Percepções de LGBTs sobre o Acesso à Atenção Primária de Saúde na Cidade de Guaiúba, CE
LGBT Perceptions of Access to Primary Health Care in the City of Guaiúba, CE
Percepciones de los LGBT sobre el acceso a la atención primaria de salud en la ciudad de Guaiúba, CE
Felipe Coura Rocha 1
Juliana Vieira Sampaio
Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE)
Resumo
O acesso aos serviços de saúde tem se mostrado um desafio constante na trajetória de pessoas LGBT. Considerando isso, este estudo objetivou analisar a percepção de pessoas LGBT sobre o seu acesso às unidades básicas de saúde de Guaiúba, no Ceará. Utilizou-se o método qualitativo, a partir do uso de entrevista semiestruturada e questionário socioeconômico. No total, sete pessoas foram entrevistadas entre os meses de agosto e outubro de 2019. Identificou-se a perpetuação de violações de direitos que reforçavam práticas de iniquidade e invisibilidade das demandas de saúde dessa população. O desrespeito ao nome social e as barreiras atitudinais foram práticas apontadas, criando abismos entre pessoas LGBT e os serviços de saúde. Diante disso, faz-se necessário que profissionais possam investir na capacidade de dialogar, construir e compartilhar cuidados que legitimem a diversidade humana.
Palavras-chave: Atenção Primária de Saúde, pessoas LGBT, acesso, iniquidade em saúde
Abstract
Access to health services has been a constant challenge in the trajectory of LGBT people. Considering this, this study aimed to analyze the perception of LGBT people about their access to basic health units in Guaiúba, Ceará. The qualitative method was used, using a semi-structured interview and a socioeconomic questionnaire. In total, seven people were interviewed between August and October 2019. It was identified the perpetuation of rights violations that reinforced practices of inequity and invisibility of the health demands of this population. Disrespect for the social name and attitudinal barriers were practices pointed out, creating chasms between LGBT people and health services. Therefore, it is necessary that professionals can invest in the ability to dialogue, build and share care that legitimizes human diversity.
Keywords:
Keywords: Primary Health Care, LGBT people, access, health inequity
Resumen
El acceso a los servicios de salud ha sido un desafío constante en la trayectoria de las personas LGBT. Considerando eso, este estudio tuvo como objetivo analizar la percepción de las personas LGBT sobre su acceso a las unidades básicas de salud en Guaiúba, Ceará. Se utilizó el método cualitativo, utilizando una entrevista semiestructurada y un cuestionario socioeconómico. En total, siete personas fueron entrevistadas entre agosto y octubre de 2019. Se identificó la perpetuación de violaciones de derechos que reforzaron prácticas de inequidad e invisibilización de las demandas de salud de esta población. La falta de respeto por el nombre social y las barreras actitudinales fueron prácticas señaladas, creando abismos entre las personas LGBT y los servicios de salud. Por lo tanto, es necesario que los profesionales puedan invertir en la capacidad de dialogar, construir y compartir cuidados que legitimen la diversidad humana.
Palabras clave: Atención Primaria de Salud, personas LGBT, acceso, inequidad en salud
Introdução
A busca pela legitimação da condição de existência de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) enquanto sujeitos de direitos é histórica, sendo marcada por sucessivas negações de condições básicas (educação, trabalho, segurança, saúde), por violências simbólica, institucional, física e moral e pela patologização de suas condições de identidade de gênero e de orientação sexual. A tentativa de invisibilizar suas histórias e lutas, que foram sufocadas pela discriminação e pelo preconceito enraizados na realidade sociocultural do Brasil, ainda se mostra um desafio contemporâneo para esse segmento social. A partir da década de 1980, percebeu-se o fortalecimento da luta pelos direitos humanos de pessoas LGBT, com destaque à mobilização em torno do HIV/aids no país e no mundo, impulsionado pela força do ativismo de grupos que buscavam por justiça social, pela garantia dos direitos políticos e sociais e pelo combate à homofobia.
Em 1948, foi instituída a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que reconheceu o direito à saúde como um direito humano, influenciando as Constituições dos países após a Segunda Guerra Mundial (Santos et al., 2019). As políticas públicas de saúde contemporâneas do Brasil, desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição Federal de 1988, demarcam sobre a necessidade de se garantir que todos os cidadãos tenham acesso à saúde enquanto um direito humano fundamental, sendo papel do Estado prover condições para efetivação desse direito. A Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, conhecida também como a Lei Orgânica da Saúde (Ministério da Saúde, 1990), regulamentou o SUS e reforçou o dever do Estado em formular e executar políticas econômicas e sociais que reduzissem os riscos de adoecimento e agravos à saúde, bem como assegurar o acesso universal, igualitário e sem qualquer tipo de discriminação, em todos os níveis da rede de atenção de saúde.
A atenção primária de saúde se coloca como o primeiro nível de atenção, sendo a porta de entrada preferencial do SUS e desenvolvendo serviços a partir da longitudinalidade do cuidado, de modo interdisciplinar e de base territorializada. A Política Nacional da Atenção Básica (PNAB) (Ministério da Saúde, 2017), representada pela Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017, em seu art. 2º, § 3º, também aborda sobre a proibição de qualquer forma de exclusão no acesso à Atenção Básica, baseada em idade, gênero, raça/cor, etnia, crença, nacionalidade, orientação sexual, identidade de gênero, estado de saúde, condição socioeconômica, escolaridade, limitação física, intelectual, funcional e outras. Assim, as diferenças individuais, em suas múltiplas expressões, não devem se sobrepor ao direito ao acesso de qualidade, humanizado e integral à saúde.
Há quase uma década, outro marco jurídico importante foi concretizado por meio da Portaria n. 2.836, de 1º de dezembro de 2011, que instituiu a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI-LGBT) (Ministério da Saúde, 2013). A elaboração desta política apresenta-se como mais uma estratégia que visa ao fortalecimento da equidade no SUS, legitimando as especificidades de saúde que envolvem as dinâmicas de vida da população LGBT. Esta política traz como marco principal o reconhecimento de que a discriminação e a exclusão social impactam de forma significativa no processo de saúde-doença da população LGBT, sugerindo o enfrentamento das iniquidades e das desigualdades em saúde para este público. Assim, dar visibilidade às questões de identidade de gênero e orientação sexual, por meio de uma política pública, cria mecanismos de defesa do direito à saúde e dos direitos sexuais como componente fundamental na promoção, prevenção e recuperação da saúde.
Contudo, apesar das conquistas garantidas no âmbito legal, ainda existem barreiras de acesso aos serviços de saúde pública, reforçando práticas de iniquidade e invisibilidade das demandas de saúde da população LGBT. De acordo com Lionço (2009), o princípio da equidade é basal para a superação das barreiras que inviabilizam a promoção dos princípios da universalidade e integralidade, sendo essencial para a garantia da justiça social.
O Ministério da Saúde, por meio da PNSI-LGBT, já reconheceu que a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual pode ser entendida como um determinante social de saúde, uma vez que promove sofrimento e adoecimento em uma dimensão biopsicossocial, decorrente do preconceito e do estigma (Ministério da Saúde, 2013; Freire et al., 2013). Dessa maneira, considerando os princípios doutrinários do SUS (Ministério da Saúde, 1990; Ministério da Saúde, 2017), a universalidade, a integralidade e a equidade, o presente estudo se propôs analisar a percepção de pessoas LGBT do município de Guaiuba, CE, com relação ao seu acesso às unidades básicas de saúde. Esta pesquisa visou conhecer os desafios específicos referentes à inserção de pessoas LGBT nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), bem como compreender como as questões de identidade de gênero e orientação sexual influenciam no acesso à saúde, refletindo sobre a garantia dos referidos princípios enquanto norteadores éticos, de humanização e de ampliação da clínica que é ofertada na atenção primária de saúde.
Método
Partindo do interesse pela compreensão dos discursos, considerando os aspectos históricos, culturais e sociais que constituem as percepções de sujeitos singulares (Minayo, 2010), o presente estudo utilizou a metodologia qualitativa. De acordo com Aguiar (2015), o papel do pesquisador é explicar a realidade, produzindo um conhecimento, e não apenas descrevendo os fatos. Para tanto, segundo esta autora, a análise dos dados deve se amparar nos “núcleos de significação do discurso” (2015, p. 165), ou seja, o pesquisador deve buscar temas/conteúdos/questões centrais que surgem no discurso do sujeito, “entendidos assim menos pela frequência e mais por ser aqueles que motivam, geram emoções e envolvimento (p. 165)”. Dessa forma, cada núcleo agrega questões intimamente ligadas, estando articuladas com o próprio discurso do sujeito e com sua história, auxiliando, assim, na busca pela identificação das determinações e contradições que se estabelecem nesse processo. No que se refere ao tipo de estudo, a pesquisa se baseou no tipo crítico compreensivo, com caráter exploratório (Gil, 2008).
A pesquisa aconteceu na cidade de Guaiúba, localizada a 38 km de Fortaleza, no Ceará. De acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município é de médio porte, com população estimada, em 2019, de 26.064 pessoas. Existem 10 UBS no município, das quais o pesquisador atuou em três como psicólogo residente do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB). O campo em análise foi a Atenção Primária de Saúde, a partir das UBS, considerando as formas de acesso da população pertencente ao coletivo LGBT do município avaliado.
Participaram da pesquisa sete pessoas de sexo, identidades de gênero e orientações sexuais distintos, sendo dois homens cis gays, uma mulher cis lésbica, três mulheres trans heterossexuais e uma pessoa agênero de orientação homossexual. De acordo com o manual orientador sobre diversidade (Ministério dos Direitos Humanos, 2018), cisgênero se refere à pessoa que se identifica com o gênero igual ao sexo do nascimento. Já o termo transgênero é usado para indicar a não identificação de uma pessoa com o gênero do nascimento, mas com o gênero socialmente oposto. Por fim, agênero seria a pessoa que não se identifica ou não se sente pertencente a gênero algum socialmente imposto.
Visando proteger as identidades dos entrevistados, estes foram apresentados a partir de nomes de sereias, em homenagem ao símbolo da Associação Pela Livre Orientação Sexual de Guaiúba (APLOSG2), a saber: Ariel (mulher trans), Dóris (mulher trans), Electra (mulher trans), Delphine (mulher cis), Juno (agênero), Muriel (homem cis) e Tritão (homem cis). Nos resultados deste estudo, consta o perfil socioeconômico dos participantes em uma tabela.
A escolha dos participantes se deu por conveniência, por meio da técnica “bola de neve” (snowball sampling), na qual os sujeitos eram convidados por indicação de informantes-chave da pesquisa. Tal método se torna mais exequível devido à dificuldade de acesso à população LGBT, uma vez que esses sujeitos não costumam frequentar serviços de saúde. Para participar do estudo, utilizaram-se os seguintes critérios de inclusão: a) pessoas que se reconheciam como pertencentes à população LGBT; b) que residiam no município de Guaiúba; c) que tinham18 anos ou mais; d) que tinham alguma experiência de acesso, ou tentativa de acesso, aos serviços das unidades básicas de saúde do município.
No que se refere aos instrumentos de coleta de informações, foram utilizados: 1) a entrevista semiestruturada, obedecendo a um roteiro de questões elaborado pelo pesquisador; 2) um questionário socioeconômico com o intuito de descrever características dos sujeitos e contextualizar a produção discursiva dos participantes da pesquisa com a realidade de vida deles (Gil, 2008). As perguntas problematizadoras do estudo questionaram como os sujeitos percebiam o atendimento ofertado na sua UBS de referência, o tipo de serviço mais procurado na UBS, se existia alguma dificuldade de acesso aos serviços de saúde, se percebiam alguma potencialidade conquistada por pessoas LGBT no município, como percebiam o atendimento de pessoas LGBT nas UBS, quais os cuidados alternativos esses sujeitos procuravam além das UBS e, por fim, como eles percebiam a identidade de gênero e a orientação sexual enquanto influenciadoras no acesso aos serviços de saúde.
As entrevistas aconteceram entre os meses de agosto e setembro de 2019, sendo realizadas na Secretaria Municipal de Saúde e nas unidades básicas de saúde a que o pesquisador principal estava vinculado. Somente após leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a assinatura da pessoa concordando em participar da pesquisa que esta era efetivada. Foi utilizado gravador a fim de registrar as falas das pessoas entrevistadas para posterior transcrição fidedigna dos discursos, para, então, serem analisadas e criadas as categorias de análise. A duração média de cada entrevista foi de 20 minutos.
Foram identificadas três categorias de análise: a) o acesso às UBS por pessoas LGBT; b) o manejo profissional no atendimento de existências que desafiam o cuidado em saúde; e c) potencialidades e avanços nas questões LGBT no acesso à saúde no município. O material qualitativo produzido na pesquisa foi organizado e sistematizado segundo os marcos teóricos da hermenêutica dialética. Essa abordagem de análise possibilitou reflexão da práxis por assumir como característica fundamental tanto a compreensão (hermenêutica) do sentido da comunicação intersubjetiva, a linguagem, como a crítica (dialética) da realidade social enquanto processo em contínua transformação.
Nessa perspectiva, baseando-se em Oliveira (2001), a análise estruturou-se em dois níveis: o nível das determinações fundamentais e o nível de encontro com os fatos empíricos. No campo das determinações fundamentais, a compreensão da realidade buscou a consideração do contexto social e histórico no qual os grupos sociais se organizavam. No nível de encontro com os fatos empíricos, houve uma ênfase na compreensão da realidade em sua totalidade, articulada com os sentidos e significados que os sujeitos atribuíam à experiência. A coleta dos dados foi realizada após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa, com parecer do CAAE 10671319.7.0000.5037.
Resultados
Para melhor descrição dos participantes, foi utilizado um questionário com o objetivo de apresentar dados socioeconômicos para auxiliar na análise qualitativa dos discursos dos entrevistados. Entre as informações colocadas em relevo, estão: idade, orientação sexual, identidade de gênero, escolaridade, raça/etnia (autoidentificação), situação laboral, renda mensal, religião e número de filhos.
Tabela 1
Perfil socioeconômico dos entrevistados
Nome Fictício |
Idade |
Orientação Sexual |
Identidade de Gênero |
Escolaridade |
Raça /etnia |
Situação Laboral |
Renda Mensal |
Religião |
Filhos |
Ariel |
38 |
Heterossexual |
Mulher Trans |
Médio Completo |
Indígena |
Desempregada |
R$ 89,00 |
Não informada |
Não |
Dóris |
32 |
Heterossexual |
Mulher Trans |
Fundamental Completo |
Branca |
Autônoma |
R$ 1.000,00 |
Católica |
Não |
Electra |
24 |
Heterossexual |
Mulher Trans |
Médio Completo |
Parda |
Desempregada |
R$ 89,00 |
Não informada |
Não |
Delphine |
27 |
Homossexual |
Mulher Cis |
Médio Incompleto |
Parda |
Desempregada |
R$ 164,00 |
Católica |
Sim |
Juno |
21 |
Homossexual |
Agênero |
Superior Incompleto |
Branco |
Estudante |
R$ 100,00 |
Espírita |
Não |
Muriel |
21 |
Homossexual |
Homem Cis |
Superior Completo |
Branco |
Estudante |
R$ 89,00 |
Católico |
Não |
Tritão |
31 |
Homossexual |
Homem Cis |
Fundamental Completo |
Pardo |
Desempregado |
R$ 120,00 |
Católico |
Não |
Nota: Os próprios autores.
(In)acesso na Atenção Primária de Saúde: Demandas, Barreiras e Caminhos Alternativos de Cuidados
No que diz respeito ao acesso às unidades básicas de saúde, a grande maioria relatou conseguir acessar os serviços sem muitas dificuldades, sendo bem atendidos, no geral. Apenas uma pessoa trouxe a percepção do atendimento como algo feito de modo superficial, “é como se tivesse feito com descuidado. Não tendo muita atenção. A atenção que deveria ser feito” (Juno). Apesar da percepção de facilidade no acesso à UBS, geralmente os entrevistados frequentavam o serviço de modo esporádico e quando a condição de saúde já estava comprometida em algum nível.
Um ponto em comum foi que a busca pela unidade básica sempre aconteceu após situação de adoecimento ou agravo na saúde: “eu vou quando aparece uma doença, né? Então eu fico doente, aí eu procuro” (Dóris), “eu só vou quando eu realmente estou. . . com estalecido, por exemplo, só vou lá tomar injeção quando é no último grau” (Ariel), “eu venho mais quando já tá assim. . . sabe? Pra prevenção, não” (Electra). As falas indicam que a procura às UBS acontece de modo pontual, não havendo relatos de busca por orientações voltadas à prevenção e à promoção da saúde. Nesse aspecto, percebe-se uma fragilidade dos serviços, considerando que o papel central da atenção primária de saúde (Santos et al., 2019) é a corresponsabilização do cuidado e a intervenção nas condições de vida dos sujeitos, para produzir mais qualidade de saúde a eles, de forma que o indivíduo e o coletivo são agentes transformadores para potencializar as dinâmicas de vidas do território.
Entre as principais demandas identificadas estava, principalmente, a procura por atendimento odontológico, mas também houve relatos de busca de medicamentos para alergia, consulta ginecológica e requisição de exames laboratoriais. Poucos procuravam as unidades básicas para fazer acompanhamentos voltados à saúde sexual e reprodutiva, sendo esta parte geralmente pouco desenvolvida nas consultas com profissionais de saúde. Nesse aspecto, uma das principais barreiras de acesso identificadas nos discursos foi o medo da quebra de sigilo por parte dos profissionais, principalmente na realização de testes para identificar possíveis infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Sobre isso, Ariel comenta:
É porque aqui teve duas amigas minhas que fizeram o teste e duas vezes a pessoa. . . por o município ser pequeno, vazou, né? Aí foi muito questionamento. Teve preconceito grande com uma delas, que era soropositivo, e as pessoas tudo comentando. Tinha muito preconceito pro lado delas. . . . é como eu falei, as pessoas têm medo. Medo de ser apontados na rua, de ser questionados.
Nesse mesmo sentido, Electra também reforçou que o sigilo “seja uma das barreiras das quais as pessoas não procuram se tratar mais. Procuram se prevenir”. As falas indicam que a fragilidade no sigilo, no que se refere ao atendimento profissional, é um entrave significativo na busca pelos serviços de saúde, gerando distanciamento dessas pessoas, que, por temerem o preconceito e a estigmatização, procuravam serviços em outras cidades próximas para fazerem testes, exames e acompanhamentos de cuidados da saúde sexual. Sobre isso, Ariel diz:
As pessoas estão mais assim. . . com medo, né. Com medo não de contrair o HIV, o medo é você fazer o tratamento. Tem pessoas que eu conheço aqui do município de Guaiúba que vai pra Fortaleza pra fazer o tratamento.
Assim, o medo do preconceito se sobrepõe ao medo de estar infectado pelo vírus HIV, reforçando que a discriminação e o preconceito são fatores determinantes na saúde, podendo gerar resistência na busca por tratamento e medidas de prevenção, o que aumenta a vulnerabilidade ao adoecimento.
Alguns entrevistados percebem que apenas a presença de pessoas LGBT dentro das unidades de saúde já desperta o preconceito de algumas pessoas, mesmo entre usuários dos serviços, pois no imaginário social historicamente construído, desde a década de 1980, com a epidemia da aids, indica-se a crença de que esse grupo específico está ligado às infecções sexualmente transmissíveis. Corroborando essa ideia, Electra indicou que “a gente é olhado assim, “ah, é travesti, é viado, é doente disso, daquilo outro. . . a gente já fica com medo até de tá no posto e o povo de fora vê e já pensar isso, essa maldade”. Outro participante também apresenta percepção que ratifica essa questão:
Vem aquela questão que historicamente as pessoas trans, as pessoas LGBT, no geral, e principalmente as pessoas trans. . . de ligar essas pessoas a doenças sexualmente transmissíveis ou a qualquer tipo de mal, de precariedade. Então, acredito que foi muito por isso também, essa questão toda. . . de ligar essas pessoas a isso, acaba que afasta essas pessoas. . . nós, LGBT, desses espaços (Muriel).
Além das UBS, os participantes descreveram algumas estratégias e caminhos complementares para cuidarem de sua saúde. Entre os caminhos apontados, destacam-se: a) o acesso ao hospital municipal como um dos principais serviços buscados pelos entrevistados (tendo em vista a procura quando já havia algum agravo de saúde); b) a automedicação, com a busca por farmácias e mercearias para aquisição de remédios; c) a procura independente por informações e orientações em saúde na internet; d) o desenvolvimento da espiritualidade como fator de proteção à saúde; e) a utilização de plano de saúde privado. A ênfase no cuidado tardio, após adoecimento, indica a fragilização de ações de prevenção de doenças e de promoção da saúde para pessoas LGBT, além de estratégias inadequadas, como a automedicação e a resistência em procurar a UBS como primeira estratégia de cuidado.
Manejo Profissional no Atendimento de Existências que Desafiam o Cuidado em Saúde
A maneira como o atendimento era ofertado também influenciava bastante no modo como o acesso acontecia e era continuado. Foram indicadas atitudes preconceituosas dentro das unidades básicas, além da falta de preparo dos profissionais de saúde para acolher e compreender demandas específicas de pessoas LGBT, principalmente de pessoas trans. A esse respeito, Ariel comentou que percebia o preconceito no atendimento da seguinte forma: “através de olhares, através de. . . como é que eu posso dizer, assim. . . da forma, deixar a pessoa desinformada, sem dar muita atenção”. Assim, mesmo que de modo mais implícito, a participante trouxe a sensação de ser tratada de forma diferente devido a sua identidade de gênero. De modo mais explícito, outro entrevistado contou sobre uma experiência que presenciou, na qual dois profissionais do serviço faziam comentários transfóbicos a respeito de uma usuária transexual:
Eu ficava triste, mas eu dizia “não, eu tô no meu trabalho e não posso demonstrar. . . porque não foi comigo, num sei o que. . .”. Foi com um amigo. A gente fica triste, né? Ficar dizendo, “como é que pode um homem desse, se vestir de mulher, num sei o que. . . olha aí de brinco, de batom, que coisa feia”. Ficava dizendo essas coisas. Eu ficava passado (Tritão).
O discurso indica preconceito de profissionais que trabalhavam em uma unidade básica de saúde, reforçando práticas de intolerância e desrespeito à identidade de gênero da pessoa que procurou por cuidados no serviço. Complementando essa ideia, Electra indicou que posturas profissionais inadequadas não são restritas apenas ao campo da saúde: “acredito eu que não só na área da saúde, mas em todas as áreas que trabalham. . . assim, com a população. Há sempre uns ou outros que realmente esbanjam o preconceito de cara”. Dessa forma, a LGBTfobia institucional é uma barreira que, além de produzir violência e desrespeito às singularidades dos sujeitos, fere a dignidade e o direito ao acesso com equidade. Outra participante comentou sobre o preconceito sentido ao contar que tem filhos e vive em um relacionamento homoafetivo:
Porque às vezes pergunta, “tem filho?”, aí quando eu digo que tenho filho aí que muda mesmo a forma de falar. Aí eu explico pra elas, “sim, tem várias mulheres que têm filho e têm relação com outras mulheres. Não é porque eu tenho filho que tenho que ter relação só com homem” (Delphine).
Além do preconceito com relação à identidade de gênero e à orientação sexual, outra dificuldade percebida por pessoas trans que reforça a ideia do preconceito é o desrespeito ao nome social nos serviços de saúde. Em Guaiúba, foi instituída a Lei Municipal n. 781, de 9 de junho de 2016, que orienta os serviços públicos a respeitarem o nome social de transexuais e travestis; porém, este direito nem sempre foi assegurado. Sobre isso, um entrevistado diz: “Eu já presenciei a pessoa dizendo “meu nome mudou”, a pessoa mostrando o documento. . . e a pessoa chamando o outro nome antigo. Aí fica o desconforto, né?” (Tritão). O não reconhecimento do nome social, além de negar a identidade construída pela pessoa, constitui violência institucional, moral e simbólica. Dóris, outra mulher trans, trouxe uma experiência na qual foi desrespeitada e acusada de portar documento falso, quando apresentou o cartão do SUS com o nome social no hospital do município, sendo humilhada por profissionais enfermeiros que, além de a tratarem pelo nome civil, ainda cometeram crime de calúnia, resultando em abertura de um boletim de ocorrência na delegacia da cidade.
É importante destacar que todos os participantes da pesquisa reconheceram que pessoas transexuais e travestis são as que mais sofrem discriminação e estigmatização social, uma vez que a identidade de gênero é algo mais notório do que a própria orientação sexual. Sobre isso, um homem cis e a pessoa agênero, respectivamente, argumentam que:
Existe muito preconceito ainda. Muito preconceito velado, preconceito simbólico, principalmente com as pessoas transexuais. Eu acredito que dentro da comunidade LGBT são as pessoas que mais sofrem. São as pessoas que levam primeiramente o impacto. Porque elas vão contra esse binarismo de gênero que a sociedade impõe (Muriel).
. . . Eu não vou ter determinados conflitos, desvantagens e encontrar problemas que pessoas com performance de gênero já relacionada à transexualidade, à transgeneridade. . . o corpo já chega primeiro, então eu acredito que pra essas pessoas têm esses conflitos ao qual eu não vou ter (Juno).
Dessa forma, os relatos indicaram que pessoas com identidades de gênero diferentes da cisheteronormatividade podem ter ainda mais dificuldades de acessar serviços de saúde, sofrendo discriminação mais explicitamente. A cisheteronormatividade diz respeito a um conjunto de relações de poder que normaliza, regulamenta, idealiza e institucionaliza a sexualidade, o gênero e o sexo, partindo do pressuposto de que outras expressões diferentes da heterossexualidade e do binarismo de gênero são inadequadas ou não naturais, marginalizando tais vivências e impondo apenas um padrão de orientação sexual e de identidade de gênero como naturais (Ferreira et al., 2018).
Alguns entrevistados perceberam que profissionais religiosos, no geral, eram mais resistentes a respeitar o nome social, agindo de modo preconceituoso. A esse respeito, Ariel afirma que “as pessoas colocam muito a religião na frente. Ainda tem umas pessoas que acham que têm uma bíblia na mão e não têm a consideração de chamar a pessoa pelo nome social”. Corroborando essa compreensão, outro participante coloca que a identidade de gênero pode ser um fator importante no acesso aos serviços de saúde:
Com relação à questão da identidade de gênero, eu acredito que influencia. . . porque são pessoas que pra sociedade. . . uma sociedade muito carregada de preconceitos, de valores religiosos, de conservadorismo, ou hipocrisia, que eu prefiro acreditar. . . acaba tendo isso como errado. Acreditam que essas pessoas estão fazendo coisas que elas não poderiam, sendo que na realidade a gente sabe que todo mundo tem o seu direito de viver da forma que se sentir à vontade, de ser quem é (Muriel).
O julgamento, associado a um sistema de crenças do campo moral e religioso, foi indicado como um fator de dificuldade no acesso de pessoas LGBT nos serviços, uma vez que esses sujeitos confrontam a visão de mundo e de valores preexistentes em determinados profissionais, afetando o modo como estes conduzem o atendimento. Juno também trouxe uma reflexão sobre a maneira como a intolerância de profissionais influenciava no atendimento, percebendo este como sendo feito de modo mais dificultoso, apressado, burocrático e, às vezes, até “ríspido” .
Portanto, a conduta inadequada de profissionais tende a dificultar o acesso de pessoas LGBT nos serviços de saúde, gerando afastamento e fomentando o aumento de vulnerabilidades a este segmento social. Com isso, os princípios do SUS, especialmente a equidade, apresentam-se fragilizados quando grupos que historicamente sofrem processos de exclusão de espaços de produção de saúde são impelidos a se distanciarem ainda mais, devido à violência institucional ocasionada pela LGBTfobia.
Potencialidades e Avanços: Existências que Resistem
Apesar dos desafios indicados no estudo, que por vezes criam pontos de incompreensão e afugentamento, identificaram-se também avanços na garantia do acesso à saúde pelas pessoas LGBT. Foi apontado que, com a atuação de alguns profissionais, ao adotarem posturas mais acolhedoras e respeitando as pessoas LGBT em sua condição de gênero e orientação sexual, o acesso às UBS tornou-se mais facilitado no atual período. Entre os destaques, uma entrevistada, Ariel, indicou o papel dos profissionais residentes nesse manejo: “Hoje é fácil. É prático. Principalmente pelos residentes, que são vocês que estão nessa área. Tem mais sensibilidade pra população LGBT. A abordagem é bem mais acessível. Pra elas, pra mim, todas elas comentam isso”. Além da condução mais acolhedora por parte dos profissionais residentes, ela ainda reforçou que o fato destes últimos residirem fora do município de Guaiúba era um fator que diminuía o medo de algumas pessoas buscarem atendimento nas UBS, tendo em vista a crença de que profissionais que moram no município podem quebrar o sigilo e vazar informações para pessoas da comunidade.
Outro ponto importante é a atuação da APLOSG, que existe desde 2005 e exerce papel fundamental na reivindicação das questões LGBT dentro do município. Todos os entrevistados reconheceram que a criação da APLOSG foi um fator que impulsionou a conquista da lei municipal que garante o nome social para pessoas travestis e transexuais nos serviços públicos e o movimento em prol da mudança do nome no registro civil no cartório da cidade. Inclusive, Ariel contou que houve maior visibilidade para realização de eventos culturais do universo LGBT, tais como a Parada Gay e o Miss Gay de Guaiúba, além da parceria com outras associações e movimentos sociais, como a Associação de Travestis do Ceará (ATRAC), que, dentre outras coisas, viabilizava a oferta de cursos de profissionalização de pessoas trans.
A conquista do direito ao nome social nos equipamentos públicos foi citada por Electra como uma potencialidade e avanço no reconhecimento das demandas das pessoas trans: “Sim, com certeza. Até por conta das leis, né, do nome social. Querendo ou não, a gente tá aí na luta pra ser bem atendidos. Teve um avanço muito bom”. Apesar de, em determinadas situações, o respeito ao nome social ainda ser problemático, como foi apontado, a garantia de uma lei municipal reforça o amparo legal para que práticas discriminatórias sejam diminuídas. Outra participante percebeu melhora no atendimento a pessoas LGBT no município, quando comparado com alguns anos atrás:
Muita coisa mudou. No decorrer do tempo, pra trás, a gente não tinha tanta acessibilidade. . . de acessar o posto e ter o que a gente tem hoje. Exames. . . coisas mais fáceis pra LGBT, as coisas mais disponíveis. Antes a gente não tinha, hoje a gente tem mais disponibilidade (Delphine).
Em comparativo com anos anteriores, a participante reconhece que, no atual cenário, a acessibilidade para realização de exames e atendimentos melhorou com o decorrer do tempo. É interessante pontuar que, embora seja apontado como um avanço, o acesso ainda se revela incipiente, fragilizado e com falhas no acolhimento adequado a pessoas LGBT em suas demandas singulares e dinâmicas. A partir dos discursos, foi identificado que poucos profissionais abordavam sobre a identidade de gênero e a orientação sexual durante as consultas, negligenciando uma informação relevante para melhor compreensão do processo de saúde dos sujeitos. Inclusive, dois entrevistados pontuaram ainda sobre a pressuposição implícita que os profissionais de saúde adotam, como se todas as pessoas que procurassem os serviços de saúde fossem heterossexuais, excluindo outras expressões afetivo-sexuais.
Discussão
Considerando as reflexões apresentadas, falar sobre o acesso aos serviços de saúde, entre os quais a UBS, por parte da população LGBT, apresenta-se relevante, por considerar que a lesbo/homo/transfobia, associada à heteronormatividade institucional enquanto ideia que reforça uma única expressão de sexualidade como legítima (Albuquerque et al., 2013), constitui verdadeiros empecilhos no direito ao acesso à saúde por parte desse público e, ainda, contribui para com o aumento das vulnerabilidades inerentes a esta exclusão, ou seja, promove, em maior ou menor grau, suscetibilidades de adoecimentos (Ferreira et al., 2017).
O respeito ao uso do nome social, além de legitimar a identidade de transexuais e travestis e proteger a dignidade dessas pessoas, é uma estratégia de acolhimento e promoção do acesso à saúde, como também uma ferramenta para humanização da assistência e efetivação da integralidade (Silva et al., 2017). A identificação pelo nome social é um direito garantido pelo SUS, por meio da Portaria n. 1.820, de 13 de agosto de 2009, que institui a Carta de Direitos dos Usuários do SUS e preconiza o atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação, assegurando ao usuário o nome de sua preferência (Ministério dos Direitos Humanos, 2018). Ademais, desde 2013, o Sistema de Cadastramento de Usuários do SUS possibilita a impressão de Cartão do SUS somente com o nome social do usuário. Portanto, existe respaldo legal que garante a escolha do nome pelas pessoas trans; contudo, a barreira humana, presentificada por posturas inadequadas de profissionais de saúde, impõe a negação desse direito (Silva et al., 2017).
A ausência de acolhimento humanizado, evidente em práticas discriminatórias, intensifica a busca por serviços clandestinos e atendimentos precários voltados à modificação corporal, potencializando agravos na saúde de pessoas transexuais e travestis (Ferreira et al., 2018; Ferreira et al., 2017). Os autores levantam ainda o questionamento sobre o papel da atenção primária, que se propõe a ser porta de entrada do SUS, mas, quando se trata de sujeitos que fogem ao padrão cisheteronormativo, a entrada acontece “pelas portas dos fundos nos serviços de saúde”. Ferreira et al. (2018) colocam que, dentro dos equipamentos de saúde, constrói-se a naturalização de um “não lugar” no SUS, uma vez que tais singularidades são vistas como indesejáveis nesses espaços.
No que diz respeito ao direito à saúde no âmbito das políticas públicas, Albuquerque et al. (2013) ressaltam a existência de múltiplos desafios para a população LGBT, destacando-se: a) condutas inadequadas de profissionais que constrangem e reforçam práticas discriminatórias; b) considerável resistência à procura dos serviços de saúde em função de preconceitos nesses espaços; c) a omissão da sexualidade no atendimento, fragilizando a qualidade da assistência com relação a demandas específicas; e o d) aumento da vulnerabilidade de pessoas LGBT pela exclusão ou restrição de acesso aos serviços de saúde devido à homofobia institucional.
Silva et al. (2019) realizaram estudo sobre as representações sociais que trabalhadores da atenção básica tinham sobre pessoas LGBT. Os resultados indicaram uma visão conservadora, moralista e alienada sobre a vivência de pessoas LGBT, sendo estas entendidas como existências contrárias à doutrina religiosa, vistas como não natural, e a homossexualidade como sendo uma “opção”, uma escolha pessoal. A associação entre infecções sexualmente transmissíveis (IST) e pessoas LGBT também foi evidenciada, geralmente relacionando a práticas de “promiscuidade” e comportamentos de risco. No que se refere às características das pessoas LGBT, os profissionais apresentaram conteúdos estereotipados, como associar o homem gay a comportamentos femininos e a mulher lésbica a atitudes masculinas. Por fim, os profissionais reconheceram as dificuldades vivenciadas por pessoas LGBT, entre as quais, situações de violências, exclusão, marginalização e conflito psicológico, embora este último seja entendido como dúvidas em relação à sexualidade e identidade de gênero, e não relacionado ao sofrimento decorrente dos processos de discriminação e preconceito da sociedade.
O direito à saúde integral para a população LGBT demanda a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, sugerindo a naturalização da sexualidade em suas formas diversas de manifestação, assim como a superação da normatização das expressões da sexualidade humana segundo o padrão heteronormativo e o binarismo de gênero (Lionço, 2008). O compromisso com a oferta de uma atenção à saúde que seja coerente com os princípios do SUS e com uma sociedade com mais justiça social exige a superação de barreiras atitudinais (livres de preconceito e discriminação), a garantia do nome social, o acesso a informações e a insumos, tais como preservativos e géis lubrificantes, visando prevenir doenças infecciosas e oportunizando cuidado continuado por meio de consultas e exames de rotina (Rocon et al., 2016).
Como foi apontado por este estudo, as pessoas transexuais e travestis foram reconhecidas como a população mais vulnerável dentro do grupo LGBT, devido a sua identidade de gênero ser diferente da cisheteronormatividade. Mello et al. (2011) confirmam isso quando indicam que as pessoas travestis e transexuais são as que mais enfrentam dificuldades para ter atendimento digno nos serviços de saúde, por questionarem diretamente o binarismo de gênero, perpetuando impedimentos simbólicos, morais e estéticos que inviabilizam o acesso de pessoas LGBT aos equipamentos de saúde. Dentro de uma perspectiva conservadora, tendo como reflexo concepções religiosas e moralistas, como o entendimento da homossexualidade como “pecado” ou algo “antinatural” (Silva et al., 2019), a acessibilidade de sujeitos que diferem de tais princípios é prejudicada devido à influência de tais crenças, havendo resistência por profissionais de saúde em respeitar o nome social e as diversas identidades de gênero e orientações sexuais que destoam de sua visão de mundo e de referência moral (Ferreira et al., 2018).
Concordando com essas indicações, Santos et al. (2019) destacam a necessidade de preparo dos profissionais de saúde por meio de educação profissional e em diretrizes práticas, assim como formação continuada (Rocon et al., 2016) para lidar com as especificidades e os desafios vivenciados por pessoas LGBT, evitando, assim, perpetuar práticas de cuidado de baixa qualidade e aumento na incidência de fatores de risco e agravos na saúde. Negreiros et al. (2019), exemplificando tal problemática, apresentaram estudo feito com 14 médicos que trabalhavam na atenção primária de uma capital do Nordeste brasileiro, em que nenhum profissional recebeu capacitações voltadas às demandas de pessoas LGBT, sendo essa deficiência oriunda desde o processo formativo no curso de graduação em medicina. Tal resultado confirma a falta de conhecimentos, orientações técnicas e de formação específica de profissionais de saúde para intervir de modo adequado e resolutivo nesse cenário.
Considerando o manejo de profissionais de saúde, a falta de sigilo do atendimento foi apontada como uma das barreiras de acessibilidade e permanência de pessoas LGBT nas UBS. Ao quebrar o sigilo com relação ao resultado de testes para infecções sexualmente transmissíveis ou quaisquer informações do estado de saúde da pessoa que vive com HIV, o profissional violou a Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da Aids, que foi criada no final da década de 1980, no Encontro Nacional de ONG, Redes e Movimentos de Luta contra a Aids (ENONG) (Ministério da Saúde, 1989). Esse documento explicita que nenhuma pessoa pode fazer referência à doença de alguém ou revelar os resultados de testes para HIV/aids sem o consentimento da pessoa envolvida, reforçando ainda que apenas a pessoa que vive com HIV tem o direito de comunicar sobre seu estado de saúde e resultados de testes para quem assim ela desejar.
A construção de serviços acolhedores e não discriminatórios para este grupo torna-se um desafio importante, visto que exige dos profissionais proximidade com as políticas públicas e com as problemáticas específicas de pessoas LGBT para uma oferta de práticas de cuidado qualificadas (Cardoso & Ferro, 2012; Lionço, 2008). Para que tais práticas sejam efetivadas, faz-se necessário considerar a pluralidade humana em suas múltiplas formas de expressão e de existência, sendo condição fundamental para superar a marginalização histórica de minorias sociais no acesso à saúde (Santos et al., 2019).
Diante dos desafios colocados, torna-se urgente a efetivação das políticas públicas de proteção a minorias sociais, entre as quais, pessoas LGBT, objetivando a garantia de seus direitos sociais e civis. Ao violentar, negar e excluir essas pessoas dos espaços de saúde, indiretamente, o sistema de saúde condena tais existências à decadência, ampliando as estatísticas de morte por doenças evitáveis e deixando de fazer cumprir os princípios constitucionais básicos, como os direitos individuais e coletivos à vida, à igualdade, à dignidade, à segurança e à liberdade.
Conclusão
Os dados desta pesquisa indicaram que a “barreira humana”, materializada no preconceito, ainda tem sido um desafio para acessibilidade de pessoas LGBT às unidades básicas de saúde. O desrespeito ao nome social, o medo da quebra de sigilo nos atendimentos em saúde, as atitudes de julgamento e estigmatização das vivências desses sujeitos, o medo de sofrerem discriminação nos espaços institucionais, bem como a falta de preparação técnica dos profissionais diante das especificidades de saúde de pessoas LGBT, criam abismos entre os serviços de saúde e esses sujeitos, especialmente as pessoas transexuais e as travestis.
Importante ressaltar que, além de barreiras atitudinais, é necessário considerar outras variáveis que tendem a fragilizar o cuidado ofertado na atenção primária de saúde do município em análise, como a insuficiência orçamentária na área, a fragmentação da própria rede de saúde, a priorização de ações curativas em detrimento das ações de promoção de saúde e prevenção de doenças e a insuficiência de capacitação dos recursos humanos para manejar cuidados equânimes para grupos com necessidades de saúde diferenciadas.
Porém, foi indicada também uma percepção positiva dos participantes do estudo com relação ao acesso às UBS no período pesquisado, quando comparado com alguns anos atrás, no sentido de serem mais bem acolhidos, dando ênfase ao papel da equipe de residentes em saúde da família e comunidade. Mesmo com essa melhora no atendimento, as UBS não figuram como a primeira opção na busca por cuidados preventivos, mas apenas quando essas pessoas já estão em processo de adoecimento. A procura por serviços de saúde em outras cidades, a automedicação, a busca por informações de saúde na internet sem a devida orientação profissional e o acesso ao setor privado sugerem fragilização da vinculação entre esses usuários e as unidades básicas de saúde.
Vale ressaltar que este estudo não se propôs a generalizar processos, pois entende-se que, embora existam aproximações identitárias e de lutas entre pessoas LGBT, cada sujeito se constrói de modo singular e a partir de sentidos e significados que, embora tenham gênese socialmente constituinte, adquirem idiossincrasias mediante seu microssistema de relações e configurações subjetivas. Uma das limitações deste estudo foi não conseguir acessar homens transexuais e pessoas bissexuais, devido à dificuldade de aproximação desses sujeitos no cenário pesquisado. Dessa forma, a ampliação de estudos que deem visibilidade e voz às pessoas LGBT, abrindo espaços para que elas apontem sobre suas necessidades e o que esperam do SUS (Albuquerque et al., 2013), pode ser um caminho para uma oferta de cuidados em saúde mais efetivos e equânimes. Estudos envolvendo o acesso aos serviços de saúde por LGBT ainda se revelam limitados (Ministério dos Direitos Humanos, 2018; Lionço, 2008), sugerindo a necessidade de haver mais pesquisas que deem visibilidade ao distanciamento histórico dessas pessoas dos espaços institucionais de saúde.
Portanto, concordando com Silva et al. (2019), para reverter o distanciamento que separa esse segmento social dos serviços de saúde, é preciso legitimar e reconhecer os corpos, gêneros e sexualidades dissonantes da cisheteronormativa enquanto manifestação da diversidade humana, democratizando os direitos sexuais, reprodutivos e viabilizando o exercício da autonomia para quebra de paradigmas que se propõem a normatizar e padronizar as experiências e expressões de vida de pessoas LGBT. Assim, faz-se necessário substituir a indiferença, o descuidado, as crenças moralizantes e limitantes que disseminam ações discriminatórias por práticas empáticas, instrumentalizadas nas tecnologias leves de cuidado, pautadas em uma ética com justiça social, em um estado laico e com garantia do respeito à dignidade, à liberdade e à existência de pessoas LGBT.
Referências
Aguiar, W. M. J. (2015). A pesquisa em psicologia sócio-histórica: Contribuições para o debate metodológico. In A. M. B. Bock (Org.), Psicologia sócio-histórica: Uma perspectiva crítica em psicologia (pp. 157–171). Cortez.
Albuquerque G. A., Garcia C. L., Alves M. J. H., Queiroz C. M. H. T., & Adami F. (2013). Homossexualidade e o direito à saúde: Um desafio para as políticas públicas de saúde no Brasil. Saúde em Debate, 37(98), 516–524. https://doi.org/10.1590/S0103-11042013000300015
Cardoso, M. R., & Ferro, L. F. (2012). Saúde e população LGBT: Demandas e especificidades em questão. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(3), 552–563. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000300003
Freire E. C., Araújo F. C. A., Souza A. C., & Marques D. (2013). A clínica em movimento na saúde de TTTs: Caminho para materialização do SUS entre travestis, transsexuais e transgêneros. Saúde em Debate, 37(98), 477–484. https://doi.org/10.1590/S0103-11042013000300011
Ferreira B. O., Nascimento E. F., Pedrosa J. I. S., & Monte L. M. I. (2017). Vivências de travestis no acesso ao SUS. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 27(4), 1023–1038. https://doi.org/10.1590/s0103-73312017000400009
Ferreira B. O., Pedrosa J. I. S., & Nascimento E. F. (2018). Diversidade de gênero e acesso ao sistema único de saúde. Revista Brasileira de Promoção da Saúde, 31(1), 1–10. https://doi.org/10.5020/18061230.2018.6726
Gil, A. C. (2008). Métodos e técnicas de pesquisa social (6ª ed.). Atlas.
Lionço, T. (2009). Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador do SUS: Avanços, impasses, desafios. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 19(1), 43–63. https://doi.org/10.1590/S0103-73312009000100004
Lionço, T. (2008). Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde e Sociedade, 17(2), 11–21. https://doi.org/10.1590/S0104-12902008000200003
Mello, L., Perilo, M., Braz, C. A., & Pedrosa, C. (2011). Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: Em busca de universalidade, integralidade e equidade. Sexualidad, Salud y Sociedad, (9), 7–28. https://doi.org/10.1590/S1984-64872011000400002
Minayo, M. C. S. (2010). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde (12ª ed.). Hucitec.
Ministério da Saúde. (1989). Direitos das PVHIV. Departamento de doenças de condições crônicas e infecções sexualmente transmissíveis. http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/direitos-das-pvha
Ministério da Saúde. (1990). Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Presidência da República.
Ministério da Saúde. (2013). Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (1ª reimp.). Secretaria de gestão estratégica e participativa.
Ministério da Saúde. (2017). Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a política nacional de atenção básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da atenção básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ministério dos Direitos Humanos. (2018). Manual orientador sobre diversidade. Secretaria nacional de cidadania.
Negreiros, F. R. N., Ferreira, B. O., Freitas, D. N., Pedrosa, J. I. S., & Nascimento, E. F. (2019). Saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais: Da formação médica à atuação profissional. Revista Brasileira de Educação Médica, 43(1), 23–31. https://doi.org/10.1590/1981-52712015v43n1rb20180075
Oliveira, M. M. (2001). Metodologia Interativa: Um processo hermenêutico dialético. Interfaces Brasil/Canadá, 1(1), 67–78. https://doi.org/10.15210/interfaces.v1i1.6284
Rocon P. C., Rodrigues A., Zamboni J., & Pedrini M. D. (2016). Dificuldades vividas por pessoas sem acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 21(8), 2517–2526. https://doi.org/10.1590/1413-81232015218.14362015
Santos, J. S., Silva, R. N., & Ferreira, M. A. (2019). Saúde da População LGBTI + na Atenção Primária à Saúde e Inserção de Enfermagem. Escola Anna Nery, 23(4), e20190162. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2019-0162
Silva L. K. M., Silva A. L. M. A., Coelho A. A., & Martiniano C. S. (2017). Uso do nome social no Sistema Único de Saúde: Elementos para o debate sobre a assistência prestada a travestis e transexuais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 27(3), 835–846. https://doi.org/10.1590/s0103-73312017000300023
Silva, A. L. R., Finkle, M., & Moretti-Pires, R. O. (2019). Representações sociais de trabalhadores da atenção básica à saúde sobre pessoas LGBT. Trabalho, Educação e Saúde, 17(2), e0019730. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00197
Recebido em: 31/03/2020
Última revisão em: 02/03/2022
Aceite final em: 16/03/2022
Sobre os autores:
Felipe Coura Rocha: Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pós-graduado em Residência Integral em Saúde, pela Escola de Saúde Pública do Ceará (RIS-ESP/CE). Psicólogo pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: felipe_coura@outlook.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1202-2285
Juliana Vieira Sampaio: Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Docente do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), campus de Sobral. Docente do Programa de Pós-Graduação Profissional em Psicologia e Políticas Públicas da UFC, campus de Sobral, linha 1. Clínica, Saúde e Políticas Públicas. E-mail: julianavsampaio@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5770-244X
1 Endereço de contato: Rua 43, n. 401-A, Jereissati II, Maracanaú, CE. E-mail: felipe_coura@outlook.com
2 Para mais informações sobre a Associação Pela Livre Orientação Sexual de Guaiúba (APLOSG), o perfil no Instagram é @aplosg_guaiuba.