigo, colocamos em análise sentidos sobre saúde em produções científicas brasileiras, publicadas no ano de 1990. Tal cenário era marcado pela publicação das Leis Orgânicas da Saúde, cuja emergência se deu em um contexto neoliberal. As bases teóricas do estudo alicerçaram-se no Construcionismo Social. Foram recuperados da BVS Brasil 34 artigos, e a busca se deu por intermédio das palavras-chave “cuidado”, “cura”, “doença”, “política pública de saúde”, “política social”, “saúde” e “saúde pública”. Os dados coletados foram submetidos à Análise de Discurso, resultando na categoria “Importação do conhecimento e comparação entre realidades: o conceito de Brasil Colônia nos discursos da saúde”. Nela, evidenciamos que os discursos produzidos nos estudos carregavam a lógica de que o conhecimento importado, provindo dos chamados países industrializados, deveria ser a regra a ser seguida no Brasil e que a realidade impressa nesses cenários serviria como modelo e inspiração para o país.

Palavras-chave: saúde, doença, ciência, políticas públicas

Abstract

In this paper, we do an analysis of senses on health present in academic and scientific research publications in the year of 1990. At that time, the scenario was set by new laws called “Health Organic Laws” that came in to place in a neoliberal political context. The theoretical bases of those academic and scientific research were based on the Social Constructionism. It was recovered a set of 34 papers from BVS Brazil, and the search was accomplished using specific keywords, just like: “care”, “cure”, “disease”, “public health policy”, “social policy”, “health”, and “public health”. The collected data were submitted to an speech analysis, and the results help to categorize the texts as “Knowledge importation and comparison among realities: the concept of “Brazil as a Colony” at the health speeches”. In this context, we found evidences that the speeches produced at the studies and publications carried a logic that the imported knowledge, which came from the first world countries, should be the rule to be followed in Brazil, and the reality brought by those studies would fit as a model and inspiration for the country .

Keywords: health, disease, science, public policy

Resumen

En este artículo, ponemos en análisis sentidos sobre salud en producciones científicas brasileñas, publicadas en el año de 1990. Tal escenario estaba marcado por la publicación de las Leyes Orgánicas de la Salud, cuya emergencia se dio en un escenario neoliberal. Las bases teóricas del estudio se basaron en el Construccionismo Social. Se recuperaron de la BVS Brasil 34 artículos, y la búsqueda se dio por intermedio de las palabras clave “cuidado”, “cura”, “enfermedad”, “política pública de salud”, “política social”, “salud” y “salud pública”. Los datos recogidos fueron sometidos al Análisis de Discurso, resultando en la categoría “Importación del conocimiento y comparación entre realidades: el concepto de Brasil Colonia en los discursos de la salud”. En ella, evidenciamos que los discursos producidos en los estudios cargaban la lógica de que el conocimiento importado, proveniente de los llamados países industrializados, debería ser la regla para seguir en Brasil y que la realidad impresa en esos escenarios serviría como modelo e inspiración para el país.

Palabras clave: salud, enfermedad, ciencia, políticas públicas

Introduzindo o Assunto em Questão

Com este estudo, objetivamos colocar em análise os sentidos sobre saúde compartilhados em produções científicas, publicadas no ano de 1990, no Brasil. O cenário da saúde, naquele momento, era marcado pela publicação das chamadas Leis Orgânicas da Saúde (Lei nº 8.080, 1990; Lei nº 8.142, 1990). Pautadas em pressupostos ligados à promoção de cidadania, iam de encontro a um contexto marcado pela proliferação da lógica neoliberal. Esta última surgiu logo após a Segunda Guerra Mundial, em reação ao Estado intervencionista, e está calcada nas bases do pensamento liberal, que prega o predomínio do individualismo, da liberdade e competitividade, da naturalização da miséria, da lei da necessidade, do Estado mínimo e da ideia de que as políticas sociais estimulam o ócio e o desperdício (Behring & Boschetti, 2011).

O estudo dos modos de organização social denota que as sociedades são constituídas por uma rede de instituições que, de acordo com a forma que adotam, podem ser leis, hábitos, normas, os quais têm a função de regular o comportamento e de “esclarecer” o que deve e o que não deve ser dito, escrito e feito. Tais instituições não funcionam de forma separada, articulando-se e sofrendo tensionamentos que constantemente modificam a forma como se materializam no cotidiano (Baremblitt, 2002).

A saúde é um exemplo de instituição que, na contemporaneidade, por intermédio de normas e hábitos preestabelecidos, regula o comportamento dos sujeitos, atribuindo-lhes lugares (o do saudável e do doente, por exemplo) e regendo comportamentos (o que se deve e o que não se deve comer, quais exercícios devem ser evitados e quais devem ser praticados para o prolongamento da vida). Estes discursos, atrelados a uma lógica de controle da vida, direcionam-se tanto para os fenômenos populacionais quanto para os indivíduos. Neste sentido, a ciência torna-se um dispositivo fundamental na transmissão de ideologias mascaradas por uma ideia de informação pautada na formação e na criticidade (Foucault, 2005; Martins, 2007). Desse modo, não há como apreender a complexidade da produção do conhecimento vinculado à saúde sem considerarmos sua historicidade e a importância de um olhar crítico sobre a escrita dos saberes científicos no campo da saúde.

A questão da ciência, de seu estatuto político e da consequente proliferação de ideologias deve ganhar atenção em estudos históricos. Isso porque determinados discursos produzidos por ela são marcados pela transitoriedade e consequente formação de novas verdades2, haja vista sua dependência com o tempo histórico e com as condições nele apresentadas, que garantem ou não a permanência de determinados discursos. A constituição de novos regimes de verdade acaba rompendo, em certos momentos, com os modos de as pessoas se relacionarem com o mundo, e a ciência, neste sentido, dita modos de ser e de pensar que são aderidos pelos sujeitos porque estão ligados a um status de autoridade. E este mesmo status permite à ciência a rotulação dos sujeitos sem que estes, em algum momento, sejam convidados a contestar o que a eles é atribuído (Foucault, 2002; Gergen & Gergen, 2010).

A ideia de estudar produções científicas em meio a esta pesquisa e de, consequentemente, compreender como a ciência se torna importante dispositivo para refletir a respeito do ano de 1990, no Brasil, dá-se em função de este ser um momento histórico nacional assinalado por grandes mudanças no cenário legislativo da saúde. Mergulhada no cotidiano das pessoas, uma vez que também responsável pela formulação de um novo repertório da saúde, a ciência torna-se passível de análise, na medida em que fala de sentidos atribuídos à saúde por intermédio de diversas vozes.

A marca que o ano de 1990 deixa na história da saúde pública, fruto de longas negociações e certa promessa − ao levar-se em conta a legislação que entra em vigor nesse momento − de superação do modelo biomédico de atenção deve ser problematizada por diferentes motivos, em especial pelo fato de que ainda estamos vivenciando a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). Ano marcado por contradições, vivia-se em um contexto neoliberal, em que o controle da vida já estava atrelado ao consumo da mídia e da ciência, ambas representadas pela figura de famosos/as experts autorizados/as a proferir determinadas verdades. Ao mesmo tempo, concretizava-se uma série de ações, a exemplo de reivindicações de trabalhadores/as, professores/as, acadêmicos/as e demais integrantes da população civil por um reconhecimento, por parte do Estado, de que a atenção à saúde pública devia tomar outros rumos. A este fenômeno, foi dado o nome de Reforma Sanitária.

Movimento iniciado na década de 1970, a Reforma Sanitária referiu-se a um emaranhado de práticas com fins de negociação de ações diante de códigos de conduta, prescrições e investimentos na saúde e nas condições de vida da população. Pode ser ainda interpretado como uma prática que pretendia subverter os jogos de verdade produzidos, tornando-se uma possibilidade de prática de liberdade, configurando-se em “uma condição ontológica para a ética na saúde”. Impulsionado pela sociedade civil e tendo como proposta a mudança social, o movimento provocou repercussões no território nacional. Imprimiu ainda a ideia de revisão crítica de como estava organizada a saúde pública no Brasil, além de exigir maior participação do Estado na formulação de políticas públicas que dessem conta desse cenário (Bernardes, 2012, p. 186; Carvalho et al., 2008; Paim et al., 2011).

Em 1978, ocorreu a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde, em Alma-Ata (URSS), com forte influência no cenário da saúde brasileira. Nela, salientou-se que a saúde consistia em um completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas na ausência de doença, sendo um direito fundamental das pessoas, que, por sua vez, deveriam ter acesso à saúde por intermédio da participação, para concretizar essa realidade, não apenas do setor saúde, mas de diversos setores (Duchiade, 1999). Mais tarde, houve críticas a esse modelo almejado de saúde, tido por muitos/as como inalcançável. Entretanto, há de se considerar que a herança de um modelo de saúde pautado na lógica da biomedicina imperava, fazendo com que ideais ligados “a um completo bem-estar” fossem almejados, desconsiderando-se as imperfeições e os processos de vida não lineares.

Embora a questão da atenção primária houvesse se difundido com a Conferência de Alma-Ata, os centros que obtinham a hegemonia da economia mundial “revalorizam o mercado como mecanismo privilegiado para a alocação de recursos e questionam a responsabilidade estatal na provisão de bens e serviços para o atendimento de necessidades sociais, inclusive saúde” (Paim & Almeida, 1998, p. 301). Essa ordem mundial diferenciada que aparece na década de oitenta, com base no neoliberalismo, causou uma fragilização nas lutas pelo enfrentamento dos problemas no campo da saúde (Paim & Almeida, 1998).

Na década de 1980, visualizou-se um período de instabilidade econômica, com hiperinflação, e a crise fiscal do Estado fez com que a Reforma Sanitária encontrasse problemas para a sua implantação. Havia um recuo por parte dos movimentos sociais, bem como a expansão da ideologia neoliberal, com perda do poder aquisitivo dos trabalhadores de saúde, o que gerou consequente descrença no SUS. Essa atitude era fomentada pela mídia e por classes dirigentes, assim como por políticas corporativas de trabalhadores da saúde. Ainda que todos esses processos estivessem ocorrendo, a Reforma Sanitária seguia firmando suas bases (Paim, 2008).

Conquistada a democracia, em 1985, fez-se possível a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, reafirmando-se, ali, o reconhecimento de que a saúde era dever do Estado e direito de todos/as, reconsiderando-se assim, a implantação de um Sistema Único de Saúde descentralizado e democrático. Apesar da sugestão dada pelo então presidente para que assim fosse feito, não foi proposto na conferência um texto para a Constituição. Este mesmo tema foi discutido no primeiro Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, em setembro de 1986, aprovando-se, assim, a proposta com inspiração na 8ª Conferência Nacional de Saúde e também no texto formulado pela Comissão Nacional da Reforma Sanitária. Desenvolveram-se, a partir daí, estratégias para a coordenação, integração e transferência de recursos entre instituições de saúde federais, estaduais e municipais, mudanças essas que demarcaram o território para a criação do SUS (Paim, 2008; Paim et al., 2011).

Em 1988, passou a ser incluída na Constituição Federal (CF) brasileira uma série de artigos referentes à saúde, a exemplo do artigo 196, que aponta a saúde como “um direito de todos e dever do Estado”, direito este garantido por políticas sociais e econômicas, com o objetivo de reduzir doenças e agravos à saúde. A Constituição prevê ainda o acesso universal e igualitário dos cidadãos e cidadãs aos serviços de saúde com fins de promoção, proteção e recuperação. No artigo 198, cita-se que os serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo-se em um sistema único organizado por três diretrizes: descentralização, atendimento integral e participação da comunidade (República Federativa do Brasil, 1988).

Dois anos mais tarde, mais precisamente em 19 de setembro de 1990, foi sancionada pelo então presidente da República e primeiro candidato eleito por voto direto desde 1960, Fernando Collor de Mello, a Lei n. 8.080, mais conhecida como Lei Orgânica da Saúde, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, organização e funcionamento dos serviços (Lei nº 8.080, 1990).

Entretanto, o então presidente Collor vetou os artigos da Lei Orgânica referentes à descentralização, controle social e repasses intergovernamentais e, portanto, foi necessário complementá-la com a Lei nº 8.142, de 1990, que regula a participação da comunidade no Sistema Único de Saúde, orientando as transferências intergovernamentais de recursos financeiros da saúde, propondo ainda a implantação de planos e fundos de saúde (Lei nº 8.142, 1990).

Seguindo uma agenda de caráter neoliberal, o então presidente não se comprometeu com a Reforma Sanitária e, somente após o seu impeachment, em 1992, ela foi retomada. No Terceiro Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e Primeiro Encontro de Saúde Coletiva do Cone Sul, realizados em Porto Alegre, em maio de 1992, houve manifestação de indignação em relação ao governo de Collor, que, por determinadas questões, provocava consequências indesejadas na saúde. Na 9ª Conferência Nacional de Saúde, neste mesmo ano, ocorreu a denúncia do não cumprimento da legislação, no que se refere a essas questões aqui ­discutidas. A Norma Operacional 01, de 1993, demonstra os esforços do governo na descentralização dos serviços de saúde, estabelecendo condições de gestão com fins de colocar em prática a municipalização (Paim, 2008).

Minayo (1999), ao fazer uma retomada da situação da saúde até a década de noventa, afirma que, até esse momento da história do Brasil, havia ocorrido uma série de avanços no discurso, mas não na prática. Aponta ainda que a cultura de medir a saúde, sem levar em conta a complexidade que envolve esse campo, relaciona-a apenas com doença e morte.

Tendo em vista o que foi acima exposto, compreendemos que o estudo do tempo presente – neste caso, do ano de 1990 – constitui-se em importante movimento. Isso porque somos adeptas da ideia de que, ao repensarmos o modo como a história nos foi contada, possibilitamos a produção de novos sentidos para as nossas práticas contemporâneas e, neste caso, uma maior problematização das políticas públicas e do modo como as colocamos em prática na contemporaneidade (Baremblitt, 2002; Hobsbawm, 2013; Padrós, 2004).

As bases teóricas do presente estudo inspiraram-se no Construcionismo Social. Suas noções englobam a ideia de que há uma constante criação de sentidos no âmbito das relações humanas e de que as pessoas constroem, juntas, a realidade que vivenciam. Consequentemente, os sentidos que damos ao mundo variam nos diferentes grupos sociais, pois o construímos de maneira diferenciada, o que torna impossível a formulação de verdades universais aceitas e aplicáveis em qualquer contexto (Gergen & Gergen, 2010).

Ao ter como principal objetivo compreender os processos pelos quais o humano descreve, explica e dá conta do mundo em um determinado período e espaço de tempo, o Construcionismo Social pode ser descrito a partir das seguintes noções: o conhecimento não pode ser compreendido por meio de leis gerais, e os critérios que utilizamos para identificar comportamentos, eventos e entidades são permeados pela cultura, pelo contexto social e pela história; os termos que nos utilizamos para dar conta do mundo, para compreendê-lo, são construídos social e historicamente, por intermédio das relações; conhecimento e ação estão interligados; o estabelecimento de uma postura pautada na reflexão e na crítica é fundamental quando adotada tal perspectiva (Gergen, 1985/2009; Rasera & Japur, 2005).

Método ou “Modos” de Olhar para a Realidade

A presente pesquisa tem um delineamento documental (Martins & Teóphilo, 2009), pois compreendemos que, embora se constitua em uma análise de artigos científicos, olha para tais materiais e para os discursos ali produzidos como fontes históricas, que dizem do modo como se compreendia a saúde no cenário de publicação das Leis Orgânicas de Saúde (Martins & Teóphilo, 2009; Rosa et al., 1996).

Para a elaboração do presente estudo, analisamos artigos em português, presentes na base de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS Brasil), publicados no ano de 1990. A razão para a escolha desses materiais se deu em função de compreendermos que a ciência, enquanto instituição e, portanto, produtora de verdades, à medida que coloca em funcionamento ações, por intermédio de normas e regras estabelecidas, constitui-se em um campo de análise promissor para entendermos de que modo fez parte da produção de discursos em um determinado período. Sendo este um trabalho acadêmico, torna-se relevante problematizar como cientistas expressavam e partilhavam suas práticas no campo da saúde no ano de 1990. Foram recuperadas da base de dados somente produções apresentadas na íntegra, que continham os termos “cuidado”, “cura”, “doença”, “política pública de saúde”, “política social”, “saúde” e “saúde pública” no título ou nas palavras-chave do artigo publicado.

Neste estudo, compreendemos saúde como um fenômeno complexo, e os sentidos atrelados a ela dizem do tempo histórico em que emergem. Não é aqui entendida como completo bem-estar físico, mental e social. Tal conceito, adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), limita, a nosso ver, o olhar e o exercício do cuidado em saúde, ao ter como fim a busca de práticas que almejam um estado de bem-estar, como se este fosse o mesmo para todos/as e pudesse ser alcançado, efetivamente, sem se levar em conta que a saúde e a doença não são dois lados da mesma moeda, mas processos que se entrelaçam a todo momento. Comungando com a CF Brasileira (República Federativa do Brasil, 1988), compreendemos que a saúde se constitui em um conceito ampliado, que resulta de diversos fatores que a determinam e a condicionam: saneamento básico, moradia, alimentação, renda, educação, trabalho, meio ambiente, transporte, lazer e acesso a serviços e bens essenciais, dentre outros.

Para melhor aproveitamento no que se refere à busca, pesquisamos, na base de dados, todos os termos acima referidos também no plural, o que possibilitou a recuperação de um maior número de artigos. Vale ressaltar que, para a busca na BVS, cada termo foi pesquisado separadamente e, na sequência, selecionamos as produções com base nos objetivos propostos no presente estudo. Foram eliminados do corpus da pesquisa editoriais, comunicados, artigos com autores estrangeiros, discussões de realidades de outros países, estudos experimentais com animais e relatos de experiência, mantendo-se apenas estudos com base em experimentos e de revisão. A escolha pela análise de artigos em português e que versam sobre a realidade nacional da época em estudo justifica-se em função do posicionamento ético-político adotado pelas autoras. Ao entendermos que essas eram as produções que seriam lidas fora dos espaços acadêmicos daquele cenário e que repercutiriam nas práticas em saúde do país, optamos por ler apenas produções cuja temática era a realidade brasileira e que foram publicadas no Brasil.

Foram analisados 34 artigos, cujos dados foram submetidos à Análise de Discurso, com base nas produções de Medrado et al. (2000), que tomam como base teórica o Construcionismo Social e propõem a análise das práticas discursivas, com fins de compreender o papel da linguagem e a produção de sentidos no cotidiano.

Tabela 1

Artigos Analisados

Título

Periódico

Aspectos sócio-econômicos dos indivíduos com malária importada na região metropolitana de São Paulo, Brasil: I − Caracterização da população e conhecimento sobre a doença

Revista Saúde Pública

Evolução da cardiopatia chagásica crônica humana no sertão do estado da Paraíba, Brasil, no período de 4,5 anos

Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical

Prevalência da infecção pelo vírus B na comunidade hospitalar

Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical

O enfoque da acessibilidade no planejamento da localização e dimensão de serviços de saúde

Revista Saúde Pública

Estimativa da prevalência da hanseníase pela investigação em demanda inespecífica de agências de saúde

Revista Saúde Pública

Sorologia positiva para sífilis, toxoplasmose e doença de chagas em gestantes de primeira consulta em centros de saúde de área metropolitana, Brasil

Revista Saúde Pública

Prevalência de anemia em gestantes de primeira consulta em centros de saúde de área metropolitana, Brasil

Revista Saúde Pública

Fatores de risco para doenças crônicas não-transmissíveis: inquérito domiciliar no município de São Paulo, SP (Brasil). Metodologia e resultados preliminares

Revista Saúde Pública

Tratamento da forma indeterminada da doença de chagas com nifurtimox e benzonidazol

Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical

Riscos infecciosos imputados ao lixo hospitalar realidade epidemiológica ou ficção sanitária?

Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical

Sistema de vigilância epidemiológica para acidentes do trabalho: experiência na Zona Norte do município de São Paulo (Brasil)

Revista Saúde Pública

Análise das condições de saúde e de vida da população urbana de Botucatu, SP (Brasil): III − Conhecimentos e opiniões dos profissionais de saúde a respeito de sintomas de doenças, 1984

Revista de Saúde Pública

Identificação do enfermeiro de saúde pública na força de trabalho de enfermagem de saúde pública no departamento regional de saúde-6 de Ribeirão Preto, SP (Brasil)

Revista de Saúde Pública

Investigação sobre ocorrência de aborto em pacientes de hospital de centro urbano do estado de São Paulo, Brasil

Revista de Saúde Pública

Sarampo em trabalhadores rurais: Ensaio metodológico de epidemiologia social

Revista de Saúde Pública

População idosa no Rio de Janeiro (Brasil): Estudo-piloto da confiabilidade e validação do segmento de saúde mental do questionário BOAS

Revista de Saúde Pública

Análise da utilização pela clientela de uma unidade ambulatorial da secretaria da saúde do município de São Paulo, SP (Brasil)

Revista de Saúde Pública

A violência na adolescência: Um problema de saúde pública

Cadernos de Saúde Pública

Aspectos sociais da mortalidade precoce (15 a 59 anos) por doenças cerebrovasculares

Arquivos de Neuro-Psiquiatria

Demanda de serviço de saúde comunitária na periferia de área metropolitana

Revista de Saúde Pública

Variáveis reprodutivas e risco para doenças benignas de mama: Estudo caso-controle

Revista de Saúde Pública

Soropositividade para HIV em doentes de herpes zoster

Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo

Crescimento e desenvolvimento na prática dos serviços de saúde: revisão histórica do conceito de criança

Revista de Saúde Pública

Saúde perinatal em Ribeirão Preto, SP, Brasil: apresentação de algumas características demográfico-sociais e da atenção médica da população estudada

Cadernos de Saúde Pública

Inefetividade e ineficiência: reflexões sobre a epidemiologia e os serviços de saúde de um estado de mal-estar social

Cadernos de Saúde Pública

Recursos humanos na implantação das ações integradas de saúde no município de Ribeirão Preto: visão da equipe de enfermagem

Cadernos de Saúde Pública

Avaliação da qualidade dos serviços de saúde: notas bibliográficas

Cadernos de Saúde Pública

Planejamento estratégico em saúde: uma discussão da abordagem de Mário Testa

Cadernos de Saúde Pública

Fatores envolvidos na reatividade do PPD em pacientes com doença de hansen

Cadernos de Saúde Pública

Gerência dos serviços de saúde

Cadernos de Saúde Pública

Saúde e direito à informação

Cadernos de Saúde Pública

Avaliando a saúde infantil em uma pequena comunidade: o estudo de Itapirapuã, Vale do Ribeira, SP

Cadernos de Saúde Pública

Financiamento dos sistemas locais de saúde

Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana

Estratégias para a construção de sistemas locais de saúde no Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana

Nota: Elaborado pelas autoras.

Vale ressaltar que as propostas aqui apresentadas não pretenderam proferir verdades, tampouco imprimir juízo de valor e pré-conceitos mediante informações produzidas pela ciência, como se os materiais em questão, representados na figura de quem os escreve e os veicula, são os/as únicos/as produtores/as dos discursos ali proferidos.

Outro Olhar Sobre o que já foi Dito: Análise e Discussão dos Resultados

Das 34 produções estudadas, 16 (47%) foram publicadas na Revista de Saúde Pública, 10 (29%) na Revista Cadernos de Saúde Pública, 4 (12%) na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 2 (6%) na Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana, 1 (3%) na Arquivos de Neuro-Psiquiatria e 1 (3%) na Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo. As duas revistas com maior número de publicações estão sob a responsabilidade, respectivamente, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.

Em relação à região em que os estudos foram produzidos, 18 (53%) são do Estado de São Paulo, 3 (9%) do Rio de Janeiro, 1 (3%) da Paraíba e 1 (3%) do Rio Grande do Sul. Em relação aos demais artigos, 1 (3%) abrangeu cinco macrorregiões do país (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste e capitais: Belém, Salvador, São Paulo, Porto Alegre e Brasília) e 1 (3%) estudo não deixa claro o local em que foi realizado. Os outros 9 artigos (26%) são de revisão.

Como podemos perceber, os materiais analisados destacam a hegemonia de pesquisas advindas do Estado de São Paulo, seja por intermédio da grande representação de pesquisas na Revista de Saúde Pública, seja pela região em que os estudos foram realizados. Para nossa pesquisa, interessa a atenção que devemos dar às consequências desse fato para a produção do conhecimento. Em outras palavras, é preciso reconhecer que muitos dos discursos utilizados por pesquisadores/as do momento em estudo poderiam ser respaldados por tais pesquisas que, por retratarem a realidade de um contexto, não tinham a possibilidade de dar conta do cenário da saúde em nível nacional. Entretanto, há uma falsa crença, cultuada naquele momento e também nos dias de hoje, de que as produções científicas precisavam dar conta de fenômenos em sua totalidade, com fins de produzir conceitos e modelos universais (Gergen, 2011). Assim, muitos dos discursos científicos transmitem a ideia de que, por intermédio da neutralidade e da objetividade, é possível produzir dados que podem dar conta de qualquer realidade, muitas vezes deixando de lado particularidades do campo em análise, essenciais para o desenvolvimento do estudo.

Expostos os dados gerais das produções, apresentamos, neste momento, a categoria temática construída a partir da análise do material e que foi eleita para ser apresentada neste artigo.

Importação do Conhecimento e Comparação entre Realidades: O Conceito de Brasil Colônia nos Discursos da Saúde

A proposta nesta categoria foi trazer e discutir questões que muito nos chamaram a atenção no decorrer da análise: a menção aos países industrializados, tendo a sua realidade no campo da saúde como regra a ser seguida, e a ênfase no conhecimento científico desses mesmos países, denominada por nós de “culto ao conhecimento importado”.

Há, nos estudos analisados, um discurso que reforça a lógica de um “Brasil Colônia”. Embora algumas produções façam uma árdua crítica ao conhecimento científico posto em prática a partir de outras realidades (Unglert, 1990), a maioria menciona propostas de modelos de atenção e estatísticas de países industrializados, comparando a realidade do Brasil a lugares e contextos que não são somente diferentes em termos de economia, mas também de cultura. A seguir, alguns trechos que demonstram essa ênfase dada ao conhecimento produzido fora de nosso contexto:

Em 1980, um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostrou dados que apontam o Brasil, quando comparado a outros países industrializados, como aquele com maior número de óbitos na população economicamente ativa (PEA), evidenciando as condições de alta periculosidade dos ambientes de trabalho no país (Santos et al., 1990, p. 286).

A força de trabalho assim distribuída e utilizada não estava levando em conta a qualidade dos serviços finais prestados à população. Havia um grande espaço vazio entre a prescrição médica e o cuidado direto ao paciente. Enquanto nos países desenvolvidos a relação encontrada é de 6 enfermeiros para um médico, no Brasil a situação é inversa: um enfermeiro para 6,7 médicos (Steagall-Gomes, 1990, p. 227).

Reconhecidamente o declínio da mortalidade pelas doenças cerebrovasculares (DCV) nos países industrializados tem sido atribuído, em grande parte, ao melhor tratamento da hipertensão arterial na população. Porém, a análise da tendência da mortalidade pelas DCV nas diversas áreas geográficas dos Estados Unidos demonstrou que o declínio da mortalidade não é uniforme em todo país, havendo áreas em que ela permaneceu estável ou mesmo ascendeu. Segundo os autores, estas áreas correspondem àquelas menos desenvolvidas, onde há maior incidência de hipertensão arterial severa e, possivelmente, maior letalidade pelas DCV. No Brasil, as DCV são a principal causa circulatória de morte em todas as regiões (Lessa, 1990, p. 296).

Queremos destacar aqui esta última citação, demonstrando também o caráter ideológico impresso em meio ao discurso científico (Guareschi, 2004), que produz práticas de atenção em saúde tendo como base as perspectivas econômicas almejadas em um dado contexto, e não necessariamente a promoção de saúde e a qualidade de vida da população. Tal discurso cultua uma lógica de causa e efeito em relação a hábitos de vida seguidos pelas pessoas, com fins de manter relações de dominação. Neste artigo, a autora estima, para o Brasil, os anos produtivos de vida perdidos em função de mortes cerebrovasculares. Destaca ainda dados epidemiológicos referentes à mortalidade por este tipo de incidente, bem como o custo despendido em função desses eventos. A ênfase na importância que se deve dar à hipertensão, neste estudo, pode fazer o/a leitor/a mais atento/a pensar que tal atitude tem como objetivo o tratamento com fins de manter a população ativa viva, na ideia de “preservar” a mão de obra “saudável” para dar conta da produção exigida no contexto capitalista.

A ciência, neste caso, como em tantos outros artigos analisados, assume o papel de controle e previsão do comportamento, com fins de evitar custos e mortalidade que comprometam a produção em série que enriquece a classe dominante. Em meio a essa proliferação de discursos tidos como “confiáveis”, porque científicos, criam-se, em nossa sociedade, diferentes papéis estabelecidos para os sujeitos, papéis estes que ganham, com o tempo, certo status de “naturalidade”: o papel do/a cidadão/a “saudável”, o papel do/a cidadão/ã incluído/a em um grupo de risco. . . Ao se reconhecerem e serem reconhecidos por intermédio da ciência e pelos saberes produzidos pelos/as experts, esses mesmos sujeitos posicionam e são posicionados por intermédio dos discursos, criando uma rede articulada de saberes (Fischer, 2001; Schütz, 2003). Salientamos que imprimir status de naturalidade a determinados conceitos, papéis e formas de vivenciar a realidade é tratá-los como algo dado, como parte do cotidiano, como acontecimentos óbvios e, portanto, inquestionáveis (Spink & Spink, 2006).

A menção à categoria “países jovens” (Veras et al., 1990), na qual, segundo um dos estudos analisados, o Brasil se enquadra, denota ainda a ideia de que passamos a nos tornar país a partir do momento em que fomos colonizados. Esse ideal foi cultuado desde os primórdios da colonização, a exemplo do modo como os saberes europeus, por intermédio dos jesuítas, adentraram no cenário nacional e na vida do/a índio/a. A educação, naquele contexto, serviu como instrumento de criação de um “homem novo” e de uma “sociedade nova”, objetivando a transformação das pessoas, de suas culturas e da sociedade. O/a índio/a, a partir dessa lógica, era investido/a pela crença de ausência, em sua vida, das necessidades próprias do “homem civilizado” que estimulam à atividade e ao trabalho, bem como pela ausência de racionalidade, característica do “espírito científico” europeu. Assim, cultuava-se a ideia de que os/as nativos/as tinham uma inferioridade cultural, porque o ideal estava calcado na lógica europeia de civilização e de produção de conhecimento. No século XIX, tal pensamento foi reforçado no Brasil, à medida que as famílias mais abastadas incentivavam seus filhos a procurar formação fora do país, já que, aqui, não havia órgãos oficiais incumbidos de transmitir e elaborar o conhecimento. Resulta-se aí a atuação de pensadores inseridos no contexto nacional com ideias formuladas a partir de uma visão europeia de conhecimento (Massimi, 2011a; 2011b).

Diríamos, fazendo uma relação entre o que foi exposto e a contemporaneidade, que − sem deixar de levar em conta as mudanças presentes no cenário nacional – de alguma forma ainda cultivamos, em nossos discursos cotidianos, a noção de que o conhecimento “de fora” é melhor, mais bem-conceituado e que, portanto, deve servir como regra para nossas práticas, sejam elas científicas ou não. Podemos arriscar dizer que a lógica do Brasil Colônia nunca tenha saído de nós. Talvez só tenha adquirido novas formas e adotado novos discursos, cada vez mais sutis.

No que se refere à importação do conhecimento adotada em muitas das produções em análise, percebemos a grande ênfase no conhecimento produzido fora no país, que, em muitos artigos, serviu como base para discutir questões impressas na realidade brasileira, a exemplo do trecho do artigo a seguir, cujo tema aborda a questão do destino que deve ser dado ao lixo hospitalar:

Enquanto esta questão não for respondida cientificamente cada autoridade sanitária tentará resolver o problema a sua maneira e, usualmente, de forma arbitrária. O tema é um campo minado, porque envolve vultosos interesses financeiros e, por isto, autores americanos sugerem que epidemiologistas infectologistas e microbiologistas, desvinculados de interesses comerciais, comecem a procurar soluções realistas para o destino a ser dado a esses resíduos, sem sobrecarregarem os hospitais com despesas desnecessárias (Zanon, 1990, p. 163).

Neste exemplo, percebemos que o conhecimento científico tido como base para a discussão de questões presentes no Brasil é, em muitos casos, aquele produzido em contextos internacionais, que inspiram e demarcam um objetivo a ser alcançado aqui. Em alguns estudos (Veras et al., 1990), comemora-se a estatística já quase equiparada aos países industrializados, a exemplo do aumento da população idosa no Brasil, e, assim, novamente, ações e medidas adotadas fora do país são inspiração para dar conta desse novo fenômeno nacional.

Se pararmos para refletir, essa é uma realidade ainda cultuada, nos dias de hoje, pelos bancos acadêmicos. Não é incomum ouvirmos e colocarmos em prática a ideia de que o conhecimento produzido em outros cenários, em especial em países cujo sistema de saúde um dia “queremos” alcançar, é válido para discutir e inspirar nossa prática. A noção de que conhecimentos universais também devem ser produzidos pela ciência denota ainda a necessidade que a sociedade científica tem de criar lógicas que deem conta da realidade de todo e qualquer contexto (Gergen, 1985/2009; Gergen & Gergen, 2010; Gergen, 2011), sendo assim possível inspirar e ser inspirado por realidades que, muitas vezes, nada têm a ver com o momento social, histórico e cultural do contexto em estudo.

As noções adotadas pelo campo da Saúde Coletiva, reativas a esse dogmatismo científico, inspiram a produção de saberes que deem conta das realidades que deles necessitam. Em meio a exercícios que incluem usuários/as dos serviços de saúde, profissionais e pesquisadores/as, constrói-se uma proposta de intervenção comprometida com a realidade e com o protagonismo dos/as agentes ali envolvidos/as (Macedo & Dimenstein, 2009; Nunes, 2012; Paim, 2000;). A pesquisa, em meio a tudo isso, deve estar a serviço dessa lógica, e não da (re)produção exacerbada sem propósitos.

Como se Fosse Possível Concluir

A partir da análise dos artigos publicados no ano de 1990 no Brasil, percebemos que os discursos produzidos nos estudos carregavam a lógica de que o conhecimento importado, provindo dos chamados “países industrializados”, deveria ser a regra a ser seguida no Brasil e que a realidade impressa nesses cenários serviria como modelo de inspiração para o país. Com base em uma lógica positivista de fazer ciência, muitos desses estudos pareciam corroborar a ideia de que existe um conhecimento universal e que ele pode servir como regra para qualquer contexto.

Interessa-nos, entretanto, o conhecimento implicado com as relações e com o resgate de formas singulares de vida, o que exige do/a cientista o desapego dos jalecos brancos, das verdades impressas por um fazer científico dito “neutro”, “objetivo”. Interessa-nos um fazer científico mais comprometido com o cotidiano, que olhe para as relações, para as histórias, para os contextos e suas implicações na produção de realidade, e que reconheça que a postura “neutra” e “objetiva” de quem faz ciência carrega um discurso ideológico em prol do mantimento de determinadas relações, confortáveis para poucos (Gergen, 1985/2009; Guattari, 1990).

Para Spink e Medrado (2000), os conteúdos dos quais fazemos uso no cotidiano são reconstruídos, constantemente, por intermédio do movimento que lhe é concedido a partir das produções dos diversos campos do saber, a exemplo do campo científico. Embora o pensamento pós-moderno, em meio a diversas produções, procure desmistificar a objetividade presente neste fazer, essa ideia permanece, segundo os autores, produzindo sentidos no cotidiano, a exemplo dos estudos em análise, cuja estatística assumiu um caráter prescritivo e produtivo, no sentido de apontar comportamentos “inadequados” e ditar normas em prol do “bem-estar” coletivo, mascarando o controle impresso nos discursos ali carimbados pela ciência.

Ao colocarmos em xeque a ciência enquanto verdade inquestionável, assumindo-a como mais uma dentre tantos saberes que compartilhamos no cotidiano, passamos a compreender as amarras prescritivas que este tipo de conhecimento por muito tempo proporcionou e ainda tem proporcionado. Ao sair desse lugar, cientistas poderão enfim comprometer-se com a construção de um Brasil mais justo, que consegue olhar para as particularidades, ao mesmo tempo em que reconhece o direito de todos/as de acesso a bens e serviços, sem discriminação e rotulações predefinidas.

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Recebido em 13/11/2019

Última revisão em 30/05/2021

Aceite final em 21/02/2022

Sobre as autoras:

Eliane Cadoná: Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora e coordenadora do Curso de Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) e professora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da URI. E-mail: cadonaeliane@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-3988-9786

Marlene Neves Strey: Doutora em Psicologia pela Universidad Autónoma de Madrid. Professora de Ensino Superior da Universidade Feevale. E-mail: nevesstrey@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3030-5668


1 Endereço de contato: Rua Assis Brasil, 709, Bairro Itapajé, Frederico Westphalen, RS. CEP 98400-000. E-mail: cadonaeliane@gmail.com

2 Para Foucault (2002; 2004), tudo o que concebemos como verdade é uma produção social, e cada sociedade tem seus regimes de verdade que, por sua vez, se materializam por intermédio do discurso.

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v14i2.1190