Redução de Danos em um CAPSad: Discursos e Práticas Profissionais
Harm Reduction in a CAPSad: Professional’s Discourses and Practices
Reducción de Daños en un CAPSad: Discursos y Prácticas Profesionales
Caroline Albertin Reis
Daniele de Andrade Ferrazza1
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Resumo
A presente pesquisa teve como objetivo analisar discursos e práticas de profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPSad), com especial atenção às ações na perspectiva da Política de Redução de Danos. Foram realizadas observações participantes no dispositivo de saúde e entrevistas semiestruturadas com cinco profissionais da equipe. A partir da análise das entrevistas e do diário de campo, produzido por meio das observações realizadas naquele dispositivo de saúde, foram criadas cinco categorias temáticas. Conclui-se que as dificuldades da equipe em reconhecer as estratégias de Redução de Danos resultam de diversos impasses quanto ao planejamento e sua execução no âmbito do serviço analisado e que podem estar relacionadas à formação dos profissionais de saúde na atualidade brasileira, a qual, geralmente, parece distante e descontextualizada das atuais problemáticas que envolvem o cuidado e acolhimento do usuário de álcool e outras drogas
Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica, CAPSad, Saúde Mental, Redução de Danos
Abstract
This research aimed to analyze speeches and practices of professionals from a Community Mental Health Services for Alcohol and Other Drugs (CAPSad), with special attention to actions from the perspective of the Harm Reduction Policy. Observations were made in the health device and semi-structured interviews were carried out with five team members. From the analysis of the interviews and the field diary, produced through the observations made in that health service, five thematic categories were created. It is concluded that the difficulties of the team in recognizing the Harm Reduction strategies result from several impasses regarding the planning and its execution in the scope of the analyzed service and that it may be related to the training of health professionals in the present time in Brazil, which generally seem distant and decontextualized from the current problems that involve the care and reception of users of alcohol and other drugs
Keywords: Psychiatric Reform, CAPSad, Mental Health, Harm Reduction
Resumen
Esta investigación tuvo como objetivo analizar discursos y prácticas de profesionales de un Centro de Atención Psicosocial para el Alcohol y Otras Drogas (CAPSad), con especial atención a las acciones desde la perspectiva de la Política de Reducción de Daños. Las observaciones en el dispositivo de salud y las entrevistas semiestructuradas se llevaron a cabo con cinco miembros del equipo. A partir del análisis de las entrevistas y el diario de campo, elaborado a través de las observaciones realizadas en ese dispositivo de salud, se crearon cinco categorías temáticas. Se concluye que las dificultades del equipo para reconocer las estrategias de Reducción de Daños son el resultado de varios impases con respecto a la planificación y su ejecución en el servicio y que pueden estar relacionadas con la capacitación de profesionales de la salud en la situación brasileña actual, la cual parece distante y descontextualizada de los problemas relacionados con el cuidado y la recepción del usuario de alcohol y otras drogas
Palabras clave: Reforma Psiquiátrica, CAPSad, Salud Mental, Reducción de Daños
Introdução
A Reforma Psiquiátrica não deve ser entendida como um movimento que se findou depois da aprovação da Lei n. 10.216/2001, também conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica. O movimento reformista deve ser compreendido como um processo de cunho social amplo e complexo, que está em constante construção e transformação (Amarante, 2007). O questionamento das instituições manicomiais, que foram historicamente denunciadas pela violação de Direitos Humanos, só foi possível devido a intensas pressões e manifestações por parte dos trabalhadores, usuários e pesquisadores na área da saúde mental, que estiveram articulados em movimentos sociais e políticos, na luta por reinvindicações de um conjunto de transformações nos setores teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-político e sociocultural.
O movimento da Reforma Psiquiátrica não tem como objetivo promover a renovação dos espaços manicomiais, mas sim a inovação das práticas, dos discursos e dos serviços de saúde mental oferecidos no país. Dessa forma, faz-se necessária a eliminação das instituições manicomiais que sempre funcionaram de acordo com o modo asilar e sob a lógica da exclusão e do isolamento, para a implantação de serviços substitutivos de base territorial, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e toda a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (Yasui, 2006).
A regulamentação dos CAPS deu-se por meio da portaria n. 336/GM, instituída em 19 de fevereiro de 2002, que prevê a ampliação dos dispositivos substitutivos ao manicômio e que propõe diferentes complexidades de CAPS, classificados e diferenciados de acordo com a especificidade do atendimento. Entre os diferentes dispositivos de saúde mental, destacam-se os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPSad). Anteriormente à criação dos CAPSad, a saúde pública no Brasil não possuía políticas específicas para o tratamento das questões relacionadas ao uso abusivo de álcool e de outras drogas, o que proporcionava a abrangência de tratamentos exclusivamente médicos, de caráter autoritário, moral e religioso, que visava à abstinência integral do sujeito (Ministério da Saúde, 2003). Após a III Conferência Nacional de Saúde Mental, que ocorreu no ano de 2001, o Ministério da Saúde reconheceu o abuso de álcool e de outras drogas como um problema de saúde pública e criou, no ano de 2002, o CAPSad, orientado pela perspectiva da Política de Redução de Danos (RD) (Ministério da Saúde, 2003).
As estratégias de RD compreendem um conjunto de ações que se baseiam em uma lógica e uma ética pautadas na atenção e no cuidado às pessoas em sofrimento psíquico. Dessa forma, as práticas de RD não estão centradas unicamente na diminuição do uso abusivo das substâncias psicoativas, mas também compreendem um conjunto de ações de caráter preventivo e educativo, que podem ocorrer por meio de campanhas e distribuição de materiais informativos, por meio de estratégias de promoção de saúde e cuidado que devem ser ofertadas nos estabelecimentos de saúde de base territorial, bem como orientações a respeito das drogas, de seus efeitos no organismo e de como minimizar suas consequências nocivas para melhorar a qualidade de vida (Lopes, 2016).
A Política de RD preza pelos Direitos Humanos, principalmente o direito de escolha dos usuários e o exercício de sua autonomia; sendo assim, não tem respaldo na lógica proibicionista e também não apresenta como meta exclusiva a abstinência integral do sujeito, tem menor exigência e é mais flexível, o que garante índices mais baixos de desistência ao tratamento, como mostram pesquisas atuais (Teixeira et al., 2018; Conte et al., 2004). Nesse sentido, as ações são construídas em um trabalho colaborativo, por meio da criação de vínculos estabelecidos entre os profissionais envolvidos com o usuário, os familiares e a sociedade. Para tanto, as práticas devem ser traçadas pela equipe de saúde junto ao usuário, de modo a preconizar sua participação ativa e corresponsabilidade no tratamento, levando em consideração seu meio social, suas necessidades e história pessoal, sem que haja a estigmatização, a culpabilização, a disseminação de discursos autoritários e o enquadramento do sujeito dentro de um método de tratamento universal, pautado no paradigma psiquiátrico e moralista da abstinência (Adorno, 2017; Conte et al., 2004).
Entretanto, destacam-se as dificuldades na implantação das práticas de RD nos serviços de saúde na atualidade e na mudança dos discursos e práticas dos profissionais que os compõem (Batista et al., 2019; Calassa et al., 2015). Diante dessa problemática, o presente artigo teve por objetivo analisar os discursos e as práticas dos profissionais de saúde de um CAPSad de um município do interior do estado do Paraná, com especial atenção às ações na perspectiva da Política Nacional de Redução de Danos.
Desse modo, na primeira parte deste trabalho, buscamos identificar qual a compreensão dos profissionais sobre a Reforma Psiquiátrica e sobre as propostas de atenção e cuidado psicossocial oferecidos nos serviços substitutivos à internação manicomial. Na segunda etapa, descrevemos o funcionamento do serviço, a atuação da equipe de saúde e as intervenções terapêuticas oferecidas aos usuários do CAPSad. Em um terceiro momento, analisamos as concepções daqueles trabalhadores sobre o tema das internações psiquiátricas e das prescrições de tratamentos baseados exclusivamente na abstinência dos usuários de álcool e de outras drogas. Na quarta parte, investigamos a compreensão dos entrevistados sobre a formação e capacitação profissional para atuar nos serviços de saúde na lógica da Atenção Psicossocial e das Políticas de RD. E, por fim, verificamos a existência de ações de RD ofertadas aos usuários de álcool e outras drogas e se ocorrem dificuldades para implementá-las naquele serviço de saúde mental.
Método
A presente pesquisa qualitativa e exploratória foi realizada em um CAPSad de uma cidade do interior do Estado do Paraná. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas e observações participantes para conhecer o funcionamento do serviço e analisar discursos e práticas profissionais da equipe de saúde, o que possibilitou observar e interagir diretamente, com intuito também de compreender nuances que escapam à entrevista (Cruz Neto, 2001). O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Maringá (UEM) (CAAE n. 66954617.7.0000.0104). Foram garantidos o sigilo e a confidencialidade e, neste artigo, todos os entrevistados tiveram a identificação modificada por nomes fictícios.
Na primeira parte da pesquisa, foram realizadas observações participantes, durante três meses, na sala de recepção, no espaço de convivência e nos corredores do CAPSad do município estudado. Mais especificamente, realizamos o acompanhamento de um grupo de mulheres usuárias do serviço, de um grupo de homens e mulheres que participavam de oficinas terapêuticas e nas abordagens e nos acolhimentos que ocorriam diariamente. Ao longo das observações, foram realizadas anotações em um diário de campo, que continha a descrição das atividades, bem como todas as percepções e impressões correspondentes à rotina acompanhada naquele dispositivo de saúde (Cruz Neto, 2001). Na segunda parte da pesquisa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com trabalhadores da equipe de saúde do CAPSad, com a finalidade de compreender a atuação profissional naquele serviço e as ações de RD. Ao todo, foram feitas entrevistas com cinco profissionais da equipe de saúde (o coordenador do serviço, uma psicóloga, uma enfermeira, uma terapeuta ocupacional e uma assistente social2), que foram gravadas e transcritas para, posteriormente, serem analisadas.
Para o desenvolvimento das discussões tecidas ao longo da pesquisa, utilizou-se a análise de conteúdo temático, proposta por Bardin (1977), como estratégia para analisar as informações coletadas e descritas no diário de campo e nas entrevistas. Tal técnica tem por objetivo facilitar o desvelamento do que é considerado como evidente dentro daquilo que está sendo comunicado. Para tanto, primeiramente, foi realizada a compilação e leitura atenta do material; em um segundo momento, foram identificados os aspectos recorrentes e que auxiliaram na constituição dos eixos temáticos, e, assim, as análises foram elaboradas mediante as unidades temáticas e as articulações com outras pesquisas e estudos sobre os temas elencados. Os eixos temáticos designados para a realização da análise e discussão foram: (1) A Reforma Psiquiátrica: discursos sobre avanços e retrocessos; (2) Sobre o funcionamento do CAPSad: aproximações e distanciamentos das ações de Redução de Danos; (3) Sobre internações, abstinência e a reprodução da lógica manicomial em discursos e práticas profissionais; (4) Formação dos profissionais para atuarem nos serviços de Saúde Mental e (5) Sobre as estratégias de Redução de Danos utilizadas pela equipe do CAPSad.
Resultados e Discussão
A Reforma Psiquiátrica: Discursos sobre Avanços e Retrocessos
Nesses 40 anos de mobilizações antimanicomiais, são inegáveis as conquistas marcadas pelo fechamento de mais de 80 mil leitos em hospitais psiquiátricos no país (Ministério da Saúde, 2015) e pela aprovação de políticas que asseguraram a implantação e o financiamento de serviços substitutivos à internação manicomial (Yasui, 2006). Contudo, no atual cenário sociopolítico brasileiro, definido por políticas neoliberais reacionárias, pelo sucateamento de Políticas Públicas de Saúde e pelo investimento em ações retrógradas e antidemocráticas relacionadas à revogação de portarias que sustentam o financiamento da RAPS, há a constituição de um movimento de contrarreforma na política de Saúde Mental no país (Emerich et al., 2020). O processo social complexo da Reforma Psiquiátrica culminou no interesse em analisar a compreensão que os profissionais da equipe de saúde têm a respeito do tema e a correlação com o trabalho que exercem naquele CAPSad. Um dos entrevistados fez a seguinte análise sobre o processo da Reforma Psiquiátrica:
Eu acho que é uma mudança de paradigma muito profunda, é outra compreensão, outra forma de ver, . . . não é porque tem CAPS que tem reforma psiquiátrica! É preciso mudar todo o processo, toda compreensão que nós temos que ter sobre saúde mental. É um movimento de luta em aberto, um campo de disputa, de tensionamento. . . (Psicólogo/coordenador do CAPSad, comunicação pessoal, 22 de agosto, 2017).
Além do exposto, outro profissional relata a respeito da dinâmica do Movimento da Reforma Psiquiátrica: “. . . ainda é um processo que está em construção e que a gente tem que rever todos os dias, . . . sempre repensando, refletindo e reconstruindo. . .” (Enfermeira, comunicação pessoal, 29 de setembro, 2017). Ambos os profissionais fazem uma leitura relevante acerca do Movimento Antimanicomial, uma vez que entendem a processualidade e as complexidades que envolvem o fenômeno. As mudanças necessárias estão para além de um campo específico, mas sim compõem a articulação de um conjunto múltiplo de dispositivos e perpassam por uma constante “. . . luta política, institucional, legal, cultural visando o investimento em novas formas integrais de cuidado humano” (Vasconcelos, 2008, p. 78).
O entendimento desse processo histórico e social de conquistas no campo da Saúde Mental é fundamental para orientar a prática dos profissionais que hoje atuam nos serviços substitutivos, de modo que possam executar ações críticas e orientadas pela lógica da Atenção Psicossocial. Em um dos depoimentos, o profissional afirma: “A gente vive um novo paradigma em relação ao sistema psiquiátrico antigo . . . dentro do hospital você tem reclusão, você prende o indivíduo, e aqui no CAPSad, não. Aqui temos que se apegar na humanização, no vínculo, no acolhimento” (Enfermeira, comunicação pessoal, 29 de setembro, 2017).
Ao longo das entrevistas, foi possível notar que algumas das características manicomiais, como a noção de reclusão, contenção e exclusão social, inerentes ao paradigma hospitalocêntrico e biologicista ainda hegemônico na atualidade, foram foco de reflexão dos profissionais em diversos momentos. Segundo Pitta (2011, p. 4.588), no CAPS, “O tratamento deixa de ser a exclusão em espaços de violência e morte social para tornar-se criação de possibilidades concretas de subjetivação e interação social na comunidade”. Nesse sentido, para um dos profissionais, a Reforma Psiquiátrica compreende “. . . o indivíduo dentro de uma integralidade, ele dentro do contexto social e cultural, trabalha-se com a questão da liberdade” (Psicóloga, comunicação pessoal, 15 de setembro, 2017).
Porém, foi possível identificar também, ao longo das narrativas, imprecisões e desconfortos na articulação entre os conteúdos evocados. Nesse sentido, um dos entrevistados relata que se sente despreparado para lidar com “algumas” questões referentes às drogadições, por considerar que “determinados” aspectos do tratamento deveriam ser mais bem trabalhados pela equipe, já que “. . . a falta de conhecimento teórico pode prejudicar” no desenvolvimento do tratamento (Terapeuta ocupacional, comunicação pessoal, 10 de outubro, 2017). Aquelas dificuldades, que se tornam perceptíveis ao longo dos discursos proferidos, podem, em alguns momentos, refletir em práticas com resquícios manicomiais, a despeito de serem executadas dentro de um serviço substitutivo. Nessa perspectiva, entende-se que “. . . o que deve ser problematizado é a lógica manicomial que pode estar presente nas práticas dos CAPS, pois sem romper com esse modo de funcionamento, podem estar sendo disseminados mini-manicômios pela cidade” (Dias, 2008, p. 88). Além disso, torna-se imprescindível a compreensão de que o processo de mudanças, que está relacionado tanto ao Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil quanto à implantação das Políticas de RD nos CAPSad, é recente e exige dos profissionais estudos e capacitação frequente de suas práticas e discursos (Batista et al., 2019).
Sobre o CAPSad: Aproximações e Distanciamentos das Ações de Redução de Danos
Compreende-se que os CAPS “. . . devem buscar trocas sociais por meio de ações com toda a rede, objetivando o enfrentamento do estigma e a produção de autonomia dos sujeitos através de ações integradas” (Leal & Antoni, 2013, pp. 90-91), que devem estar em consonância com a Lei da Reforma Psiquiátrica, os princípios e as diretrizes do SUS e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Além disso, as ações do CAPS também precisam estar vinculadas “. . . com várias áreas do saber − sociologia, educação, direito, etc. − modelando o cuidado pelos pressupostos da RD . . .” (Lima Junior et al., 2017, p. 162), que incluem ações preventivas, educativas, de cuidado e promoção de saúde e vida. É por meio dessa perspectiva transversalizadora de práticas e saberes que a atenção integral aos usuários de drogas pode ser contemplada nos diferentes dispositivos da RAPS (Lopes, 2016).
Com relação ao funcionamento do CAPSad analisado, foi possível observar o fluxo de pessoas no serviço e um processo de esvaziamento da instituição. Aspecto também problematizado pelos profissionais da equipe que apontam possíveis motivos relacionados ao desconhecimento da população e a falta de informação a respeito do local, o que poderia culminar na baixa procura e na pouca frequência de usuários no serviço. Uma das profissionais menciona que a ausência de divulgação do serviço é uma dificuldade que precisa ser enfrentada: “Nos serviços públicos . . . não saímos divulgando, não tem propaganda em lugar nenhum” (Assistente social, comunicação pessoal, 10 de setembro, 2017). Contudo, aquela profissional considera que não é responsabilidade da equipe de saúde promover estratégias de divulgação do CAPSad à população em geral. Em contraposição, outro profissional, ao mencionar sobre a dinâmica do CAPS, relata que:
. . . nós temos que ir até o território, nós temos que estar nas praças, nós temos que estar nas UBS, nós temos que estar nas discussões com o Centro POP. Se a gente ficar preso aqui dentro, não é CAPS, é qualquer coisa, e não CAPS . . . a equipe tem que sair, tem que se deslocar (Psicólogo/coordenador do CAPSad, comunicação pessoal, 22 de agosto, 2017).
A fala destoante dos dois profissionais expressa as diferentes concepções e
posicionamentos a respeito da forma como o dispositivo da RAPS deve conduzir suas ações
em saúde, o que parece denotar certa dificuldade e/ou fragilidade de comunicação entre os
profissionais do CAPSad em questão.
Com relação à atuação da equipe de saúde, os profissionais do CAPSad mencionam sobre a importância de a equipe ser composta por diferentes áreas do conhecimento. Explicam que “O paciente passa pela avaliação individual de todos os profissionais que trabalham no serviço . . .” e que “. . . no conhecimento de cada categoria profissional” (Assistente social, comunicação pessoal, 10 de setembro, 2017) eles realizam a elaboração de um Projeto Terapêutico Singular (PTS). Para tanto, um dos profissionais diz que
. . . a pessoa não entra no CAPSad para falar com o psiquiatra – embora ela queira –, ela vai sim, falar com o psiquiatra, mas também com o psicólogo, com o terapeuta ocupacional, com o assistente social, com o enfermeiro. Porque essa é a compreensão de integralidade do sujeito . . . (Psicólogo/coordenador do CAPSad, comunicação pessoal, 22 de agosto, 2017).
Porém, no decorrer das observações participantes da pesquisadora no CAPSad, foram identificadas poucas interações entre os profissionais que conduziam suas atividades dentro de suas respectivas salas de atendimento, principalmente, individual. Compreende-se que, para a efetivação de um PTS, este deve ser construído em constante diálogo entre todos os profissionais da equipe e elaborado com estratégias de corresponsabilização do usuário no seu próprio tratamento, a partir de suas demandas, desejos e da sua condição singular (Ferrazza & Rocha, 2020). Além disso, identificou-se que, em contraposição ao exposto por um dos profissionais que comentava sobre o aumento “crescente da dependência química” (Assistente social, comunicação pessoal, 10 de setembro, 2017) no município, foi observado um número muito reduzido de pessoas frequentando as atividades desenvolvidas no serviço. A dificuldade de acesso ao CAPSad, construído em uma das regiões periféricas da cidade, é, inegavelmente, um fator importante. Contudo, também é necessário destacar que, em dias de consulta clínica com o psiquiatra, o cenário se diferenciava, e o CAPSad era tomado por um aumento significativo de usuários. Assim, apesar de os profissionais mencionarem que não há uma centralidade no saber psiquiátrico, a atenção e o cuidado aos usuários de álcool e de outras drogas ainda podem estar sendo realizados de forma fragmentada e permeada pela “. . . forte marca do modelo médico-psiquiátrico” (Lima Junior et al., 2017, p. 161). Ainda, segundo os autores, “O trabalho e a formação em saúde, mesmo ao considerar necessárias a interdisciplinaridade e a transversalidade, ainda não superaram a centralidade” (Lima Junior et al., 2017, p. 157) da clínica médica e do saber-poder psiquiátrico que, pautado na lógica proibicionista e manicomial, veicula discursos e práticas disciplinares, tutelares e excludentes (Ferrazza & Rocha, 2020).
Sobre Internações, Abstinência e a Reprodução da Lógica Manicomial em Discursos e Práticas Profissionais
Na perspectiva psiquiátrica proibicionista, a condução do tratamento de pessoas com problemas decorrentes do uso abusivo de álcool e de outras drogas será exclusivamente a internação em instituições totais (Goffman, 1961/2001), consideradas essenciais para evitar “. . . as indesejáveis interferências da vida social” (Amarante, 2009, p. 2). Nesse sentido, é comum que os usuários do CAPSad relatem o desejo de serem internados nas denominadas comunidades terapêuticas. A justificativa de muitos com relação a esse desejo é de que pretendem se distanciar do contexto em que vivem, porque só assim consideram ser possível se “livrar” da substância psicoativa, da droga ilícita ou lícita. Um dos profissionais entrevistados relata: “. . . a gente atende muito familiar vindo desesperado para internar compulsoriamente seu filho, o seu marido. . .”. Além disso, o mesmo profissional diz ser comum ouvir de usuários e familiares frases como: “Eu preciso me isolar”, “Eu preciso me internar”, “Ele tem que ficar uns nove meses fora”, “Ele não pode ficar naquele meio” (Psicólogo/coordenador do CAPSad, comunicação pessoal, 22 de agosto, 2017), o que demonstra a forte crença de que o isolamento é o único recurso terapêutico (Amarante, 2009).
O município tem um Hospital Psiquiátrico (HP), entidade privada, com convênio junto ao SUS e que, após inspeção, no ano de 2018, foi denunciado pelas inúmeras violações de direitos das pessoas internadas na instituição, conforme mostrou o Relatório de Inspeção Nacional de Hospitais Psiquiátricos no Brasil, documento organizado em uma parceria do Conselho Federal de Psicologia (CFP), do Ministério Público Federal e do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura (Conselho Federal de Psicologia, 2019). Aquela instituição manicomial, marcada historicamente pela violência e por maus-tratos, foi a primeira na região a prestar assistência às pessoas em intenso sofrimento psíquico e/ou usuárias de álcool e de outras drogas, e ainda continua a ter uma “. . . função estruturante na rede de serviços de atenção à saúde mental no município” (Burali, 2014, p. 135). Talvez este seja um dos motivos pelo qual é comum ouvir dos profissionais do CAPSad que “. . . muitos usuários procuram direto o Hospital Psiquiátrico” (Psicóloga, comunicação pessoal, 15 de setembro, 2017) para serem atendidos, mesmo que “. . . nem todos os casos que vão para o Hospital Psiquiátrico . . . teriam necessidade de ir” (Assistente social, comunicação pessoal, 10 de setembro, 2017), o que pode representar a presença persistente da cultura da internação entre a população (Yasui, 2006). Nas palavras do coordenador do serviço e psicólogo: “A dimensão sociocultural ainda é um grande limitante, as pessoas, de modo geral, ainda querem respostas rápidas, como o isolamento”. Nessa perspectiva, é necessário ressaltar que as ações em saúde mental planejadas pelos dispositivos da RAPS precisam envolver a comunidade, o meio cultural e social ao qual estão inseridos, para que, assim, em uma ação conjunta, possam criar tanto as estratégias de desconstrução da imagem do usuário de drogas como doente e/ou marginal quanto desconstruir concepções de que o tratamento deve ser pautado na abstinência, no isolamento e na internação (Adorno, 2017).
Nas observações participantes, também foi possível identificar discursos e práticas de profissionais da saúde ainda permeados por resquícios manicomiais, principalmente no que se refere à normatização e adaptação do usuário de drogas, considerado como aquele que tem um desvio de comportamento e que precisa ser reajustado, disciplinado, controlado, como comenta uma das profissionais, que propõe “. . . adequar, adaptar, construir novos modos . . . trazer esse fazer o mais próximo do normal ou o mais saudável e agradável possível” (Assistente social, comunicação pessoal, 10 de setembro, 2017). Concepções próximas às análises de Foucault (2006) sobre o saber-poder psiquiátrico, o qual determina o controle biopolítico de corpos pautados por uma lógica binária que define padrões de normalidade versus anormalidade e que submete os considerados anormais a estratégias disciplinares de tutela, a fim de reduzir supostos desvios, corrigir erros e adaptar os sujeitos à sociedade normativa. Além disso, não são raras as atitudes de profissionais da equipe de saúde que infantilizam os usuários daquele serviço de saúde mental com ações que surgem “no sentido de corrigir” e “educar os comportamentos” (Yasui, 2006, p. 135).
A realização de observações participantes em dois grupos, cujas temáticas e os modos de execução eram muito diferentes, possibilitou a constatação de que há discursos e práticas que se contradizem em diversos momentos com as estratégias de tolerância, acolhimento, cuidado e respeito à diversidade propostas pelo paradigma da Atenção Psicossocial (Amarante, 2007). O modo como uma das profissionais dirigia a sua prática e coordenava a dinâmica das relações intergrupais evidencia uma postura disciplinatória, repressiva, autoritária e de pouca abertura para que os usuários participassem e expressassem seus conflitos.
Embora o Movimento da Luta Antimanicomial, resultado de um processo de insatisfações com o modelo psiquiátrico, tenha possibilitado a concretização dos CAPS, ainda é possível notar resquícios do paradigma manicomial, que ressurge, permeado por sutilezas, por meio de discursos e práticas de alguns profissionais. Aspecto que também pode estar relacionado com a formação dos trabalhadores da equipe de saúde.
Formação dos profissionais para atuarem nos serviços de Saúde Mental
Devido à complexidade que envolve um processo de mudança paradigmática, os profissionais da saúde mental encontram dificuldades ao se depararem com a responsabilidade de promover as inovações dos serviços, de suas práticas e discursos até então utilizados. Grande parte daqueles profissionais são resultantes de uma formação tradicional que, por sua vez, tem sustentação em uma carga histórica permeada pelo modelo hegemônico hospitalocêntrico, o qual se centra em uma perspectiva biologicista e de visão fragmentada do humano (Amarante, 2007; Yasui, 2006). Desse modo, “A formação dos profissionais da área da saúde tem se mostrado um fator limitante na produção do cuidado no campo da saúde mental” (Schneider et al., 2009, p. 400). Mais especificamente, é possível observar que a ausência de discussões e cursos sobre o tema relacionado aos cuidados com usuários de álcool e de outras drogas também culmina em concepções e práticas pautadas pelo paradigma manicomial e proibicionista. Um dos entrevistados comenta:
A substância é algo ilusório que veio para fantasiar, eu até traço ela aqui como uma “bruxa maligna”, que te seduz, te promete milhões de coisas boas, mas, quando você menos espera, ela se mostra como verdadeiramente é! . . . a substância nos deteriora, deteriora a vida social, familiar, o trabalho, é prejudicial para a vida (Terapeuta ocupacional, comunicação pessoal, 10 de outubro, 2017).
Posicionamentos que deixam transparecer as concepções negativas, moralistas e normativas, calcadas no senso comum, e que permeiam a compreensão sobre o uso de drogas como “fonte do mal” (Batista et al., 2019). Argumentos que parecem pautados no paradigma de “guerra às drogas”, cujas concepções conservadoras e morais sempre fundamentaram ideias de que a substância deve ser eliminada (Adorno, 2017).
Nesse sentido, foi possível identificar, tanto por meio das observações participantes quanto pelas entrevistas realizadas com os profissionais, que grande parte da equipe parece apresentar dificuldades para atuar com as questões referentes à saúde mental e, principalmente, os aspectos que envolvem o cuidado aos usuários de álcool e de outras drogas. Os entrevistados relataram a superficialidade das discussões sobre os temas da saúde mental nas disciplinas ofertadas nas graduações dos cursos de saúde e a inexistência de matérias que abordassem questões referentes às drogadições. “Observa-se que conteúdos sobre o uso de drogas não são disponibilizados no percurso da formação em saúde” (Lima Junior et al., 2017, p. 158). No que tange à formação e capacitação profissional no campo da saúde mental, um dos entrevistados comenta que:
. . . falar de CAPS, de reforma psiquiátrica a gente viu muito pouco. . . mas pra mim estava fechado e resolvido, reforma psiquiátrica é isso! Tem CAPS? Tá pronto! Trabalho em CAPS, álcool e drogas, trabalho em CAPSad não vi nada, não tive isso na graduação (Psicólogo/coordenador do CAPSad, comunicação pessoal, 22 de agosto, 2017).
Outro apontamento feito pelos profissionais refere-se à falta de capacitação fornecida pelo município no tocante ao tema álcool e outras drogas. Em diversos momentos, os profissionais manifestam insatisfações diante do investimento em capacitações e formações sobre o assunto:
Aqui, no município, não tem uma qualificação para entrar na saúde mental. A princípio, é como se você entrasse em um quarto escuro, você vai tateando pra saber como é que você vai trabalhar, mas falar que eu fui qualificada pra trabalhar dentro da saúde mental, não! As capacitações surgiram de maneira muito recente. Claro que tinha assim: “Ah! Vai ter capacitação em DST. . .”, ou seja, coisas clínicas, orgânicas, mas nunca capacitação na saúde mental (Enfermeira, comunicação pessoal, 29 de setembro, 2017).
Além da falta de capacitações em saúde mental e nas temáticas referentes aos cuidados ao usuário de substâncias psicoativas, foi possível perceber que os trabalhadores são convocados a compor uma equipe dentro de um serviço de saúde especializado sem que haja um treinamento para atuarem em seus respectivos cargos. Desse modo, relatam que os conhecimentos adquiridos ao longo dos anos foram elaborados por meio de iniciativas próprias. Nesse sentido, faz-se necessário o investimento em cursos de formação e capacitação para profissionais de saúde que abordem temas sobre a atuação nos serviços substitutivos à internação manicomial, pautados na perspectiva ética-política da Atenção Psicossocial, o que possibilitará a construção de ações de enfrentamentos aos desafios e retrocessos no âmbito das políticas públicas de saúde mental também direcionadas à população usuária de álcool e de outras drogas.
Sobre as Estratégias de Redução de Danos Utilizadas pela Equipe do CAPSad
As políticas que regulamentam a implantação das ações de RD nos espaços institucionais de saúde do SUS estão em vigor desde o ano de 2003 (Ministério da Saúde, 2003), mas, evidentemente, ainda parece ser pouco conhecida entre alguns trabalhadores da saúde (Batista et al., 2019). Tratar do tema das Políticas de RD ainda é adentrar em um terreno delicado, no qual a falta de compreensão por parte dos profissionais esbarra em uma dificuldade ainda maior, que é a de desconstruir a associação historicamente estabelecida entre RD e apologia ao uso de drogas. Nessa perspectiva, o rompimento com pontos de vista morais e religiosos, além de concepções pautadas no uso de drogas como doença, é essencial “. . . para à [sic] aceitação e à adoção de estratégias de RD” (Batista et al., 2019, p. 12). Contudo, foi possível notar, por meio das colocações de um dos profissionais, que não há uma compreensão exata sobre os princípios que orientam as ações de RD:
Então, Política de RD? Olha, eu ainda me sinto leiga nessa nova política, no sentido que, nós aplicamos, mas eu tenho necessidade ainda de uma maior compreensão, de uma maior capacitação, então, eu não consigo te responder de uma maneira mais eficaz (Terapeuta ocupacional, comunicação pessoal, 10 de outubro, 2017).
A perspectiva da RD pode ser compreendida como um conjunto de ações contrárias à lógica repressiva; nesse sentido, para um dos profissionais entrevistados, “O opositor da Redução de Danos é o proibicionismo” (Psicólogo/coordenador do CAPSad, comunicação pessoal, 22 de agosto, 2017). Dessa forma, cabe aos profissionais que trabalham com a temática reconhecer as diferentes “relações de uso de drogas” que podem ser estabelecidas pelos usuários e, mediante o acolhimento e a escuta, tentar promover a reflexão, “. . . possibilitando o reconhecimento da função que esse uso” (Conte et al., 2004, p. 64) ocupa na vida de cada um dos usuários. Por meio de uma atuação singular, os profissionais poderão “. . . reconhecer as vulnerabilidades sociais, individuais e programáticas” de cada caso (Batista et al., 2019, p. 6) e construir recursos junto aos usuários para o fortalecimento e autocuidado, importantes processos para o pleno exercício da cidadania.
Com relação às concepções que os trabalhadores do CAPSad analisado têm sobre
as práticas de RD, a primeira associação que alguns deles fazem é a de que as
principais estratégias são a substituição de uma substância por outra que seja menos
prejudicial à saúde e a diminuição do padrão de consumo. Os profissionais também expuseram que “Redução de Danos não é só uma questão de disponibilização de insumos, mas sim tudo que você tem de abertura para o sujeito” (Psicóloga, comunicação pessoal, 15 de setembro, 2017). Compreensões que contemplam o paradigma da RD, iniciado por meio da distribuição de insumos, com a troca de seringas, mas que “. . . tomou significações de laço social, de inclusão e de cidadania” (Conte et al., 2004, p. 76).
Outro aspecto norteador e que é de fundamental importância para orientar a prática
dos profissionais com base na RD é o respeito aos desejos, às condições, às
limitações e, principalmente, às escolhas feitas por cada indivíduo no que tange ao seu
tratamento. Ao encontro dessa perspectiva, um dos trabalhadores faz as seguintes
reflexões sobre o que considera ser a essência da RD:
. . . priorizar a autonomia do usuário, não ter uma receita a priori que vá
massificar e dizer para todo mundo: “esse é o caminho, é isso que funciona”, de
entender o ritmo do usuário, olhar para a singularidade do sujeito e ajudar a
criar um caminho de autocuidado junto com ele. E não é só um processo de
entregar insumos, não é só um processo de técnica, . . . tem uma filosofia. (Psicólogo/coordenador do CAPSad, comunicação pessoal, 22 de agosto, 2017).
A aplicação da RD no tratamento de usuários de substâncias psicoativas dispõe da compreensão de que a criação de vínculos “. . . de atenção e cuidado em saúde com o sujeito usuário” (Lopes, 2016, p. 121) é um dos princípios basilares que devem orientar a prática do profissional de saúde, constituindo-se, desse modo, em ações que estão para além do saber especializado e da mera aplicação de uma técnica que, por vezes, reduz o indivíduo a uma doença e/ou estigma e produz exclusões (Lima Junior et al., 2017).
Outra compreensão apresentada pelos profissionais ao longo das entrevistas foi a de
que: “Redução de Danos não é contrária à abstinência, o que nós temos são compreensões equivocadas que geram uma oposição” (Psicólogo/coordenador do CAPSad, comunicação pessoal, 22 de agosto, 2017). Para Rameh-De-Albuquerque (2017, p. 64), “. . . a abstinência . . . não é oposição à RD e vice-versa”, porém também não podem ser consideradas como sinônimos. É um erro ignorar a validade da procura por condições de abstinência, uma vez que essa só não deve ser imposta por terceiros nem se constituir em um fator limitante para o ingresso do indivíduo ao tratamento (Lopes, 2016). Em conformidade, o profissional comenta: “O CAPSad não é contra a abstinência, só que em hipótese alguma ela é pressuposto ou ponto de partida” (Psicólogo/coordenador do CAPSad, comunicação pessoal, 22 de agosto, 2017). Entre as ações de RD utilizadas no serviço, os profissionais apontam
que: “Um dispositivo que eu acho eficaz é o conceito de baixa exigência” (Psicólogo/coordenador do CAPSad, comunicação pessoal, 22 de agosto, 2017). Essa formatação permite que o tratamento seja conduzido de modo singular, em que as condições e os desejos individuais sejam respeitados sem que haja a adequação do usuário a “uma receita universal” (Psicólogo/coordenador do CAPSad, comunicação pessoal, 22 de agosto, 2017), o que parece permitir sua implicação e participação ativa durante todo o processo (Lopes, 2016).
Mesmo diante da ineficiência da imposição exclusiva da abstinência e da relevância das Políticas de RD, o ano de 2019 foi marcado por três importantes acontecimentos de desmonte de políticas públicas de saúde direcionadas à população que faz uso abusivo de álcool e de outras drogas. Primeiro, a publicação da nota técnica n. 11/2019, que prevê o financiamento das denominadas Comunidades Terapêuticas, instituições denunciadas pela violação de direitos3; além disso, aquele documento também retira os termos de RD e enfatiza o tratamento por meio da abstinência. O segundo acontecimento está relacionado à aprovação da Lei 13.840/2019, que, em detrimento de cuidados pautados na lógica da RD no âmbito da Atenção Psicossocial, prioriza as internações involuntárias e compulsórias de usuários de substâncias psicoativas. E o terceiro acontecimento foi marcado pelo movimento de censura da pesquisa nacional realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), que, no período de 2014 a 2017, investigou o uso de substâncias psicoativas entre os brasileiros e constatou que apenas 0,9% da população usou crack alguma vez na vida, o que contrariava as expectativas do governo vigente da existência de uma “epidemia da droga” no país, mas identificava que o grande problema estava relacionado ao uso abusivo de álcool (Rocha et al., 2019). Diante desse trágico cenário, os profissionais do CAPSad manifestaram seus receios e suas insatisfações relacionadas às atuais políticas públicas direcionadas aos usuários de substâncias psicoativas: “. . . eu acho que a gente vive um período de retrocesso, principalmente na política de álcool e outras drogas. Momento de políticas que visam colocar a abstinência em primeiro lugar, e ter mais abertura de recursos para as Comunidades Terapêuticas” (Psicóloga, comunicação pessoal, 15 de setembro, 2017).
Considerações Finais
O processo da Reforma Psiquiátrica possibilitou a criação de novas práticas e o direcionamento de um “novo olhar” às pessoas em intenso sofrimento psíquico e/ou usuárias de álcool e de outras drogas. Nesse sentido, a utilização de ações de RD no âmbito da Atenção Psicossocial soma-se à luta pelo rompimento com as técnicas e os tratamentos psiquiátricos tradicionais hospitalocêntricos e característicos do modelo proibicionista que prevê práticas disciplinares, medicalizadoras e exclusivamente pautadas na abstinência de usuários de substâncias psicoativas.
Nesse sentido, a presente pesquisa analisou discursos e práticas profissionais de saúde de um CAPSad em suas tentativas de introduzir e desenvolver ações de RD, apesar de possuírem também dificuldades em identificá-las e defini-las por esse termo. A pesquisa mostrou diversos impasses quanto ao planejamento e a execução de práticas de RD no âmbito do CAPSad analisado, em que muitas das ações que são desenvolvidas acabam sendo orientadas por concepções e discursos proibicionistas, distantes da perspectiva da Atenção Psicossocial e que repercutem em práticas e relações menos democráticas, centradas na abstinência e na repressão. A ambivalência dos discursos e das práticas dos profissionais da equipe de saúde, ora pautados em ações de RD, ora fundamentados na ideia de “guerra às drogas”, pode estar relacionada com a própria legislação brasileira, que construiu políticas públicas calcadas em dois modelos:
. . . a estratégia de RD, conforme descrita na Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas (PAIUAD) e os modelos que preconizam a abstinência, a exemplo da Portaria n. 131/2012, que trata da inclusão das Comunidades Terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (Batista et al., 2019, p. 2).
Além disso, ainda é perceptível as demandas da população pela internação e isolamento em instituições manicomiais e Comunidades Terapêuticas, concepções que influenciam as práticas profissionais no CAPSad, aspecto que demonstra as dificuldades do reconhecimento e da legitimação dos serviços da RAPS para o tratamento de usuários de substâncias psicoativas, uma realidade identificada na maioria das cidades brasileiras.
As dificuldades da equipe em reconhecer as estratégias de RD parecem resultar das raras reuniões de equipe, da ausência de diálogo entre profissionais, usuários e familiares na construção do PTS e dos diversos impasses quanto ao planejamento e à execução de ações no âmbito do CAPSad e, também, de outros serviços da RAPS. Processo que pode estar relacionado, na atualidade brasileira, à formação dos profissionais de saúde, a qual, geralmente, parece distante e descontextualizada das atuais problemáticas que envolvem o cuidado e acolhimento do usuário de álcool e de outras drogas.
A partir da presente pesquisa, em diálogo com a literatura especializada no tema (e.g., Adorno, 2017; Pitta, 2011), conclui-se que a construção de serviços substitutivos à internação manicomial e a publicação de políticas públicas antimanicomiais e antiproibicionistas não são suficientes para sustentar a efetivação e a garantia de uma assistência integral aos usuários de álcool e outras drogas. Dessa forma, muitos dispositivos CAPS implantados em diferentes lugares do país apresentam características daquilo que poderíamos denominar de um “CAPScômio” (Emerich et al., 2014), ou seja, são serviços que vivenciam um processo de manicomialização pela dificuldade que os profissionais enfrentam de inventar práticas distantes do modelo psiquiátrico proibicionista hegemônico. Para evitar que os profissionais incorram ao erro de atuarem pautados em conceitos morais e preconceituosos fundamentados na lógica proibicionista e manicomial, é necessário o investimento em cursos de formação e capacitação profissional, em que sejam ensinados temas sobre os pressupostos do SUS, da Reforma Psiquiátrica e das ações de RD no âmbito da Atenção Psicossocial. Movimento que possibilitará a produção de ações executadas pela equipe de saúde em consonância com o modelo psicossocial para uma atuação em diálogo constante com outros profissionais dos dispositivos da RAPS Intersetorial e que inclui também ações na área da educação, da assistência social, da cultura e do lazer. Um processo de modificações que possibilitará a formação de profissionais da saúde atentos aos movimentos de resistência e enfrentamento aos retrocessos que marcam as atuais políticas públicas de saúde no país.
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Recebido em: 05/02/2020
Última revisão: 02/03/2021
Aceite final: 10/03/2021
Sobre as autoras:
Caroline Albertin Reis: Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Bolsista do Programa de Iniciação Científica PIBIC/Fundação Araucária (UEM). E-mail: carol.albertin95@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2681-2149
Daniele de Andrade Ferrazza: Doutora em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis). Professora da Graduação e da Pós-Graduação do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: daferrazza@uem.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0912-9559
1 Endereço de contato: Avenida Colombo, 5790, Bl. 118, Jardim Universitário, Maringá, PR. CEP: 87020-900. Telefone: (44) 99928-1855. E-mail: daferrazza@uem.br
2 Deve-se ressaltar que, apesar do convite, o médico psiquiatra do serviço estudado não se mostrou disponível para participar da entrevista.
3 O Conselho Federal de Psicologia (CFP), em parceria com o Ministério Público Federal, inspecionou 28 Comunidades Terapêuticas espalhadas por todo o território nacional e constatou diversas irregularidades relacionadas à privação de liberdade, maus-tratos, trabalhos forçados sem remuneração, restrição de liberdade religiosa, violação à diversidade sexual, internação compulsória e irregular de adolescentes, e o uso de castigos configurados, inclusive, como prática de tortura (Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura & Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão/Ministério Público Federal, 2018).