Violência Autoprovocada: Estigmas sobre Identidades de Gênero e Orientações Sexuais

Self-Inflicted Violence: Stigmas about Gender Identities and Sexual Orientations

Violencia Autoinfligida: Estigmas sobre Identidades de Género y Orientaciones Sexuales

Fabiane Cristina de Souza Alvim1

Edmarcius Carvalho Novaes

Eunice Maria Nazarethe Nonato

Leonardo Oliveira Leão e Silva

Universidade Vale do Rio Doce (UNIVALE)

Resumo

Este artigo objetiva caracterizar as ocorrências de violência autoprovocadas, enfocando as temáticas de identidades de gênero e orientações sexuais. É um estudo ecológico, com abordagem quantitativa, de caráter exploratório descritivo, com fonte secundária. Utilizou-se a base de dados das Fichas de Notificação de Violência de 2016. Identificaram-se alguns aspectos que encontram correspondência na literatura científica: local de ocorrência, faixa etária em que prevalece a maioria dos casos e métodos mais utilizados. Procurou-se comparar os dados e discutir sob a perspectiva dos estigmas provocados na saúde da população pesquisada. Pontua-se a importância de ações de prevenção da violência autoprovocada, principalmente para a população LGBT. Conclui-se que, seja na assistência direta, na linha de frente dos diversos serviços ou na construção das Políticas Públicas, a Psicologia tem grandes contribuições no enfrentamento da violência.

Palavras-chave: violência autoprovocada, identidade de gênero, orientação sexual, estigma, LGBT

Abstract

This article aims to characterize the occurrences of self-violence, focusing on the themes of gender identities and sexual orientations. It is an ecological study, with quantitative approach, descriptive exploratory character, with secondary source. We used the database of Violence Notification Forms for 2016. We identified some aspects that correspond in the scientific literature: place of occurrence, age group in which most cases prevail, and most used methods. We tried to compare the data and discuss from the perspective of the stigmas provoked in the health of the researched population. The importance of actions to prevent self-inflicted violence is emphasized, especially for the LGBT population. We concluded that, either in direct assistance, in the front line of the various services or in the construction of Public Policies, Psychology has great contributions in facing the various forms of violence.

Keywords: self-inflicted violence, gender identity, sexual orientation, stigma, LGBT

Resumen

Este artículo tiene por objetivo caracterizar las ocurrencias de auto violencia, centrando en los temas de identidad de género y orientaciones sexuales. Es un estudio ecológico con enfoque cuantitativo, de carácter exploratorio descriptivo, con fuente secundaria. Se utilizó la base de datos de Fichas de Notificación de Violencia del año 2016. Se identificó algunos aspectos que encuentran correspondencia en la literatura científica: ubicación de la ocurrencia, rango de edad en que ocurren la mayoría de los casos y los métodos más utilizados. Se buscó comparar los datos y discutir desde la perspectiva de los estigmas provocados en la salud de la población investigada. Se puntúa la importancia de acciones de prevención de auto violencia, especialmente para la población LGBT. Se concluye que, sea en la asistencia directa, en línea frontal de distintos servicios o en la construcción de las Políticas Públicas, la Psicología tiene grandes contribuciones para enfrentar la violencia.

Palabras clave: violencia autoinfligida, identidad de género, orientación sexual, estigma, LGBT

Introdução

Uma das maiores preocupações nas políticas de gestão da saúde no Brasil e no mundo refere-se ao impacto da morbimortalidade por causas externas, que são situações de violências e de acidentes. Na Assembleia Mundial de Saúde em 1996, a Organização Mundial de Saúde (OMS) já chamava atenção para a violência como um problema de saúde pública em função de suas consequências e efeitos prejudiciais (OMS, 2002). No Brasil, representa desde 2006 a terceira causa de morte na população geral, e a primeira na população de 1 a 49 anos (Minayo, 2006; Brasil, 2016). Entre as violências, D’Oliveira e Botega (2006) apontam o suicídio como a terceira causa de morte no mundo. A prevalência destas causas de óbito demonstra a repercussão de tais fatores na saúde pessoal e coletiva, e, em função disto, as intervenções pautadas na prevenção e promoção da saúde merecem atenção especial e precisam ser ampliadas.

Para tanto, o Ministério da Saúde lançou em 2001 a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência, estabelecendo objetivos, diretrizes e responsabilidades, com ênfase à implantação da notificação da violência, cujos dados são acompanhados pela Vigilância Epidemiológica de Violências e Acidentes (Brasil, 2002).

Em 2006, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria MS/GM n. 1.356, lançou o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes em Serviços Sentinela (VIVA), baseado em dois componentes: vigilância contínua (a captação dos dados de violência interpessoal/autoprovocada em serviços de saúde que deve ser realizada a todo o momento) e vigilância sentinela (refere-se especificamente à serviços Sentinela, que são serviços de urgência e emergência, em que a pesquisa se dá por amostragem, por 30 dias consecutivos, sendo que a periodicidade desde 2012, é a cada três anos) (Brasil, 2016).

Percebe-se um processo de aperfeiçoamento da vigilância de violências, aliado às políticas instituídas em relação à violência sexual, à saúde de idosos, mulheres, crianças e adolescentes e população LGBT, numa perspectiva de atenção integral à saúde, de proteção e garantia de direitos. A Portaria MS/GM n. 1.271, de 6 de junho de 2014, que define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos em saúde pública, contempla os casos violência interpessoal e autoprovocada (Brasil, 2016). Essa delimitação se faz importante para delimitar o fenômeno, ressaltando que ainda se observa a subnotificação em relação às diversas formas de violência e em relação ao suicídio. D’Oliveira e Botega (2006), destacam que os registros das tentativas de suicídio são inferiores à quantidade real, em consequência, estimasse que esse comportamento supere em torno de dez vezes os números de suicídio.

A violência pode ser definida como a conduta de caráter intencional, por ação ou omissão, que cause ou venha a causar, constrangimento, limitação, dano, morte, e diversas formas de sofrimento (sexual, físico, moral, psicológico e social, entre outras) (Brasil, 2016). Ademais, a OMS destaca que a violência é o uso de força física ou de poder, sendo real ou na forma de ameaça, podendo ser individual, contra um grupo de pessoas ou contra uma comunidade. Para melhorar as ações de prevenção e combate, sugere a distinção entre três categorias de violência pela perspectiva da pessoa que comete o ato, sendo a violência autoinfligida, violência interpessoal e a violência coletiva. O Ministério da Saúde e OMS utilizam a terminologia violência autoprovocada como sinônimo de autoinfligida (Brasil, 2016).

Destaca-se nesta produção a violência autoprovocada. Tais práticas podem ser definidas como uma violência dirigida a si próprio de forma intencional, sendo o comportamento suicida delimitado como comportamento que tem como objetivo acabar com a própria vida (Bahia, Avanci, Pinto, & Minayo, 2017).

No Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, produzido pela Associação Americana de Psiquiatria (APA, 2014), em sua quinta edição (DSM-5), o comportamento suicida é diferenciado da automutilação. O transtorno é diagnosticado quando, nos últimos 24 meses, ocorre uma tentativa de suicídio. Deve-se ter clareza de que tal ato foi com intenção de levar à própria morte, não atendendo ao critério para autolesão não suicida ou fatores orgânicos e culturais (APA, 2014).

Já a automutilação não suicida refere-se ao comportamento do indivíduo de dano intencional na superfície do seu corpo, que induz a sangramento, contusão ou à dor – desde que tenha acontecido por cinco dias ou mais no último ano, com a expectativa de que o ato cause dano menor ou moderado. Esse comportamento deve ser diferenciado da intenção de causar a própria morte, pois se associa à expectativa de induzir a uma sensação positiva após o ato, a obter alívio e afastamento de sentimentos negativos. Deve-se diferenciá-lo de atividades com cunho cultural ou de cunho religioso (APA, 2014).

O Ministério da Saúde (Brasil, 2016) recomenda que todo caso suspeito ou confirmado de violência interpessoal e autoprovocada deve ser notificado, não se excluindo a comunicação com as autoridades competentes.

O Conselho Federal de Psicologia, em sua Resolução n. 01, de 29 de janeiro de 2018, estabelece normas de atuação para psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. O documento utiliza o termo “cisnormatividade”, referindo-se ao regramento social que reduz a divisão das pessoas apenas a homens e mulheres, com papéis sociais estabelecidos socialmente como naturais. A perspectiva “heteronormativa” também é destacada, ao afirmar a prescrição dos costumes e dos papéis sociais ideais à vivência heterossexual, e as que não se enquadram costumam ser são alvo de preconceitos e atos de discriminação, o que pode gerar impactos em suas condições de saúde mental (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2018).

Iannini e Rodrigues (2018) definem que tal perspectiva normativa ratifica práticas sexuais e o desempenho de papéis socialmente construídos a partir de posições assimétricas do que deve ser considerado como expressão do ser masculino e o feminino, o que molda a forma como cada um deve se comportar e se relacionar afetivo-sexualmente.

Considerando que a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual incide na determinação social da saúde, em processos de sofrimento e adoecimento decorrentes do preconceito e do estigma social reservado às populações LGBTs, o Ministério da Saúde publicou a Portaria n. 2.836, de 1º de dezembro de 2011, que institui a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. O documento estabelece diretrizes de fomento à prevenção, promoção e cuidados em relação à saúde desta população, além do apoio às ações que tenham ênfase na diminuição da discriminação, pautando o respeito às diferenças (Brasil, 2011).

Estudos internacionais como de Reisner et al. (2015), Veale, Watson, Peter e Saewyc (2017), Garg e Marwaha (2018) e Spack et al. (2012) indicam vulnerabilidade em relação à violência autoprovocada na população LGBT em função da estigmatização. Poucos estudos nacionais abordam a temática, conforme constata Baére (2019); dentre eles, o estudo tanto de Baére como os trabalhos de Teixeira-Filho e Marretto (2008), Teixeira-Filho e Rondini (2012) apontam para o mesmo impacto e chamam atenção para a necessidade de novas produções nacionais que abordem a temática. Desse modo, caracterizar, através dos dados da Ficha de Notificação, as variáveis envolvidas nas situações de violência autoprovocada, especificamente com o público LGBT, mostra-se um importante processo de identificação de violências direcionadas a tal público. Ademais, permite conhecer melhor o fenômeno e ampliar a discussão acerca das políticas de enfrentamento das violências que favoreçam a redução das vulnerabilidades e riscos à saúde decorrentes dos determinantes sociais.

Ainda, cabe destacar que o preconceito pode atingir a pessoa em sua autoimagem, dificultando-lhe enfrentar os desafios e as situações delicadas da vida, recorrendo, algumas vezes, à violência autoprovocada. O sofrimento a partir do estigma na produção de violência interpessoal tem sido demonstrado na literatura (Brasil, 2013; Barreto, 2010), apesar da escassez de trabalhos sobre a descrição da violência autoprovocada associada ao público delimitado neste estudo.

Dessa forma, partindo da análise da Ficha de Notificação Individual de Violência Interpessoal/Autoprovocada, o presente estudo objetiva caracterizar as ocorrências de lesões autoprovocadas do público cujas identidades de gênero e orientação sexual estão entre os que não correspondem ao padrão social pautado pela cis-heteronormatividade.

Método

Tipo de Estudo

Trata-se de um estudo ecológico, com abordagem quantitativa, de caráter exploratório descritivo e com uso de fontes de dados secundárias. Bonita, Beaglehole e Kjellström (2010) definem estudo ecológico como os estudos que utilizam como unidades de análise grupos em vez de indivíduos; uma das possibilidades neste tipo de estudo é comparar populações em diferentes lugares ao mesmo tempo.

Universo do Estudo e Dados Secundários

Utilizou-se, como fonte secundária, o banco de dados que continha todas as Fichas de Notificação de Violência do ano de 2016, disponibilizadas pelo Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) do Ministério da Saúde, por meio do DATASUS, solicitadas via cadastro no e-sic, e envio de Termo de Compromisso de Responsabilidade, recebido por e-mail.

Para responder ao objetivo deste estudo, foram incluídos apenas os dados referentes à violência autoprovocada do segundo componente do sistema, que é o de vigilância contínua. Nesse componente, a captação dos dados se dá nos serviços de saúde ao receberem uma situação de violência, com o preenchimento da Ficha de Notificação específica. Periodicamente, as fichas são encaminhadas para a Vigilância Epidemiológica em cada município que procede o lançamento dos dados no sistema nacional. Esses dados são analisados e ajustados em nível estadual e federal para, posteriormente, serem disponibilizados como de uso público.

As tabelas com os dados ofertados pelo Ministério da Saúde foram organizadas e estruturadas para análise no software R (https://www.r-project.org/).

As variáveis utilizadas do banco de dados das Fichas de Violência Autoprovocada no Brasil, do ano de 2016, foram: data de nascimento; idade; sexo; raça/cor; escolaridade; ocupação; situação conjugal/estado civil; orientação sexual; identidade de gênero; transtorno mental; transtorno de comportamento; local de ocorrência; se ocorreu outras vezes; se a lesão foi autoprovocada; motivação da violência; meio de agressão; e encaminhamentos após atendimento.

Análise dos Dados

Para análise dos dados encontrados, em relação às terminologias usadas na Ficha no campo da orientação sexual, será considerada como “heterossexual” a pessoa que se diz atraída afetivo-sexualmente por pessoas de gênero diferente daquele com o qual se identifica, independentemente de seu sexo biológico. Já por “homossexual”, pessoas gays e/ou lésbicas, que se definem atraídas afetivo-sexualmente por pessoas de gênero igual àquele com o qual se identifica, independentemente de seu sexo biológico. Por fim, será considerada como “bissexual” a pessoa que relata que se sente atraída afetivo-sexualmente por pessoas de qualquer dos gêneros, isto é, masculino ou feminino (Brasil, 2016).

Já em relação aos dados que se referem às identidades de gênero, tal delimitação refere-se ao gênero com o qual a pessoa se autoidentifica. Assim, tem-se a classificação “travesti” utilizada para a pessoa do gênero masculino que deseja ser reconhecida socialmente como mulher, não apresentando conflito com seu sexo biológico. Já “mulher transexual” corresponde à pessoa que nasceu biologicamente com o sexo masculino, mas identifica-se social, corporal e psicologicamente com o gênero feminino. O “homem transexual”, por sua vez, refere-se à pessoa que nasceu com sexo biológico feminino, mas que se identifica social, corporal e psicologicamente com o gênero masculino (Brasil, 2016).

Em relação aos transtornos, delimita-se que “transtorno mental” compreende os quadros como: esquizofrenia, transtorno bipolar afetivo, transtorno obsessivo compulsivo, dependência de álcool e outras drogas. Já o “transtorno de comportamento” é compreendido, dentre outros, como os distúrbios emocionais, de conduta e de funcionamento social (Brasil, 2016). Foram utilizados estudos nacionais e internacionais para discutir os resultados apresentados.

Aspectos Éticos

Seguindo as diretrizes da Resolução n. 510, de 7 de abril de 2016, expedida pelo Conselho Nacional de Saúde, este estudo não carece de parecer pelo sistema CEP/CONEP, por se tratar de pesquisa com bancos de dados, cujas informações são agregadas, sem possibilidade de identificação individual.

Resultados

O levantamento realizado aponta que, em 2016, foram registradas 274.657 ocorrências de violência no Brasil, sendo 45.549 (16,58%) dos registros referentes à lesão autoprovocada. Deste montante, 1.610 (3,5%) envolvidos se declararam com a identidade de gênero transexual, independentemente de serem heterossexuais ou homossexuais.

Ressalta-se também que o Ministério da Saúde utiliza os parâmetros da OMS para definição de uma classificação etária, que entende como criança a população de 0 a 9 anos; adolescente, de 10 a 19 anos; adultos, de 20 a 59 anos; e idosos, de 60 anos de idade ou mais. Nos registros de lesão autoprovocada, uma vez que foram selecionados os critérios de orientação sexual e de identidade de gênero, não aparecem dados referentes de 0 a 9 anos, o que pode ser explicado pela orientação constante no Instrutivo, que pontua que essa delimitação não será realizada, já que as crianças ainda estão em desenvolvimento (Brasil, 2016).

Quanto às variáveis sociodemográficas, observou-se, em relação à faixa etária, que 384 (23,85%) dos registros referem-se a adolescentes; 1.169 (72,61%), a adultos; e 57 (3,54%) casos, a idosos. Separando a idade adulta em períodos de 10 anos, a faixa em que prevalecem as notificações é a de 20 a 29 anos, sendo 549 registros, o que corresponde a 41,1% do montante das fichas.

Quanto à escolaridade, grande parte dos registros, isto é, 369 (24,57%) casos, ficou como ignorada. Dos identificados, a maioria, 278 (18,56%) casos, tem ensino médio completo, e 237 (15,82%) tem da quinta a oitava série incompleta. O menor registro, com 61 casos, correspondendo a 4,07%, apresentou curso superior completo. Destaca-se que não foi registrado nenhum analfabeto.

Quanto à raça/cor, 854 (53,38%) se declaram brancos e 508 (31,75%), pardos, o que corresponde a 85,13% dos registros. Negros foram 129 (8,06%); amarelos, um total de 12 (0,75%); indígenas, 15 (0,84%); e 82 (5,12%) casos foram classificados como ignorados.

Em relação à situação conjugal, 909 (57,38%) se declararam solteiros; 472 (29,80%), casados; 84 (5,30%), separados; 79 (4,99%), ignorados; e 20 (1,26%), viúvos. Em relação ao questionamento sobre a orientação sexual, 504 (31,3%) se disseram heterossexuais, e 1.106 (68,7%), homossexuais. Dos homossexuais, a maioria refere à identidade de gênero correspondente ao sexo biológico, não se identificando como travestis, transhomem ou transmulher, sendo 915 (82,73%) dos registros. Dos heterossexuais, em relação à identidade de gênero, foram encontrados 120 (23,81%) transhomens, 351 (69,64%) transmulheres e 33 (6,55%) travestis.

Sobre o gênero, 922 (57,27%) se identificaram como sendo do gênero feminino, 687 (42,67%) como masculino, e 1 (0,06%), ignorado. Dos 922 que se declararam como sendo do gênero feminino, 333 (36,12%) estão entre os que se declararam com orientação sexual heterossexual e 589 (63,88%) como homossexuais. Dos 687 que se declararam do gênero masculino, 170 (24,75%) se afirmaram heterossexuais, e 517 (75,25%), homossexuais.

É relevante também apontar que, para ambos os gêneros, independentemente da orientação sexual, quanto ao local de ocorrência, em sua maior parte, 1.339 (83,17%) registros foram na residência. Em segundo lugar, encontra-se a via pública, com 119 (7,39%) notificações.

Quanto à caracterização das lesões autoprovocadas, observou-se que foram registrados como envenenamento 790 episódios (49,31%). Foram identificados 270 registros qualificados como outro (métodos diferentes das opções descritas na ficha), correspondendo a 17,15%, e 245 (15,34%) foram identificados com o uso de objeto perfurocortante. Dos casos de envenenamento, 459 (58,10%) referentes ao gênero feminino e 330 (41,77) ao masculino, e 1 ignorado (0,13%). Destaca-se que o meio menos utilizado foi por arma de fogo, correspondendo a 27 (1,55%), sendo 6 (22,22%) do gênero feminino e 21 (77,77%) do masculino. Em relação a essas características do evento, para ambos os gêneros houve um predomínio de envenenamento, seguidos de outros, e uso de objetos perfurocortantes, respondendo por 74, 70% dos registros. A divisão por gênero em relação aos meios foi a mesma até o quarto item.

A caracterização das lesões por idade demonstrou que a faixa etária de 10 a 19 anos tem como principal meio o envenenamento, com 188 (45,52%) registros, e, em segundo lugar, o uso de objetos perfurocortantes, com 70 (16,94%) registros. De 20 a 59 anos, o principal meio é o envenenamento, com 589 (46,30%) registros, seguido de outros, com 201 (15,80%) registros. De 60 a 89 anos, o principal meio com 16 registros (27,59%) foi de força corporal, e com 13 (22,41%) cada, os objetos perfurocortantes e envenenamento.

A partir do questionamento de a violência autoprovocada já ter ocorrido outras vezes, 664 (41,45%) responderam que sim. Já 790 (49,31%) referiu ser a primeira vez que o fato ocorreu, sendo que o montante de 148 (9,24%) registros ficaram marcados como ignorado.

Em relação aos transtornos mentais e de comportamento, são registrados apenas os casos em que existe um diagnóstico confirmado por profissional de saúde habilitado, para que não seja pautado em suposições pessoais ou dos familiares. Os resultados apontam o total de 52 (35,13%) registros de transtorno mental, e de 73 (44,51%) registros de transtorno de comportamentos, ambos associados às questões de gênero.

Detalhando os registros de transtorno mental associados à identidade de gênero, foram encontrados 12 (23,08%) registros de transtorno mental entre os transhomens, 31 (59,61%) entre as transmulheres e 9 (17,31%) entre travestis. Nos dados referentes aos transtornos de comportamento, dos 73 registros, foram identificados 19 (26,03%) entre os transhomens, 49 (67,12%) entre as transmulheres e 5 (6,85%) entre travestis. Ao dividir os dados do último transtorno por orientação sexual, tem-se que 112 (68,29%) são homossexuais e 52 (31,01%) se declaram heterossexuais. Ao relacionar orientação sexual e transtorno mental, foram identificados 112 (75,67%) homossexuais e 36 (24,32%) heterossexuais. É importante ressaltar que pode haver, numa mesma ficha, a identificação de mais de um transtorno.

Sobre a motivação para a violência, há as seguintes opções: sexismo, homofobia/lesbofobia/bifobia/transfobia, intolerância religiosa, xenofobia, conflito geracional, situação de rua, deficiência e outros. No total, foram 1.110 identificações. A associação que se destaca, ou seja, o que mais foi apontado pelas pessoas como fator que motivou a autoagressão, foi o conflito geracional, que é “. . . um conflito que descreve discrepâncias culturais, sociais ou econômicas entre duas gerações, que pode ser causada por trocas de valores ou conflitos de interesse entre gerações mais jovens e gerações mais idosas” (Brasil, 2016, p. 55), apontado como motivação em 198 (12,30%) fichas.

Na sequência, encontra-se a homofobia/lesbofobia/bifobia/transfobia, que se configura como “. . . violência motivada e praticada em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero presumida da vítima, podendo esta ser membro da população LGBT ou não” (Brasil, 2016, p. 54), a qual esteve presente em 41 (2,55%) registros. Chama atenção a quantidade de “não se aplica” e “ignorado”, pois correspondem a 726 registros (45, 10%), o que aponta uma subnotificação significativa deste dado, considerado relevante para se pensar políticas públicas destinadas a este público.

Dos encaminhamentos feitos, destaca-se a Rede da Assistência Social, com 165 registros (10,30%). Os demais encaminhamentos contemplaram a Rede de Educação, com 5 (0,31%) registros; a Rede de Atendimento à Mulher, com 16 (1,0%); o Conselho Tutelar, com 77 (4,81%) casos; o Conselho do Idoso, com 4 (0,25%) casos; o Centro de Referência dos Direitos Humanos, com 5 (0,31%) casos; o Ministério Público, com 7 (0,44%) casos; a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente, com 3 (0,19%) casos; a Delegacia de Atendimento à Mulher, 35 (2,19%) casos; outras delegacias, 169 (10,56%) casos; Justiça da Infância e Juventude, 5 (0,31) casos; e a Defensoria Pública, com 4 (0,25%). Deve-se destacar que não foram registrados encaminhamentos para a Delegacia de Atendimento à Pessoa Idosa, tampouco para os equipamentos públicos da própria Rede de Saúde.

Discussão

A partir dos dados levantados, é possível compreender os casos que chegam aos serviços de saúde e, assim, analisá-los. Comparando com estudos anteriores, quanto ao local de ocorrência da violência autoprovocada, os achados encontram correspondência com a literatura (Bahia, Avanci, Pinto, & Minayo, 2017) ao apontar que tanto para homens quanto para mulheres o domicílio constitui o principal local onde as lesões são realizadas.

Em relação ao método de violência, Monteiro, Bahia, Paiva, Sá e Minayo (2015) relatam que estudos sobre morbidade hospitalar por lesão autoprovocada apontam para as autointoxicações como método mais frequente para ambos os gêneros, o que se repete na população estudada.

Botega (2015), por sua vez, afirma que a escolha dos métodos nas tentativas de suicídio associa-se a uma combinação de fatores culturais, à facilidade no acesso aos meios, às preferências individuais e, ainda, à intenção associada ao ato. Tais fatores podem mudar ao longo do tempo e sofrer influência do gênero e da faixa etária, por exemplo.

Em relação à faixa etária, como demonstrado neste estudo, o método principal foi diferente na terceira idade em comparação às demais: o envenenamento foi o método que ocupou o primeiro lugar, na adolescência e idade adulta. Já na terceira idade, ocupou o segundo lugar, com 13 (22,41%) casos, junto do uso de objetos perfurocortantes. Em primeiro lugar, evidenciou-se o uso de força corporal, com 16 (27,59%) casos.

Botega (2015), em relação à questão cultural e de acesso, demonstra que na Inglaterra e Austrália predominam o enforcamento e a intoxicação por gases. Nos Estados Unidos, o meio mais utilizado é a arma de fogo, enquanto na China é o envenenamento por pesticidas. Na população estudada neste trabalho, o uso de arma de fogo foi um dos métodos menos utilizado. É importante considerar que a dificuldade de acesso a este meio, à época dos casos registrados, pode ser um importante fator de proteção para as situações de violência autoprovocada.

Cabe ressaltar que a automutilação e tentativas de suicídio são comportamentos distintos, embora associados frequentemente. Sabe-se que no primeiro não há nítida intenção de morrer; muitas vezes, é um pedido de socorro, ou uma forma de lidar com o mal-estar e sofrimento. Ressalta-se que, quando se mantém por período prolongado, está associada a um aumento no risco de pensamento e tentativas de suicídio. Além disso, casos mais graves de automutilação podem levar à morte acidental (Aratangy, Russo, Giusti, & Cordás, 2017).

Já a reincidência é considerada um fator de atenção, pois sugere agravamento, sendo um fator de risco para a tentativa de suicídio, o que, nos achados desta pesquisa, correspondeu a 41,45% dos casos. Segundo Monteiro et al. (2015), um importante fator de risco para o suicídio são as histórias prévias de ideações e as tentativas de provocar a própria morte. Para cada suicídio completado, há mais pessoas que tentam suicídio todos os anos (Brasil, 2017).

Em relação aos aspectos psíquicos, os resultados deste trabalho apontaram o total de 52 (35,13%) registros de transtorno mental e 73 (44,51%) registros de transtorno de comportamentos, ambos associados às questões de gênero. Os transtornos, quando presentes, devem ser alvo de atenção, para que seja oportunizado acompanhamento na Rede de Saúde e demais em que se fizerem necessárias, uma vez que são elencados como fatores de risco para o suicídio, de acordo com Botega (2015).

Os estudos de Reisner et al. (2015) apontam que os jovens transgêneros podem ser delimitados como uma população vulnerável, que se configura como “. . . em risco de resultados negativos na saúde mental, incluindo depressão, ansiedade, autoflagelação e tendências suicidas” (Reisner et al, 2015). Apontam que, comparados aos controles, jovens cisgêneros apresentaram um risco duas a três vezes maior de depressão, transtorno de ansiedade, ideação suicida, tentativa de suicídio, autoagressão sem intenção letal (Reisner et al., 2015). Às mesmas conclusões chegam Katz-Wise, Reisner, Hughto e Budge (2017), atribuídas a experiências relacionadas à estigmatização social.

Na pesquisa de Veale et al. (2017), identifica-se que “. . . os jovens transgêneros tinham um risco maior de relatar sofrimento psicológico, automutilação, episódio depressivo maior, ideação suicida e tentativas de suicídio . . .” (Veale et al. 2017, p. 44). Neste trabalho, os autores mostram que muitos jovens transexuais denunciam discriminação, intimidação e violência como resultado de sua identidade de gênero.

Garg e Marwaha (2018) consideram que as crianças ou adolescentes que vivenciam a situação de não se identificarem dentro dos papéis binários tradicionais podem ser alvo de estigmatização cultural, apresentam mais transtornos psíquicos e “. . . risco aumentado de auto-mutilação e suicídio” (Garg & Marwaha, 2018). O estudo de Spack et al. (2012) também enfatiza o maior risco de comportamento autolesivo, ideação e tentativas de suicídio entre os jovens transgêneros. Os estudos citados referem-se aos adolescentes e jovens. Esta população, de acordo com as estatísticas e achados deste trabalho, é a que mais apresenta comportamentos autolesivos.

Jucá e Vorcaro (2018) afirmam que a adolescência é um período no qual definições importantes são processadas: novas demandas, novas relações, um corpo novo, diferente do lugar seguro e habitual da infância. Percebe-se que, diante disso, na emergência da adolescência, alguns sujeitos ficam embaraçados na transição implicada no adolescer e atuam, com destaque para as automutilações.

Desta forma, adolescentes denunciam desconforto em sua relação com os outros e consigo próprio. Neste período, as escolhas feitas na infância serão reatualizadas, sobretudo as escolhas de objeto (hetero ou homossexuais) e, também, as que se referem à posição quanto à sexuação (Stevens, 1998).

Neste contexto, os estudos de gênero (Scott, 1995; Butler, 2003) se fazem significativos, pois as discussões de gênero elaboradas devem ser tomadas como uma categoria de análise. Scott (1995) aponta que gênero diz respeito às relações sociais que são constituídas com base nas diferenças que se percebem entre os sexos biológicos numa dada coletividade. É a primeira forma de estruturar relações de poder.

É a partir, portanto, da compreensão de gênero como uma construção sociocultural das diferenças entre homens e mulheres que se discutem seus marcadores e os impactos nas relações coletivas. Estas impactam as questões de identidades de gênero, compreendidas como os papéis sociais aos quais as pessoas foram designadas a cumprir, a princípio, desde o nascimento pelo sexo biológico identificado, como também questões de orientações sexuais, isto é, as formas de se manifestar amor e de se realizar práticas sexuais.

Uma melhor compreensão desses processos identitários permite romper com estereótipos deterministas de maneira de ser e agir dos sujeitos em coletividade. Tais padrões, demarcados pela lógica da cis-heteronormatividade, funcionam como operacionais para se manter perspectivas sociais que violam liberdades individuais, sociais e políticas, a partir das relações sociais e de poder que se encontram em cada sujeito, em seu gênero e suas atrações afetivo-sexuais, ditas como dissidentes caso discordem das normas socialmente consensuadas.

Isso dá lugar à convicção de que o que escapa a esse contexto possa ser percebido como alguma falha no processo do desenvolvimento. Percebe-se, portanto, uma norma que visa definir as práticas sexuais e também o desempenho de papéis sociais. A cisnormatividade e a heteronormatividade, que definiram posições assimétricas do que deve ser o masculino e o feminino e qual a orientação sexual tida como normal em detrimento das demais, moldam a forma como cada um deve se comportar.

Quinalha (2018) pontua que as questões em torno da sexualidade na contemporaneidade ainda são carregadas de estigmas. Nos anos 1980, conseguiu-se despatologizar a homossexualidade, mas ainda é evidente a comparação e a avaliação negativa que é feita de todo aquele que difere do padrão imposto pelo sujeito considerado pretensamente universal, que pode ser caracterizado pela delimitação de homem, europeu, branco, heterossexual e cisgênero. Porchat (2013) comenta que a patologização do gênero cria um perigoso campo de relações de poder, entre o do ideal de sexo e de gênero.

Além de uma pejorativa inadequação, ser dissidente em sua identidade de gênero e orientação sexual é se revestir de um estigma. Sabe-se que “. . . os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava” (Goffman, 1891, p. 5). Nesta época, os sinais eram feitos literalmente no corpo e destacavam que quem o portava era, portanto, criminoso, e deveria ser evitado o contato com essa pessoa.

O sentido do termo ainda hoje faz referência ao seu original, aludindo negativamente quem porta determinados sinais. Hoje, o estigma está presente não somente quando existem marcas ou diferenças corporais, enquanto aspecto físico como em outras épocas, mas percebe-se expandido para questões comportamentais, como os associados a vivências LGBTs, uma vez que “. . . a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias” (Goffman, 1891, p. 5).

Dessa forma, as pessoas identificam os atributos que demonstram que uma pessoa é diferente das demais, pontuando-a como indesejável. “Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída” (Goffman, 1891, p. 4).

Goffman (1891) pontua ainda que “. . . um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor a atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus” (Goffman, 1891, p. 7).

Nesse contexto, em que se discute o imperativo da sociedade heteronormativa e cisnormativa, pode-se inferir a possível angústia do estigmatizado diante de tal percepção, o que possibilita desencadear extremos comportamentos para lidar com as diversas situações de preconceito e discriminação, ou mesmo antecipar-se a elas.

A psicanálise considera que o modo de funcionamento do mundo incide sobre o sujeito. Segundo Oliveira e Hanke (2017), há uma influência recíproca entre o sujeito e o mundo que o cerca. Assim, pode-se afirmar que todo ser humano sofre consequências das relações que mantém com outros seres humanos e com o mundo que o cerca. Nos dados identificados nesta pesquisa, pode-se perceber o impacto das relações nas motivações declaradas em relação às violências, estando presentes o conflito geracional e a questão da LGBTfobia como fatores precipitantes envolvidos na autoagressão.

Em um mundo cuja questão da sexualidade carrega conotação negativa, sustentar a sua sexuação diante do social não é tarefa fácil, pois isso definirá o modo como a sociedade vai reconhecer o sujeito, nomeá-lo e identificá-lo. Segundo Barreto (2010), a identidade de cada indivíduo é influenciada durante sua formação por diversos fatores, tais como biológicos, étnicos, culturais, escolhas individuais, entre outros. Ao citar Claval (1999), ressalta a identidade como uma construção cultural, definindo o indivíduo.

O autor considera que, na formação de uma identidade dissidente da heteronormatividade, fatores como o preconceito devem ser levados em consideração, uma vez que é possível que “. . . muitos indivíduos não exerçam de forma plena a sua identidade, vivendo ‘no armário’, pois a vivência plena dessa identidade acarretaria problemas ao exercer suas outras identidades . . .” (Barreto, 2010, p. 17).

São questões como essas que incidem sobre as pessoas, exigindo reflexões sobre o respeito à diversidade em tudo que toca o ser humano. Em relação aos dados por faixa etária, a população estudada apresenta a mesma tendência apontada para a população geral no Brasil e no exterior: a maior taxa de violência autoprovocada está entre os mais jovens (Monteiro et al., 2015; Plener et al., 2016).

O Ministério da Saúde, por meio do documento “Saúde Brasil 2014: uma análise da situação de saúde e das causas externas” (Brasil, 2015), indica que, entre os fatores microssociais mais importantes para o desencadeamento das ideações, tentativas e suicídio consumado, estão alguns acontecimentos da vida que afetam emocionalmente o indivíduo, como perdas pessoais, as diversas situações de violências, o isolamento social, os conflitos interpessoais, os relacionamentos interrompidos ou perturbados e, ainda, os problemas legais ou de trabalho.

Acrescenta que, nas primeiras fases da vida, são fatores consideráveis os diversos tipos de abuso, e as relações com as figuras de autoridade e amigos. Considera que, entre os idosos, traços de personalidade são os fatores mais diretamente relacionados. Segundo o documento, o suicídio pode ser visto como um sintoma da patologia social e de desintegração social (Brasil, 2015).

Considera-se que cada uma das variáveis analisadas neste trabalho, de algum modo, pode impactar na saúde, tendo como base a visão ampliada de saúde, em que os diferentes fatores sociais são determinantes desta condição.

Considerações Finais

Procurou-se caracterizar a violência autoprovocada a partir do Sistema de Vigilância e Acidentes (VIVA), com uma abordagem em torno das identidades de gênero e de orientação sexual LGBTs, para se conhecer o fenômeno. Os dados encontrados apontam que tal população vive estigmas a partir do estabelecimento social de normas pautadas pela cis-heteronormatividade, com impactos significativos em suas condições de saúde.

Dentre os limitadores deste estudo, está a prática da subnotificação, que é um dos grandes desafios para se elaborar e executar políticas públicas eficientes para esta população. Estima-se que o quantitativo dos dados disponíveis em relação à violência autoprovocada possa não representar a realidade, em função de vários fatores, como o fato de que, em alguns casos de autoagressão, as lesões não demandam atendimento específico, para fazer curativos ou procedimentos médicos. Além disso, algumas pessoas optam por partes do corpo pouco expostas, de difícil identificação por familiares ou pessoas próximas, o que acaba por dificultar a oferta de ajuda, já que algumas pessoas tencionam escondê-las, não recorrendo aos serviços de saúde. Essas situações, portanto, não estão contempladas nas estatísticas; sendo assim, o quantitativo identificado representa apenas uma parte das automutilações e tentativas de suicídio ocorridas e registradas no ano de 2016.

Outra limitação pode ser identificada em relação às tentativas de suicídio, uma vez que se estima que o número de casos que não aparecem nos registros é em torno de vinte vezes maior que os dados conhecidos. As possíveis causas podem estar associadas tanto às defasagens em treinamentos e capacitações dos profissionais de saúde (o que impacta no adequado preenchimento das fichas de notificação) quanto na necessidade de sensibilização para a identificação e abordagem de um assunto tão delicado, ainda envolto em tabus.

Com a Lei n. 13.819/19, que dispõe sobre a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e Suicídio, espera-se a ampliação das unidades notificadoras, incluindo as escolas públicas e privadas. Acredita-se que, a partir disso, haverá uma ampliação das discussões sobre o tema, novas propostas de treinamentos e esclarecimentos de fluxos.

Este conjunto de ações a serem observadas fomenta a possibilidade de identificação de casos tão logo se inicie o comportamento de automutilação, o que permite uma abordagem mais eficaz, a oferta dos recursos necessários e os encaminhamentos aos diferentes serviços – ressaltando, sobretudo, a importância da Rede de Atenção Psicossocial no manejo e na conduta dos casos, de forma intersetorial.

Por fim, neste contexto, os profissionais devem se pautar em diferentes documentos norteadores, para que fomentem a mudança em prol da valorização do ser humano e do respeito à diversidade, seja na assistência direta à população, seja na linha de frente dos serviços ou na construção das Políticas Públicas. Apesar dos desafios no enfrentamento às diversas formas de violência de modo a favorecer a saúde, acredita-se que os psicólogos continuarão neste debate, refletindo e construindo saberes que fomentem uma sociedade de direitos, livre de preconceitos e que permita a sadia vivência de todas as formas de identidades de gênero e orientação sexual.

Referências

Associação Americana de Psiquiatria (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. DSM-5 (5a ed.). Porto Alegre: Artmed.

Aratangy, E. W. (Org.), Russo, F. L., Giusti, J. S., & Cordás, T. A. (2017). Como lidar com a automutilação: Guia prático para familiares, professores e jovens que lidam com o problema da automutilação. (1ª ed.) São Paulo: Hogrefe.

Baére, F. (2019). A mortífera normatividade: o silenciamento das dissidências sexuais e de gênero suicidadas. Rebeh - Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, 2(1), 128-140.  Recuperado de http://www.revistas.unilab.edu.br/index.php/rebeh/article/view/225

Bahia, C. A., Avanci, J. Q., Pinto, L. W., & Minayo, M. C. S. (2017). Lesão autoprovocada em todos os ciclos de vida: perfil das vítimas em serviços de urgência e emergência de capitais do Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 22(9), p. 2841-2850. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017002902841&script=sci_abstract&tlng=pt

Barreto, R. C. V. (2010). Geografia da diversidade: Breve análise das territorialidades homossexuais no Rio de Janeiro. Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, 1(1), 14-20. Recuperado de http://www.revistas2.uepg.br/index.php/rlagg/article/view/1025

Botega, N, J. (2015). Crise suicida: Avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed.

Brasil. (2002). Ministério da Saúde. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Portaria MS/GM n. 737(16 de maio), publicada no DOU n. 96 seção 1e, de 18/5/01. Brasília, DF: Ministério da Saúde. Recuperado de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/acidentes.pdf

Brasil. (2011). Ministério da Saúde. Portaria n. 2.836 (1º de dezembro). Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT). Brasília, DF: Ministério da Saúde. Recuperado de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2836_01_12_2011.html

Brasil. (2013). Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. (1a ed., 1 reimp.). Brasília, DF: Ministério da Saúde. Recuperado de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_lesbicas_gays.pdf

Brasil. (2015). Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Saúde Brasil 2014: Uma análise da situação de saúde e das causas externas. Brasília, DF: Ministério da Saúde. Recuperado de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_brasil_2014_analise_situacao.pdf

Brasil. (2016). Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Viva: Instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. (2a ed.) Brasília, DF: Ministério da Saúde. Recuperado de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf

Brasil. (2017) Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Agenda de Ações Estratégicas para a Vigilância e Prevenção do Suicídio e Promoção da Saúde no Brasil: 2017 a 2020. Brasília, DF: Ministério da Saúde. Recuperado de https://www.neca.org.br/wp-content/uploads/cartilha_agenda-estrategica-publicada.pdf

Brasil. (2019) Lei n. 13.819 (26 de abril). Institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; e altera a Lei n. 9.656, de 3 de junho de 1998. Recuperado de http://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n%C2%BA-13.819-de-26-de-abril-de-2019-85673796

Bonita, R., Beaglehole, R., & Kjellström, T. (2010). Epidemiolgia Básica. (2a ed.). São Paulo: Editora Santos.

Butler, J. R. (2003). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Conselho Federal de Psicologia. (2018). Resolução n. 1 (29 de janeiro). Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. Brasil. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-01-2018.pdf

Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 510 (7 de abril). Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Publicada no DOU n. 98, terça-feira, 24 de maio de 2016, seção 1, páginas 44, 45, 46. Recuperado de http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf

D’Oliveira, C. F., & Botega, N. J. (2006). Prevenção do Suicídio – Manual dirigido a profissionais das equipes de saúde mental. Brasília, DF: Ministério da Saúde.

Garg, G., & Marwaha, R. (2018). Gender Dysphoria (Sexual Identity Disorders). StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing. Recuperado de https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/30335346

Goffman, E. (1891). Estigma – Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. (M. Lambert, Trad.). [Data da Digitalização: 2004].

Iannini, G., & Rodrigues, C. (2018). Psicanálise entre feminismos e femininos. Revista Cult., 238. Recuperado de https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-cult-psicanalise-e-feminismo/

Jucá, V. S. & Vorcaro, A. M. R. (2018). Adolescência em atos e adolescentes em ato na clínica psicanalítica. Psicologia USP, 29(2), 246-252. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642018000200246&script=sci_abstract&tlng=pt

Katz-Wise, S. L., Reisner, S. L., Hughto, J. M. W. & Budge, S. L. (2017). Self-Reported hanges in Attractions and Social Determinants of Mental Health in Transgender Adults. Archives of Sexual Behavior, 46(5), 1425-1439. doi: https://10.1007/s10508-016-0812-5

Minayo, M. C. S. (2006). Violência e Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz. (Coleção Temas em Saúde). Recuperado de https://portal.fiocruz.br/livro/violencia-e-saude

Monteiro, R. A., Bahia, C. A., Paiva, E. A., Sá, N. N. B. & Minayo, M. C. S. (2015). Hospitalizações relacionadas a lesões autoprovocadas intencionalmente-Brasil, 2002 a 2013. Ciência e Saúde Coletiva, 20(3), 689-699. Recuperado de https://www.scielosp.org/article/ssm/content/raw/?resource_ssm_path=/media/assets/csc/v20n3/pt_1413-8123-csc-20-03-00689.pdf

Oliveira, H. M., & Hanke, B. C. (2017). Adolescer na contemporaneidade: Uma crise dentro da crise. Ágora, XX(2), 295-310. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1809-44142017002001

Organização Mundial da Saúde. (2002). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS. Recuperado de https://www.opas.org.br/wp-content/uploads/2015/09/relatoriomundial-violencia- saude.pdf

Plener, P. L., Allroggen, M., Kapusta, N. D., Brahler, E., Fegert, J. M. & Gorschwitz, R. C. (2016). The prevalence of Non-suicidal Self-Injury (NSSI) in a representative sample of the German population. BMC PsychiatryBMC series – open, inclusive and trusted201616:353. Recuperado de https://bmcpsychiatry.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12888-016-1060-x

Porchat, P. (2013). Psicanálise, gênero e singularidade. Revista Faac Unesp, 2(2), 195-202. https://www3.faac.unesp.br/revistafaac/index.php/revista/article/download/135/60

Quinalha, R. (2018) O movimento LGBT brasileiro: 40 anos de luta. Revista Cult, 235. Recuperado de https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-o-movimento-lgbt-brasileiro-40-anos-de-luta/

Reisner, S. L., Vetters, R., Leclerc, M., Zaslow, S., Wolfrum, S., Shumer, D., & Mimiaga, M. J. (2015) Mental health of transgender youth in care at an adolescent urban community health center: a matched retrospective cohort study. Journal of Adolescent Health, 56(3), 274-279. doi: http://10.1016/j.jadohealth.2014.10.264

Scott, J. W. (1995). Gênero: Uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade, 15(2), p. 13.

Spack, N. P., Edwards-Leeper, L., Feldman, H. A., Leibowitz, S., Mandel, F., Diamond, D. A. & Vance, S. R. (2012). Children and adolescents with gender identity disorder referred to a pediatric medical center. Pediatrics, 129(3), 418-425. doi: http://10.1542/peds.2011-0907

Stevens, A. (1998). Adolescência, sintoma e puberdade. Clínica do Contemporâneo. Revista Les Feuilletes Du Cortil, 15. Recuperado de https://groups.google.com/forum/#!topic/lem2017uemg/jhEvisP_0C0

Teixeira Filho, F. S., & Marretto, C. R. A. (2008). Apontamentos sobre o atentar contra a própria vida, homofobia e adolescências. Revista de Psicologia da UNESP, 7(1), 19-19. Recuperado de http://seer.assis.unesp.br/index.php/psicologia/article/view/978

Teixeira-Filho, F. S., & Rondini, C. A. (2012). Ideações e tentativas de suicídio em adolescentes com práticas sexuais hetero e homoeróticas. Saúde e Sociedade, 21(3), 651-667. Recuperado de https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902012000300011

Veale, J. F., Watson, R. J., Peter, T., & Saewyc, E. M. (2017). Mental Health Disparities Among Canadian Transgender Youth. Journal of Adolescent Health, 60(1), 44-49. doi: http://10.1016/j.jadohealth.2016.09.014

Recebido em: 1º/12/2019

Última revisão: 24/01/2020

Aceite final: 30/11/2020

Sobre os autores:

Fabiane Cristina de Souza Alvim: Mestre em Gestão Integrada do Território pela Universidade Vale do Rio Doce (UNIVALE). Psicóloga concursada da Prefeitura Municipal de Ipatinga, MG. E-mail: souzafabianecristina@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1428-9111

Edmarcius Carvalho Novaes: Mestre em Gestão Integrada do Território pela Universidade Vale do Rio Doce (UNIVALE). Professor titular da Universidade Vale do Rio Doce, MG. E-mail: edmarcius@hotmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-1901-0167

Eunice Maria Nazarethe Nonato: Doutora em Ciências Sociais. Professora titular da Universidade Vale do Rio Doce (UNIVALE), MG. E-mail: eunice.nonato@univale.br, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-3583-3777

Leonardo Oliveira Leão e Silva: Doutor em Saúde Coletiva. Enfermeiro. Professor adjunto do curso de Medicina da Universidade do Vale do Rio Doce (UNIVALE). E-mail: leonardo.silva@univale.br, Orcid: http://orcid.org/0000-0001-7482-7471


1 Endereço de contato: Rua Nove de Abril, 32, Bairro das Águas, Ipatinga, MG, CEP 35160-163. Telefone: (31) 99616-3434. E-mail: souzafabianecristina@gmail.com

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa. v13i4.1200