Percepções de Profissionais da Saúde sobre Violência contra as Mulheres
Perceptions of Violence Against Women by health Professionals
Percepciones de Profesionales de la Salud acerca de la Violencia contra la Mujer
Kalline Flávia Silva de Lira1
Ricardo Vieiralves de Castro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Resumo
Introdução: A violência contra mulheres é reconhecida como um tema de direitos humanos e de saúde pública, sendo os serviços de saúde fundamentais para identificação e acolhimento dos casos. Este artigo descreve as percepções dos/as profissionais da saúde sobre a violência contra as mulheres. Método: Foram realizadas entrevistas com 26 profissionais que atuam em diferentes serviços numa região do sertão de Pernambuco, analisadas pela técnica de análise de conteúdo. Resultados: Destacaram-se três eixos de análise: compreensão da violência contra as mulheres; conhecimento da rede e das legislações; e atendimento às mulheres em situação de violência. Discussão: Verificou-se que os/as profissionais têm dificuldade em reconhecer tipos de violência, apresentam uma visão preconceituosa em relação à mulher e desconhecem a rede e as legislações pertinentes. Conclusões: É fundamental os/as profissionais terem informações sobre violência, rede de serviços e leis, bem como reconhecerem-se como atores importantes na identificação e no enfrentamento da violência.
Palavras-chave: violência contra a mulher, serviços de saúde, profissionais da saúde
Abstract
Introduction: Violence against women is recognized as a human rights and public health issue, and health services are fundamental to identify and host cases. This article describes the perceptions of health professionals about violence against women. Method: Interviews were carried out with 26 professionals working in different services in a region of the hinterland of Pernambuco, analyzed by the content analysis technique. Results: Three axes of analysis were highlighted: understanding of violence against women; knowledge of the network and legislation; and assistance to women in situations of violence. Discussion: It was verified that professionals have difficulty in recognizing types of violence, present a prejudiced vision in relation to women, and are unaware of the network and pertinent legislations. Conclusions: It is fundamental that professionals have information about violence, network of services and laws, as well as recognize themselves as important actors in identifying and facing violence.
Keywords: violence against women, health services, health personnel
Resumen
Introducción: La violencia contra la mujer se reconoce como una cuestión de derechos humanos y salud pública, y los servicios de salud son fundamentales para identificar y tratar los casos. Este artículo describe las percepciones de los profesionales de la salud sobre la violencia contra las mujeres. Método: Se realizaron entrevistas a 26 profesionales que trabajaban en diferentes servicios en una región del interior de Pernambuco, analizadas mediante la técnica de análisis de contenido. Resultados: Se destacaron tres ejes de análisis: la comprensión de la violencia contra la mujer; el conocimiento de la red y la legislación; y la asistencia a las mujeres en situación de violencia. Discusión: Se verificó que los profesionales tienen dificultad para reconocer los tipos de violencia, presentan una visión prejuiciosa en relación con la mujer, y no conocen la red y las legislaciones pertinentes. Conclusiones: Es fundamental que los/las profesionales dispongan de información sobre la violencia, la red de servicios y las leyes, así como que se reconozcan como actores importantes en la identificación y el enfrentamiento de la violencia.
Palabras clave: violencia contra la mujer, servicios de salud, profesionales de la salud
Introdução
A violência contra as mulheres é um fenômeno social que vem ganhando visibilidade nos últimos anos e, desde a década de 1990, é reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um tema de direitos humanos e de saúde pública, atingindo uma ampla quantidade de mulheres ao redor do mundo (Organização Pan-Americana de Saúde, 2015).
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como a Convenção de Belém do Pará, realizada em 1994 e ratificada no Brasil pelo Decreto nº 1.973, de 1996, define violência contra a mulher como qualquer conduta de ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, seja no âmbito público ou no privado.
Segundo o Mapa da Violência, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking dos países que mais cometem violência contra as mulheres. O Mapa também aponta que, apesar de o local mais comum de acontecer violência contra mulheres ainda ser a via pública, a residência da vítima aparece em 27,1% dos casos, sendo um dado relevante, pois o domicílio não é proeminente nas violências contra homens (Waiselfisz, 2015). Conforme estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), o índice de violência doméstica com vítimas femininas é três vezes maior que o registrado com homens. Os dados avaliados na pesquisa mostram também que, em 43,1% dos casos, a violência ocorre na residência da mulher, e, em 36,7% dos casos, a agressão se dá em vias públicas (Cerqueira et al., 2019).
Ainda segundo o Mapa da Violência, em 67,2% dos casos, o agressor era parceiro, ex-parceiro ou parente imediato da mulher (Waiselfisz, 2015). No estudo do IPEA, 32,2% das situações de violência foram cometidas por pessoas conhecidas, 29,1% por pessoa desconhecida e 25,9% pelo cônjuge ou ex-cônjuge da mulher. Com relação à procura pela polícia após a agressão, muitas não fazem a denúncia por medo de represália ou impunidade: em 22,1% dos casos, as mulheres procuram a polícia, porém 20,8% não registram queixa (Cerqueira et al., 2019).
Em 2006, foi aprovada no Brasil uma lei que prevê o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres, a Lei nº 11.340, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”. A referida Lei, em consonância com a Convenção de Belém do Pará, define violência doméstica ou familiar contra a mulher, em seu o artigo 5º, como sendo toda ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto, em que o agressor conviva ou tenha convivido com a agredida.
Com o objetivo de enfrentar as desigualdades entre homens e mulheres por meio de ações e políticas públicas que possam combater as desigualdades e defender os direitos das mulheres em todo o país, foi elaborada a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (Brasil, 2011a). A Política busca aperfeiçoar a rede de atendimento e garantir a implementação da Lei Maria da Penha e demais normas jurídicas nacionais e internacionais. Além disso, prevê a construção da rede de enfrentamento da violência contra as mulheres. Essa rede considera a rota crítica que as mulheres em situação de violência percorrem e tem diversas portas de entrada, como os serviços de emergência na saúde, delegacias, serviços de assistência social, e devem atuar de maneira articulada para prestar uma assistência qualificada às mulheres.
De acordo com Schraiber e D’Oliveira (2003), a intervenção em situações de violência não deve ser tarefa exclusiva das áreas jurídica, policial e psicossocial, mas também da área da saúde, ressaltando que as mulheres são as principais usuárias dos serviços, principalmente na atenção primária. Devido à sua capilaridade, os serviços de saúde são portas de entrada importantes para a rede de atendimento às mulheres em situação de violência.
Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (2015), a violência contra as mulheres apresenta muitas consequências para a saúde, as quais constantemente não são identificadas corretamente, como suicídio, infecções sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada e problemas de saúde mental. Além disso, a mulher pode não relatar os acontecimentos de violência que sofre espontaneamente, o que dificulta seu diagnóstico.
Em Pernambuco, segundo o Mapa da Violência, houve 256 assassinatos de mulheres no ano de 2013, o que significava o 15º lugar no ranking nacional. Ainda assim, a taxa de homicídios era de 5,5 por 100 mil habitantes, acima da média nacional de 4,8 (Waiselfisz, 2015). De acordo com dados atualizados do Atlas da Violência, Pernambuco ocupa a 12ª posição entre os estados que mais matam mulheres no Brasil, com uma taxa de mais de seis homicídios para cada 100 mil mulheres continuando, portanto, maior do que a média nacional, que é de 4,7 mortes para cada 100 mil mulheres (Cerqueira et al., 2019). Em relação à violência doméstica e familiar contra as mulheres, Pernambuco registrou, no ano de 2012, 28.189 casos. Em 2019, esse número aumentou para 42.665, ficando em 41.403 casos em 2020 (Pernambuco, 2021).
Considerando a importância da rede de saúde na identificação e no acolhimento das mulheres em situação de violência, este artigo tem como objetivo descrever as percepções de profissionais sobre a violência contra as mulheres em municípios do sertão de Pernambuco.
Método
A pesquisa aqui apresentada é um recorte de uma pesquisa de doutorado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), sob o número de registro CAAE nº 83078117.6.0000.5282.
Cenário da Pesquisa
A região escolhida para realização da pesquisa fica localizada na mesorregião do Sertão de Pernambuco, com uma área equivalente a quase 11.550 mil km2 e constituída por dez municípios. A última projeção de estimativas populacionais para os municípios para o ano de 2018 aponta uma população de pouco mais de 331 mil habitantes, com densidade demográfica de 28,7 hab./km2 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2018).
Na região pesquisada, foram 1.151 casos de violência contra as mulheres, representando 2,8% do total dos casos do estado no ano de 2020 (Pernambuco, 2021). Em alguns municípios, a taxa por cem mil habitantes é mais da metade da apresentada no Recife, embora a população seja menos de 10% da capital, justificando a importância de investigar as percepções dos/as profissionais dessa região sobre o fenômeno. A escolha da localidade para a realização da pesquisa deu-se a partir do conhecimento prévio da pesquisadora, por já ter atuado em diferentes municípios e órgãos da região.
Participantes
Na pesquisa geral do doutorado, participaram 60 profissionais, identificados/as e selecionados/as a partir dos critérios de inclusão: atuar em algum serviço da rede pública de saúde; atuar em um dos municípios localizados na região do Sertão de Pernambuco escolhida para a pesquisa; ter no mínimo 18 anos de idade; e concordar em participar do estudo. No entanto, apenas 26 participaram da fase da entrevista. A escolha foi aleatória, de acordo com a disponibilidade dos/as profissionais.
Entre os/as 26 participantes, foram 20 mulheres e seis homens, com idade entre 22 e 58 anos. Do total, seis profissionais têm nível médio, 17 têm ensino superior completo e três têm pós-graduação. Dos/as profissionais de nível superior ou com pós-graduação, as formações são: cinco assistentes sociais, duas psicólogas, sete enfermeiros/as, dois biomédicos/as, duas nutricionistas, uma pedagoga e um administrador. Os/as profissionais de nível médio foram três técnicos de enfermagem e três agentes comunitários de saúde. O tempo de atuação na área variou de 1 mês a 30 anos.
Os/as profissionais atuam em diferentes órgãos na área da saúde da região pesquisada, como: Hospital; Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Transtorno e Álcool e Outras Drogas (AD); Laboratório Municipal; Equipes de Saúde da Família (ESF); Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF); e Secretarias Municipais de Saúde, em cargos de gestão/coordenação de políticas, como o Programa Saúde na Escola (PSE) ou a Vigilância Epidemiológica.
Instrumentos
Utilizaram-se como instrumentos de coleta de dados um questionário sociodemográfico e uma entrevista semiestruturada. O questionário foi utilizado para a caracterização dos/as participantes, incluindo perguntas como: idade, grau de escolaridade, tempo de atuação na área da saúde. O roteiro semiestruturado de entrevista foi utilizado para abordar o conhecimento sobre a temática da violência, as legislações pertinentes e sobre a composição da rede de atenção à mulher em situação de violência na região.
Procedimentos de Coleta e Análise dos Dados
As entrevistas foram realizadas no período de abril de 2018 a abril de 2019, em três municípios de uma região do Sertão de Pernambuco, nos locais de trabalho dos/as profissionais, de forma individual. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas integralmente para as análises, que foram realizadas por meio da técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin (2011), que prevê três fases fundamentais: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados (inferência e interpretação). Os dados coletados foram analisados por meio da análise categorial, que, conforme Bardin (2011), consiste no desmembramento do texto em categorias agrupadas analogicamente. A análise categorial é considerada a melhor alternativa para estudos que envolvem valores, opiniões e atitudes a partir de dados qualitativos, como a pesquisa aqui apresentada.
Questões Éticas
Para o acesso aos/às participantes, foram solicitadas previamente autorizações das Secretarias Municipais de Saúde. No momento da coleta de dados, foi esclarecido que a participação era voluntária e anônima, explicando-se os objetivos do estudo e a obtenção posterior dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme o disposto na Resolução nº 466, de 2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Foram garantidos o sigilo e a confidencialidade das respostas dos/as participantes.
Resultados e Discussão
Com objetivo de descrever e analisar as percepções dos/as profissionais da rede de saúde sobre a violência contra as mulheres, a partir da análise categorial das entrevistas, emergiram três eixos de análise: a compreensão da violência contra as mulheres, que identifica o que os/as profissionais consideram como violência; o conhecimento da rede e das legislações, que identifica se os/as profissionais reconhecem os serviços e as leis pertinentes ao fenômeno; e o atendimento às mulheres em situação de violência, que analisa as práticas profissionais diante de casos de violência contra as mulheres.
Para garantir o anonimato dos/as participantes, os nomes serão omitidos e os trechos das entrevistas serão seguidos da profissão, local de trabalho e idade dos/as profissionais.
Compreensão da Violência contra as Mulheres
Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (2015), a violência contra as mulheres assume diversas formas, mas as violências física, sexual e emocional perpetradas pelo parceiro são as mais comuns, podendo ter consequências graves e permanentes na saúde física e mental das mulheres.
Retomando a compreensão posta na Convenção de Belém do Pará, a violência contra as mulheres é definida como qualquer atitude ou conduta que tenha como consequência a morte, o dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, no espaço público ou privado (Brasil, 1996). Na fala dos/as entrevistados/as, é possível verificar como compreendem a violência contra as mulheres a partir dos relatos de alguns casos: “[Ela] teve os dedos prensados na porta, perdeu os movimentos, teve as costas perfuradas, pra proteger o filho recém-nascido de um marido alcoólatra . . .” (Biomédica, Laboratório, 44 anos).
Assim, de acordo com a fala acima, a profissional menciona um caso de violência física, sendo esta a violência mais referida pelos/as entrevistados/as. Conforme Schraiber e D’Oliveira (2003), os atos considerados como violência física incluem tapas, chutes, mordidas, queimaduras, entre outros.
A Lei Maria da Penha aponta outros tipos de violência, como a psicológica, a moral, a sexual e a patrimonial (Lei nº 11.340), que também foram mencionados nas entrevistas:
Porque a [violência] psicológica é terrível. A pessoa em cima de você o tempo todo, a mesma coisa. . . . Porque você fica com aquela . . . Todo dia a mesma coisa, todo dia batendo naquela mesma tecla. Todo dia, todo dia. Eu acho que não tem uma violência pior. A física é mais dolorosa, né? Ela é mais dolorosa, mas a psicológica também é terrível (Enfermeiro, CAPS, 33 anos).
[Ela] sempre apanhou, porque ele bebia, chegava em casa, batia, e queria fazer sexo com ela, sem permissão, porque ele estava alcoolizado, e ela não queria (Assistente Social, Hospital, 35 anos).
Nos trechos destacados acima, pode-se verificar a identificação da violência psicológica, que, conforme Schraiber e D’Oliveira (2003), inclui atos de humilhação, ameaças e privação da liberdade. Também é possível identificar a violência sexual, que pode ser compreendida como qualquer ato sexual ou tentativa de realizar um ato sexual por meio da violência, incluindo comentários ou avanços sexuais indesejados (Freire, 2018).
A percepção da violência contra as mulheres pelos/as profissionais também emerge de uma visão preconceituosa da situação, a partir da visão negativa em relação à mulher que vivencia uma situação de violência.
Porque o que é que às vezes acontece, né, é que o povo diz: eles brigam, se comem, o cara só falta matar a mulher, aí chega uma amiga pra ajudar, e aí depois a própria amiga fica com raiva. E se “intriga”, como se diz aqui. Entendeu? Quem ficou errado? Por isso que o povo às vezes não mete a colher, porque vai meter a colher, e depois ela tá no maior amor com o cara, e quem ficou mal foi a amiga que foi tentar ajudar naquele momento (Psicóloga, CAPS, 37 anos).
Não sei se por pena, não sei se porque convive já com isso há muito tempo e acaba tomando aquela atitude num momento de raiva: “Ah, eu tô [sic] com raiva dele, eu vou lá, vou denunciar agora, vou fazer e acontecer”. Depois ele vem lá, todo arrependido: “Ah, me perdoe, isso não vai mais acontecer”, e ela volta e retira a queixa, e volta a acontecer, e volta a acontecer . . . Até que uma hora vai acontecer algo pior (Enfermeira, Hospital, 30 anos).
É submissa porque acha que tem que ser, porque aprendeu com a mãe, que aprendeu com a vó. Há uma luta do feminismo pra romper a barreira, mas é difícil . . . A mulher se aceita como submissa na relação (Assistente Social, NASF, 55 anos).
Assim, corroborando os dados que apontam que os companheiros, atuais ou ex, são os principais agressores de mulheres (Waiselfisz, 2015), e que as mulheres nem sempre denunciam seus parceiros (Cerqueira e et al., 2019), os/as profissionais justificam a raiva em relação à situação pelo fato de as mulheres serem submissas, às vezes não denunciarem e continuarem no relacionamento.
Outro fator importante que deve ser levado em consideração é o fato de que a experiência vivida por algumas mulheres pode não ser reconhecida como uma violência, ou seja, os atos agressivos cometidos pelo marido são compreendidos como “grosseria” ou “ignorância”, mas são considerados inerentes ao homem: “São grossos, mesmo, os homens. Sertanejo, sertão, nordeste. São grossos, ignorante . . .” (Técnica de Enfermagem, CAPS-AD, 29 anos); “Ela dizia que queria separar porque não se sentia mais bem, não queria mais ele, porque ele sempre foi ignorante com ela . . .” (Técnica de Enfermagem, CAPS, 29 anos).
Por estarem incluídos/as na sociedade que ainda sofre influências do machismo, os/as profissionais da saúde, muitas vezes, constroem e reproduzem um discurso que culpabiliza a mulher pela violência sofrida. Ainda há discursos que retratam que a mulher apanha porque quer ou porque gosta.
Não tem pessoas que dizem que a mulher apanha porque às vezes gosta, né? Então eu acho assim, que às vezes, nesse caso, ela apanha porque gosta, né? Porque ela fica, não denuncia. Acha que tudo é normal, e acha também que ele vai mudar, né? É o pensamento . . . (Nutricionista, NASF, 22 anos).
Ao apontar que a mulher gosta de apanhar, a profissional traz um discurso baseado em estereótipos que foram construídos e reproduzidos ao longo do tempo na sociedade. Diminuir o fenômeno da violência contra mulheres a esse fato é negar uma dinâmica complexa que envolve articulações necessárias para a compreensão do fenômeno, a partir de questões sociais, culturais e históricas.
Conforme Medeiros e Santos (2020), existem vários motivos que levam mulheres a não denunciar a violência. Os/As autoras/es refletem sobre a importância de informar a sociedade de que a mulher que não denuncia, não é porque deseja continuar na situação em que está, mas pode ser por medo, desamparo ou até mesmo porque o agressor prometeu que o episódio violento não aconteceria novamente. Neste sentido, é fundamental desconstruir a ideia historicamente consolidada de que a mulher em situação de violência sente prazer, e interromper a reprodução de ditados como “mulher de malandro gosta de apanhar”.
Dessa forma, segundo Schraiber e D’Oliveira (2003), seja por dificuldades das mulheres, seja porque não podem ainda confiar nos serviços de saúde, as mulheres geralmente não contam que vivem em situação de violência. Isso torna mais importante o conhecimento dos/as profissionais sobre o que é e quais as tipificações da violência contra as mulheres, pois assim poderão identificar e intervir adequadamente nos casos.
Conhecimento da Rede e Legislações
Segundo Schraiber e D’Oliveira (2003), para abordar o problema da violência nos serviços de saúde, os/as profissionais devem ter informações técnicas, bem como conhecer a rede de apoio local (jurídica, policial, psicossocial, entre outras) para decidir junto da mulher sobre a melhor alternativa para cada situação. Além disso, as autoras ressaltam a importância de existir fluxos e instrumentos de registro predefinidos para referenciar o caso.
Ao questionar os/as profissionais sobre a existência dos serviços de apoio às mulheres em situação de violência, a maioria afirma que são pouco conhecidos. Dos/as 26 entrevistados/as, 18 afirmam que os serviços são pouco conhecidos, enquanto sete disseram que são conhecidos. Uma pessoa disse ser indiferente, pois acredita que os serviços nem sequer existam para serem conhecidos.
Em relação aos locais existentes nos municípios em que uma mulher em situação de violência poderia procurar atendimento, apenas dois profissionais referiram o próprio local de trabalho como um lugar possível de a mulher procurar atendimento em casos de violência. Interessante notar que os órgãos da saúde citados foram apenas o Hospital e os Postos de Saúde da Família. Ressalta-se que mesmo os/as profissionais que atuam no Hospital, que é o local de realização de exames traumatológicos e sexológicos na região, não o citaram como possiblidade para a mulher procurar ajuda.
Os locais mencionados pelos/as profissionais foram: Centro de Referência da Assistência Social (CRAS); Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS); Delegacia de Polícia Civil; Hospital; Unidade Básica de Saúde (UBS); Promotoria; e Polícia Militar. Destaca-se que cada profissional pode ter mencionado mais de um órgão.
Embora a maioria dos/as profissionais comente a falta da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) e ressalte a importância da existência deste órgão na região, a delegacia comum foi apontada como principal local para a mulher procurar atendimento.
Parece-nos que se trata de uma contradição, posto que os/as profissionais citam diversos casos da não efetividade dos atendimentos na delegacia:
A questão daqui, da nossa região, é que não tem Delegacia da Mulher. Acredito que tem muito policial machista, que termina culpabilizando a mulher (Psicóloga, CAPS, 37 anos).
O caso vai pra delegacia, aí eles prendem. Às vezes paga fiança, não sei, por falta de prova, vai e libera, e pronto (Técnica de Enfermagem, CAPS, 29 anos).
Geralmente, aqui, se você chegar na Delegacia e falar que foi agredida, não sei o quê, não sei o quê... Acho que eles vão dizer: “Tua culpa” (Técnica de Enfermagem, Laboratório, 28 anos).
Nesse sentido, quando as políticas públicas atuam em parceria, os atendimentos às necessidades da população são mais efetivos e integrais. Afinal, as redes não têm condições de solucionar todas as questões de forma isolada, por isso existe a necessidade dos serviços de saúde atuarem em conjunto. Conforme Arboit et al., (2017), a falta de articulação entre os serviços é obstáculo para a realização da assistência à mulher em situação de violência. Para as autoras, essa desordem pode levar os/as profissionais a não conseguirem identificar quais os serviços a que podem recorrer e, com isso, não conseguem desenvolver ações efetivas de atenção a essa população.
Os/as profissionais que trabalham no Hospital mencionam que a Polícia (tanto Civil quanto Militar) encaminha muitas mulheres, no intuito de realizar o laudo pericial (exame de corpo de delito). Eles/as, por sua vez, falam que encaminham todos os casos para o CREAS. Por outro lado, não souberam dizer se já receberam algum relatório do CREAS informando o andamento dos casos. Segundo uma profissional: “Não existe pra onde você encaminhar a não ser esse: CREAS. A gente faz um Relatório e encaminha pro CREAS” (Assistente Social, Hospital, 35 anos).
Uma profissional do CAPS menciona que o órgão recebe casos do CREAS quando é percebido que houve o desenvolvimento de algum transtorno mental. Da mesma forma, encaminham ao CREAS quando percebem que, além do transtorno, há alguma situação de violência. Porém, afirmou nunca ter recebido encaminhamento do hospital.
A partir dos relatos dos/as entrevistados/as, questionou-se o que poderia ser feito para melhorar a comunicação entre os órgãos. Todos/as os/as profissionais mencionaram a divulgação dos serviços como algo primordial. Isto aponta que, mesmo dentro de um município, muitos/as profissionais não têm conhecimento da existência de todos os equipamentos da rede intersetorial.
Muitas vezes, há uma falta de compreensão sobre o que é cada serviço. Por exemplo, chama atenção o fato de o CREAS ter sido mencionado apenas quatro vezes pelos/as profissionais. Na área da assistência social, esse é o principal equipamento que realiza acompanhamento da população com direitos violados. Os/as profissionais apontam, além da falta de existência de equipamentos específicos, a falta de informação da população sobre o quais são os serviços existentes:
[Falta] Termos um local que a mulher possa procurar, assim, dizer ali é canto delas, eu vou ser atendida ali, eu posso contar, sei que meu problema vai ficar ali, né? Vão buscar resolver da melhor forma possível, né? (Biomédico, Laboratório, 25 anos).
Falta divulgação de onde a mulher pode procurar uma ajuda (Enfermeira, ESF, 29 anos).
Ressalta-se que, nos municípios onde a pesquisa foi realizada, não há nenhum serviço especializado, ou seja, equipamentos que atendam exclusivamente mulheres em situação de violência, como Casa-Abrigo, Casa de Acolhimento Provisório, Centro Especializado de Atendimento à Mulher (CEAM), nem DEAM, conforme preconizado pela Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Brasil, 2011a).
No que se refere à principal falta da rede, a maioria dos/as profissionais menciona a DEAM: “[A Delegacia da Mulher] resolveria muitas coisas. Porque uma delegada boa, ela vai atrás e bota o indivíduo na cadeia” (Técnico de Enfermagem, Hospital, 58 anos). Para outra profissional: “Está pra vim pra cá a Delegacia da Mulher e eu acho que vai ser muito bom, vai ser demais, vai ser bom mesmo” (Técnica de Enfermagem, CAPS, 29 anos).
No que se refere ao conhecimento das legislações específicas sobre a violência contra as mulheres, a maioria dos/as profissionais admite ter pouca ou nenhuma informação. Em relação à Lei Maria da Penha, destacam-se os seguintes relatos:
Eu só sei que ela protege a mulher contra a violência física, e acredito que a verbal também. Não tenho muito conhecimento (Enfermeiro, CAPS, 33 anos).
Não. Eu acho que não [conhecer a lei] (Técnica de Enfermagem, CAPS, 29 anos).
Não, poderia conhecer mais. Eu acredito que, porque a minha prática não ter aprofundado tanto num caso assim, eu não tenho tanto conhecimento (Psicóloga, NASF, 28 anos).
No estudo realizado por Teixeira e Paiva (2021), os/as profissionais relataram conhecer “muito pouco” a respeito das políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher e das legislações específicas.
A pesquisa realizada por Acosta et al. (2018) aponta que os/as profissionais têm uma visão centrada nos agravos físicos. Assim, entende-se que a não compreensão dos tipos de violência pode acarretar um distanciamento das mulheres dos serviços, bem como pode naturalizar as violências, principalmente aquelas que não deixam marcas visíveis, como a psicológica e a moral.
No que se refere ao conhecimento e/ou preenchimento da Ficha de Notificação de Violência, apenas quatro profissionais mencionam preencher a ficha, que são profissionais que atuam ou atuaram em Hospital. Os/As demais profissionais nunca preencheram e alguns/mas desconhecem totalmente a existência da ficha: “Já ouvi falar, mas não conheço” (Enfermeiro, CAPS-AD, 28 anos); “Não, não sabia que existia. É no hospital, é?” (Biomédica, Laboratório, 44 anos); “Não, não conheço. É uma ficha, tipo, pras doenças de notificação compulsória, é? Nunca preenchi” (Enfermeira, Hospital, 46 anos).
No estudo realizado por Teixeira e Paiva (2021), de forma geral, os/as profissionais demonstraram não conhecer a ficha de notificação compulsória e, além de não a usarem, disseram que a ficha não estava disponível no serviço.
De acordo com Santos e Passos (2020), mesmo que os/as profissionais não estejam preparados/as para a realização da notificação compulsória em relação à violência contra a mulher, é fundamental que o tema seja discutido, pois é função dos/as profissionais cuidar e proteger as pessoas em situação de violência e, por isso, devem estar prontos/as para acolher os casos que chegam aos serviços.
Assim, ressalta-se a importância dos equipamentos de saúde para o registro dos casos. Em 2011, todas as violências passaram a fazer parte da Lista Nacional das Doenças e Agravos de Notificação Compulsória, a partir da Portaria nº 104. Dessa forma, a notificação de violência é obrigatória e compulsória a todos/as os/as profissionais de saúde, sejam de estabelecimentos públicos ou privados. Deve-se notificar caso suspeito ou confirmado de violência doméstica, intrafamiliar, sexual, autoprovocada, tortura, entre outras.
O desconhecimento dos/as profissionais em relação às legislações específicas sobre as questões da violência contra as mulheres tem como principal consequência a subnotificação dos casos. Neste sentido, há um abismo enorme entre o que os números expressam e a realidade. Ou seja, se a partir dos dados existentes o Brasil configura no 5º lugar entre os países que mais cometem violência contra a mulher (Waiselfisz, 2015), imagina-se qual seria a posição se os números fossem mais fidedignos.
Atendimento às Mulheres em Situação de Violência
No âmbito da saúde, o fenômeno da violência contra as mulheres vem ganhando visibilidade e importância, por ser considerada uma porta de entrada fundamental para o reconhecimento, a notificação e o encaminhamento dos casos de violência. Porém, apesar dos registros de casos terem aumentado, sabe-se que um grande número ainda passa despercebido pelos/as profissionais, o que ocasiona uma subnotificação de casos (Pereira-Gomes et al., 2015). Por isso a importância de os/as profissionais saberem o que é a violência contra as mulheres, para poder atender às mulheres adequadamente.
Para sabermos a percepção dos/as profissionais sobre a violência contra as mulheres, procurou-se identificar se eles/as já atenderam alguma mulher em situação de violência e quais procedimentos utilizaram diante dos casos. Dos/as 26 entrevistados/as, dez disseram nunca ter atendido, mas todos/as conhecem algum caso de mulher em situação de violência no município.
Dos/as profissionais que trabalham no Hospital, todos/as têm vários casos de atendimento às mulheres em situação de violência. A maioria trazida pela Polícia (Militar ou Civil) para fazer o exame de corpo de delito:
Agressões de namorados, ex-namorados, cônjuges, enfim, até irmão, pai, a gente recebe de tudo aí. Pra fazer laudo, a gente recebe bastante. . . . E geralmente vem com os policiais (Enfermeira, Hospital, 39 anos).
A gente atende muito, porque é constante, sabe? Não é algo que, ah, acontece uma vez perdida. Não, é constante, é rotineiro. Então, assim, é uma mulher que já vem, já sofreu várias vezes em casa, mas que chega um ponto que ela não aguenta mais e ela vai lá e denuncia o parceiro. Então, primeiro ponto dela, ela geralmente procura a Delegacia de atendimento. Depois vem pra cá para ser acolhida pra fazer o laudo traumatológico. E daqui a gente encaminha . . . (Enfermeira, Hospital, 30 anos).
Segundo Schraiber e D’Oliveira (2003), nos serviços de saúde, os números da violência tendem a ser grandes, visto que as mulheres em situação de violência costumam usar esses serviços com maior frequência, sendo que de 25% a 50% das mulheres atendidas podem sofrer ou ter sofrido violência física ou sexual cometida pelo parceiro. As autoras ressaltam que, apesar da frequência, dificilmente as mulheres revelam de forma espontânea a violência sofrida. Por isso, é papel dos/as profissionais ficarem atentos/as aos sinais de que pode haver uma situação de violência como principal desencadeador dos sintomas.
Para Duarte et al. (2019), todos/as os/as profissionais de saúde devem receber treinamentos para saber identificar e manejar o caso de violência de maneira adequada, desde o momento da chegada ao serviço, para ser possível estabelecer uma relação de confiança com a paciente.
Uma profissional que atua no CAPS do município menciona que, mesmo não trabalhando num local específico para atendimento às situações de violência, já atendeu várias mulheres que desenvolveram algum transtorno mental como consequência da violência sofrida: “. . . porque ele bebia, e aí, quando ele bebia, batia nela. Hoje ela se cansou, e deu parte dele, e ele foi preso. Hoje ela tem transtorno mental” (Psicóloga, CAPS, 37 anos).
A profissional menciona também casos em que a mulher não relatou estar em situação de violência, mas que ela suspeitou que, por trás da queixa principal, pudesse haver agressões: “Teve uma paciente, muito deprimida, e eu comecei a investigar, e aí depois eu descobri um abuso sexual. De familiares. Já era coisa muito antiga” (Psicóloga, CAPS, 37 anos).
Para Teixeira e Paiva (2021), é fundamental a capacidade dos/as profissionais para identificar a violência, mesmo quando as mulheres não relatam de maneira espontânea. Assim, os/as profissionais da pesquisa apontaram a importância do vínculo e da “escuta atenta” para a construção de uma relação com as pessoas que buscam o cuidado. A partir dessa escuta, é possível identificar situações de violência.
A identificação de violência como desencadeadora ou causadora de sintomas, especificamente relacionados à saúde mental, é fundamental para um atendimento efetivo e integral do caso. No que se refere à ligação entre violência e transtornos mentais, o estudo realizado por Mendonça e Ludermir (2017) aponta que a incidência dos transtornos mentais comuns (TMC) foi de 44,6% entre as mulheres que relataram violência nos últimos 12 meses antes da pesquisa. Além disso, os transtornos estavam associados à violência psicológica, mesmo quando não havia violência física ou sexual. As pesquisadoras concluíram que a violência por parceiro íntimo está associada à incidência de TMC nas mulheres, e que é fundamental o tratamento das consequências da violência e o apoio às mulheres.
A partir do grande número de profissionais que afirmaram nunca ter realizado atendimento, questionou-se como realizariam o atendimento e/ou encaminhamento da mulher em situação de violência:
Primeira coisa a fazer é conversar com ela, procurar um psicólogo, porque essa mulher tem muitos traumas, né? (Enfermeiro, CAPS, 33 anos).
Eu falaria pra ela denunciar, que era o melhor que ela tinha pra fazer. E assim . . . se afastasse dele (Técnica de Enfermagem, Laboratório, 28 anos).
Para outro entrevistado, seria muito complicado se envolver num relacionamento de outras pessoas, mesmo como profissional. Para ele, o encaminhamento deve ser: “Aconselhar alguma coisa, falar com algum parente que ela tem mais proximidade” (Biomédico, Laboratório, 25 anos). Isso demonstra não apenas a falta de capacitação nas questões específicas sobre a violência contra as mulheres, bem como o desconhecimento dos órgãos existentes no município.
Em consequência, foi questionado se, para eles/as, há uma boa comunicação entre os órgãos que compõem a rede de atendimento à mulher em situação de violência. A maioria dos/as profissionais entrevistados/as acredita que não existe uma boa comunicação entre os órgãos, e, com isso, há pouca efetividade no enfrentamento da violência. Num trabalho articulado em rede, os vários serviços existentes devem encaminhar os casos para os órgãos competentes, de acordo com cada situação, de modo a atender o/a usuário/a de forma mais completa possível. Esses encaminhamentos são a referência e a contrarreferência.
A gente faz um Relatório e encaminha pro CREAS, muitas vezes a contrarreferência não vem. Quando vem, a gente tá recebendo muito de Ouricuri, que são muitos que a gente encaminha, quando a contrarreferência vem é que não achou o endereço, não achou a pessoa, a pessoa mudou. São poucos que realmente encontrou a mulher e que tão fazendo acompanhamento com essa mulher, são poucos. Pelo menos duas que eu vi de contrarreferência, não encontrei nenhum fazendo acompanhamento (Assistente Social, Hospital, 35 anos).
A referência e contrarreferência têm como objetivo principal a organização dos serviços, de forma a possibilitar o acesso pelas pessoas que procuram os serviços de saúde. Assim, uma mulher atendida na unidade básica, quando necessário, deve ser “referenciada”, ou seja, encaminhada para uma unidade de maior complexidade ou de outra rede de atendimento, para que receba o acolhimento de que necessita. É fundamental que, após a finalização do atendimento dessa necessidade, a mulher seja “contrarreferenciada”, ou seja, o/a profissional deve encaminhar a mulher para que a unidade de origem dê continuidade ao atendimento (Brasil, 2011b). A referência e contrarreferência devem permitir momentos de diálogos entre os serviços, a construção de fluxos para encaminhamentos e o conhecimento dos serviços existentes no território pela equipe dos equipamentos, além de qualificação constante da equipe profissional.
Ao ser questionado se os equipamentos de saúde têm alguma ação específica em relação à violência contra a mulher, não há um consenso. Alguns dizem que, se algo é feito, é muito pouco. Outros mencionam que a saúde atua a partir de uma agenda, ou seja, em determinados meses, há ações específicas, como o Outubro Rosa (prevenção do câncer de mama e do colo de útero) ou o Novembro Azul (prevenção do câncer de próstata). Além de ações pontuais no Dia da Mulher, nenhum/a soube mencionar outra ação específica.
Para Romão et al. (2019), a falta de recursos humanos e de infraestrutura, as deficiências na rede, além da falta de apoio e investimento do poder público são alguns dos problemas que se destacam na rede de saúde que não favorecem o aperfeiçoamento dos/as profissionais sobre temas da atualidade, entre eles, a questão da violência.
Assim, numa perspectiva de atendimento integral, toda a rede de profissionais deve ser corresponsável pelo cuidado às mulheres em situação de violência. A Lei Maria da Penha fomenta o desenvolvimento de estratégias que possam impactar na qualidade de vida das mulheres, incluindo a implantação de serviços especializados, além de ações de educação, trabalho e renda, entre outros (Lei nº 11.340). Neste sentido, é fundamental mobilizar os/as profissionais para a criação de procedimentos e ações que visem ao acolhimento efetivo das mulheres (e, consequentemente, de suas famílias), no intuito de coibir a violência contra as mulheres.
Considerações Finais
A Organização Pan-Americana de Saúde (2015) reconhece a violência contra as mulheres como questão de saúde pública devido às consequências na saúde da mulher, bem como na saúde da família e na comunidade. Assim, os serviços de saúde podem desempenhar um papel essencial na abordagem da violência contra as mulheres.
Pode-se concluir que, para os/as profissionais da saúde dos municípios da região pesquisada no Sertão de Pernambuco, há uma percepção da violência contra as mulheres arraigada em padrões preconceituosos e machistas, que, muitas vezes, culpabilizam as mulheres pela violência ou por permanecerem na situação de violência. Nota-se que os/as profissionais reconhecem mais a violência física, que deixa marcas pelo corpo e pode ser mais fácil de identificar. Porém, ainda há uma dificuldade em reconhecer os outros tipos de violência preconizados pela Lei Maria da Penha, como a psicológica e a moral.
Percebeu-se que a rede de atendimento à mulher da região analisada é falha. Há uma lacuna enorme no que se refere aos serviços especializados no atendimento à mulher em situação de violência, como a inexistência de uma DEAM.
A partir das entrevistas realizadas, foi possível constatar que a notificação compulsória dos casos de violência contra a mulher, que deve ser realizada nos serviços de saúde, é feita apenas no Hospital, visto que os/as profissionais dos outros órgãos demonstram um desconhecimento da Portaria específica. Em consequência, tem-se uma ineficiência na contabilidade dos dados.
Ressalta-se que não é suficiente implantar os serviços, se não houver uma política de capacitação continuada com os/as profissionais que atuam nos órgãos. Isto porque, conforme demonstrado na pesquisa, muitos/as desconhecem a composição da rede e não se consideram fazendo parte da rede de enfrentamento, não tem informação sobre a legislação específica, nem parecem preparados/as para realizar a escuta e o encaminhamento das mulheres em situação de violência.
Retoma-se a proposição da Organização Pan-Americana de Saúde (2015), que ressalta que os/as profissionais da saúde podem identificar as mulheres em situação de violência, proporcionando atendimento imediato, possibilitando a redução dos danos, com apoio e encaminhamento a outros setores, inclusive os serviços da rede de assistência social e jurídica. No entanto, faz-se necessário destacar que, apesar da probabilidade de a mulher em situação de violência procurar os serviços de saúde, esta nem sempre revela ter sofrido violência aos/às profissionais. Por isso, é fundamental que os/as profissionais reconheçam os tipos de violência, tenham informações sobre os serviços existentes no município ou na região, bem como tenham conhecimentos técnicos para acolher os relatos a partir de uma atitude de respeito e sem julgamentos.
Por fim, ressalta-se que este estudo buscou compreender as concepções de profissionais de saúde em municípios pequenos no Sertão de Pernambuco, tendo dificuldades de cotejar com outras investigações que considerassem o cenário escolhido. Portanto, reforça-se a importância de realização de outros estudos nesta área, e que eles possam alcançar a inter-relação com outras redes de atenção, como segurança pública.
A pesquisa aqui apresentada reforça a necessidade de ampliar os estudos e as intervenções com profissionais da saúde no que se refere às questões de violência, principalmente contra as mulheres. Assim, percebe-se que é fundamental a realização de treinamentos e capacitações dos/as profissionais da rede de saúde do município, para que a mulher em situação de violência seja acolhida de forma adequada.
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Recebido em: 28/09/2020
Última revisão: 26/08/2021
Aceite final: 11/11/2021
Sobre os autores:
Kalline Flávia Silva de Lira: Mestre em Direitos Humanos, pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Psicologia Social, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da Autarquia Educacional do Araripe (AEDA), Pernambuco. E-mail: kalline_lira@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2927-4748
Ricardo Vieiralves de Castro: Mestre em Psicologia Clínica, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Doutor em Comunicação, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor associado do Instituto de Psicologia e da Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenador do Laboratório de Estudos Contemporâneos da UERJ (LABORE). E-mail: ricardo.vieiralves@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0040-8669
1 Endereço de contato: Rua São Francisco Xavier, 524, 1º andar – Bl. D, sala 1001, Pavilhão João Lyra Filho, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ. CEP. 20550-013. Telefone: (87) 99943-2708. E-mail: kalline_lira@hotmail.com