A Objetalização no Hospital e os Tempos de Covid: Uma Elaboração Psicanalítica de Experiências

Objectification in the Hospital and Covid’s Times: A Psychoanalytic Elaboration of Experiences

Objetualización en el Hospital y los Tiempos del COVID: Una Elaboración Psicoanalítica de Experiencias

Sonia Alberti 1

Heloene Ferreira da Silva

Andressa Pinto Diniz

Luisa Freire de Moraes

Luiza da Cunha Soares

Priscila Mählmann Muniz Dantas

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Resumo

Visou-se identificar, a partir da teoria psicanalítica, questões advindas da clínica institucional em um hospital universitário no contexto da covid-19. Os pontos abordados no presente trabalho levaram-nos a elaborar teoricamente um sintoma institucional: a objetalização. Tal conceito já foi utilizado por diversos autores e diz respeito à destituição do sujeito que, nos mais diferentes contextos, pode vir a ser tomado como objeto não apenas das práticas, mas também nos discursos. Levantamos a hipótese de que os efeitos da pandemia vivida em 2020, que assolou o hospital em que atuamos, escancarou a objetalização não apenas dos pacientes e de suas famílias, mas também das equipes, que, em sua maioria, procuraram esmerar-se sobremaneira para fazer frente à conjuntura. Desse modo, sustentamos que a objetalização, que vimos a olhos nus no contexto da pandemia, já estava latente na prática hospitalar, mesmo em tempos menos sombrios.

Palavras-chave: psicanálise, atividades clínicas, hospital de ensino, prática institucional

Abstract

Based on the psychoanalytic theory, we aimed to identify issues arising from institutional clinical practice in a university hospital in the context of covid-19, which led to theoretically elaborate an institutional symptom: objectification. It is a concept used by different authors, which concerns the destitution of the subject who, in the most different contexts, can be taken as an object not only in practices but also in discourses. We hypothesized that the effects of the pandemic experienced in 2020, which overwhelmed the hospital in which we operate, particularly revealed the objectification not only of patients and their families but also of the teams that, in the great majority, tried very hard to cope with the situation. In consequence, we sustain that the objectalization, which we saw with the naked eye in the context of the pandemic, was already latent in hospital practice, even in less dark times.

Keywords: psychoanalysis, clinical activities, teaching hospital, institutional practice

Resumen

Tuvimos como objetivo identificar, con base en la teoría psicoanalítica, cuestiones que surgen de la clínica institucional en un hospital universitario en el contexto del COVID-19. Ellas llevaran a elaborar, teóricamente, un síntoma institucional: la objetualización, concepto utilizado por autores y que se trata de la destitución del sujeto que, en los más diversos contextos, puede ser tomado como objeto no sólo en las prácticas, sino también en los discursos. Hipotetizamos que los efectos de la pandemia vivida en 2020, que azotó el hospital en el que operamos, reveló particularmente la objetualización no solo de los pacientes y sus familias, sino también de los equipos que, en la gran mayoría, se esforzaron mucho en hacer frente a la situación. De esta forma, sostenemos que la objetalización, que vimos a simple vista en el contexto de la pandemia, ya estaba latente en la práctica hospitalaria, incluso en tiempos menos oscuros.

Palabras clave: psicoanálisis, actividades clínicas, hospital docente, práctica institucional

Tomados pela agitação destes tempos de guerra, informados unilateralmente, sem distanciamento, das grandes mudanças que já se realizaram ou que começam a se realizar, e sem previsão quanto ao futuro que está tomando forma, nós mesmos duvidamos do significado das impressões que nos assolam e do valor dos julgamentos que formamos (Freud, 2020, p. 99).

O fragmento acima apresentado foi retirado do texto Considerações contemporâneas ­sobre a guerra e a morte, escrito por Freud (2020) durante o auge da Primeira Guerra Mundial. É interessante observar a atualidade desse texto ao simplesmente substituirmos a palavra guerra por pandemia. A pandemia, que chegou ao Brasil em março de 2020, instaurou um cenário que muito se aproxima ao das observações feitas por Freud naquelas circunstâncias. “Tomados pelas agitações destes tempos”, colocamo-nos ao trabalho.

Introdução

Quando acessamos o hospital pelos fundos, de um lado, vemos a Psiquiatria; do outro, o Necrotério. Duas dependências separadas do funcionamento e à margem. Evocamo-nas aqui por metaforizar uma observação que pudemos fazer nas primeiras semanas nas quais, articuladas à Residência em Psicologia, acompanhávamos os acontecimentos, no mês de março de 2020: as questões subjetivas e a morte ficam afastadas do hospital. Na realidade, essa segregação também ficou clara diante da pandemia da covid-19, quando o Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (HUPE/UERJ), foi designado para referência de tratamento dessa doença. Não havia consenso quanto à abertura para nossa atuação, isto é, se a Psicologia deveria estar em campo ou não. De um lado, houve quem estranhasse nossa presença, com observações como “O que você está fazendo aqui?”, “A presença de vocês não seria proveitosa nem para vocês [psicólogos], nem para o paciente”, “Não há equipamento de proteção individual [EPI] suficiente para nós e para vocês”, o que, no fundo, significava dizer: “Vocês fiquem fora! Caso contrário, usarão máscaras que farão falta para nós”. Os EPIs foram uma novidade para a maior parte do pessoal de saúde, pois, normalmente, não há grandes restrições às suas entradas nas enfermarias e serviços. Porém, diante da gravidade do risco de contaminação, já não era mais possível não se paramentar do modo como, em situações normais, apenas o pessoal que trabalha em centros de doenças infectocontagiosas, ou aquele que se aproxima de um leito sinalizado com “precaução de contato”, o fazem regularmente. Por outro lado, se, de início, as residentes em Psicologia escutavam vozes tímidas solicitando sua presença, aos poucos, cada vez mais, puderam observar demandas por sua atuação, tanto de médicos quanto da enfermagem; e, passados os primeiros meses da pandemia, uma enfermeira chegou a dizer: “Médicos e enfermeiros foram obrigados a estarem aqui esse tempo todo, mas vocês, residentes da Psicologia, foram os únicos que escolheram estar presentes, ao contrário de muitos outros profissionais não médicos”. A ameaça do fim dos recursos de proteção, efetivamente, era uma realidade. Esporadicamente, conseguia-se uma ou outra máscara cirúrgica, mas apenas para circular nos corredores, tentar acompanhar o grande remanejamento e acolher um ou outro membro de uma equipe que demandasse o acolhimento na urgência. O Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IP-UERJ) proibiu a presença de residentes junto a pacientes diagnosticados com covid-19 enquanto não houvesse ­equipamento individual para cada um deles. Somente dois meses depois do início da pandemia e do isolamento social no Rio de Janeiro, que se conseguiu acesso ao equipamento, e, desde então, as residentes participaram da assistência do hospital junto às enfermarias. Toda essa experiência se inscreveu profundamente na formação das residentes de psicologia no hospital. Pudemos verificar mudanças de posição dos próprios médicos para com nosso trabalho, como exemplifica o caso de uma médica do staff que, nas primeiras semanas, impediu as residentes de entrar na enfermaria e, passados alguns meses, essa mesma médica relata ter sentido falta da equipe de Psicologia no setor.

O texto que segue é motivado por seis meses de trabalho no contexto da Residência em Psicologia Clínica Institucional, no Hospital Universitário Pedro Ernesto. Um relato de experiência de psicanalistas no hospital que procura elaborar teoricamente as questões e conquistas que pudemos fazer, bem como contribuir para a melhoria no cuidado à saúde. No momento em que o discurso médico se viu, de repente, atravessado pelo imprevisível que o avassalou, mas, que ao mesmo tempo, colocou à mostra a importância dessa Residência junto às equipes, aos pacientes e seus familiares.

Discussão

A arquitetura hospitalar

No dia 13 de março de 2020, foi publicado o Decreto n. 46.969, que dispõe sobre a criação do Gabinete de Crise para enfrentamento da emergência de Saúde Pública de importância internacional decorrente do coronavírus e dá outras providências (Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 2020). Na ocasião, fomos convocados para uma reunião no auditório da Faculdade de Medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em que todo staff foi instruído sobre as primeiras providências em razão de o hospital ter sido designado pela Secretaria do Estado a assumir-se como referência no tratamento da pandemia. Uma vez convocado a funcionar como uma emergência, fez-se necessário uma reestruturação, o que acarretou o fechamento de enfermarias de diversas especialidades e Centros de Terapia Intensiva (CTIs) para dar lugar a enfermarias voltadas ao tratamento da covid-19. Isso fez com que as equipes fossem remanejadas e passassem a trabalhar com um tipo de atendimento clínico diferente de suas áreas de especialização, o que, para um hospital-escola, teve como uma de suas primeiras consequências a impossibilidade de dar seguimento a algumas residências médicas especializadas, comprometendo a formação. Um residente de cirurgia queixava-se que, em vez de estar no centro cirúrgico, estava em uma enfermaria tratando de pacientes com a covid-19, outros se desesperavam diante da necessidade de atuar em situações de emergência para as quais não tinham formação − por exemplo, a dificuldade na hora da intubação, para o que muitos não tinham se especializado e, menos ainda, tinham-na praticado. Nesse período, todas as cirurgias eletivas e os atendimentos ambulatoriais foram suspensos, enfermarias especializadas fecharam e novos leitos foram criados. Um galpão foi especialmente montado para triagem de pacientes com suspeita de contágio. Pequenas porções de algumas especialidades permaneceram abertas para pacientes que já eram do hospital, em caso de alguma situação clínica ou da necessidade de algumas cirurgias que não poderiam esperar o serviço voltar ao funcionamento normal.

De suas enfermarias, médicos, residentes em Medicina, enfermeiros, auxiliares e fisioterapeutas especialistas foram deslocados para enfermarias exclusivas de covid ou mesmo para os CTIs isolados. Em vez da Ortopedia, da Reumatologia, da Dermatologia, da Nefrologia etc., surgiram o “Covidário” e o “Covitério”, dois conjuntos que passaram a ser assim nominados, informalmente, por alguns membros da equipe de saúde do hospital. O primeiro referindo-se ao caráter de proliferação, cultura e contágio do vírus nas enfermarias-covid, e o segundo fazendo alusão à iminência de morte nos CTIs disponibilizados com exclusividade para pacientes cujo quadro clínico havia se complicado. Com efeito, no início, em função da própria inexperiência, o “Covitério” ameaçava a cada nova internação. Somente aos poucos, quando os pacientes apresentavam alguma recuperação e, sobretudo, quando os profissionais que foram contaminados passaram alguns dias em casa e retornavam, com a frase “Eu sobrevivi!”, que a situação ficou um pouco menos ameaçadora. Infelizmente, não foi essa a regra dos profissionais de saúde, nem no HUPE, nem no mundo, como se sabe. O alto risco de contágio sofrido por esses profissionais se provou bastante mortífero.

De acordo com o Boletim Epidemiológico Especial n. 32 do Ministério da Saúde, no período de 26 de fevereiro de 2020 (data da primeira notificação de um caso confirmado da covid-19 no Brasil) até 19 de setembro subsequente, foram confirmados, no país, 4.582.240 casos de infectados pela covid-19, com 136.532 óbitos. O número de casos de profissionais de saúde com síndrome gripal suspeitos de covid-19 registrados na plataforma e-SUS Notifica, no mesmo período, foi de 1.269.391 casos, ou seja, aproximadamente um quarto dos casos registrados se deram por contaminação do pessoal de saúde, com 388.269 confirmados − 27,1% em relação aos casos suspeitos, mencionados acima (Ministério da Saúde, 2020).

Segundo a pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (2020),

. . . as categorias profissionais com maiores registros dentre os casos confirmados de síndrome gripal por COVID-19 foram técnicos e auxiliares de enfermagem (74.323), seguidos dos enfermeiros (31.710), médicos (23.659), agentes comunitários de saúde (10.380) e recepcionistas de unidades de saúde (9.385). Quanto aos óbitos, a distribuição foi da seguinte forma: técnicos e auxiliares de enfermagem (71), médicos (41) e enfermeiros (20) (Fiocruz, 2020).

O hospital não era mais um lugar de formação, passou a atuar na urgência da situação, e, se era escola de alguma coisa, a medicina que ali se fazia era a de guerra, tudo virou emergência, todos estavam exilados de seus territórios. Tal exílio se mostrou tão maior quanto mais específica era a clínica em que um residente de Medicina havia sido concursado; mas, independentemente de uma maior ou menor especialidade, o discurso médico que atravessa o hospital fixa o residente e o staff em sua Unidade Docente Assistencial (UDA), justamente em consequência da própria necessidade do conhecimento e da experiência cada vez maior imposta pelos avanços da medicina. Contudo, em nossa Residência, ao contrário. A arquitetura do hospital sempre nos permitiu a ocupação de diferentes espaços, o acesso a diferentes clínicas; somos nós, na realidade, os que, com o Necrotério e a Psiquiatria − como dito no início −, sempre atuamos a partir do exílio. Ele nos é familiar, pois há, como já dizia Freud (cf., Weizman, 2005), uma extraterritorialidade intrínseca à nossa posição na clínica. É desse lugar, externo no próprio território − referência tão importante, por exemplo, no ­campo da saúde mental −, que, enquanto psicólogos no hospital, acolhemos o que fica excluído do discurso médico.

Com a pandemia, se atuávamos nos corredores onde se dizia que a paramentação completa não era necessária, na realidade, estávamos em casa, no sentido de que não havia grande diferença em relação ao que já fazíamos antes. Diferentemente, então, do que ocorria com aqueles que se habituaram às compartimentalizações que o discurso médico imprime ao cotidiano da prática hospitalar, diferentemente também dos pacientes que, com a pandemia, tornaram-se eles próprios extraterritorializados, de suas vidas, suas famílias, suas casas, numa outra arquitetura que, se, originalmente, teria sido montada na urgência dos atendimentos e da quantidade de casos, era constantemente subvertida, conforme as necessidades e as vontades pessoais de cada staff presente na ocasião. Dessa forma, as condutas variavam, de modo que, por exemplo, em um mesmo período, algumas enfermarias não covid liberavam acesso à visita, e outras, não.

A reestruturação do hospital gerou efeitos não apenas para os sujeitos que ali trabalham, mas também desvelou uma série de questões institucionais já existentes. Fato é que, com a pandemia, escancararam-se os sintomas da estrutura hospitalar que, normalmente, são velados pelos protocolos de funcionamento. A desestabilização arquitetônica não foi sem se refletir na, também, desestabilização dos protocolos.

Os Protocolos

A formação médica, cada dia mais referenciada a uma medicina baseada em evidências (Latorraca et al., 2018; El Dib, 2007), tem sua prática clínica pautada em Guidelines − diretrizes −, cujo objetivo consiste em reunir as evidências científicas no que diz respeito à prevenção, ao diagnóstico, ao tratamento e à reabilitação. Essas diretrizes organizam o saber científico sobre uma determinada doença e indicam orientações para as condutas de atendimentos aos pacientes, sendo atualizadas frequentemente. Os protocolos clínicos, por sua vez, são as adaptações das referidas Guidelines para a particularidade dos serviços e visam definir os fluxos de atendimento com o intuito de garantir a aplicação das recomendações na prática clínica. As adaptações feitas são baseadas no perfil epidemiológico e nos recursos disponíveis, a fim de assegurar a implementação das orientações no contexto ao qual se aplicam. De forma geral, as Guidelines são documentos maiores que contemplam a prevenção e o tratamento de determinada doença, enquanto os protocolos são orientações dadas pela direção de cada setor e que devem ser seguidas em cada situação, garantindo, então, uma normatização da prática, de modo a torná-la o mais eficaz possível e salvaguardando o ato médico. Evidentemente, em contrapartida, também impedem qualquer ato neles não referido, mesmo se esse ato pudesse ser mais adequado em uma situação singular.

De uma forma geral, o cotidiano de um hospital funciona tão mais integrado quanto mais cuidado ele tiver para com os protocolos. Eles servem como referência aos atos médicos e estão afixados nos diferentes murais de cada enfermaria. “Em caso de parada cardíaca, proceda da seguinte maneira” e, em seguida, uma lista de ações necessárias. De tal modo que cada membro da equipe médica sabe exatamente o que fazer, quem deve ir buscar o desfibrilador, quem deve aplicar a insulina, quem deve avisar o CTI etc. Cada situação com que um serviço pode vir a ter de se deparar já está prevista a priori, assim como todos os atos médicos que devem vir em consequência. Mas, diante da imprevisibilidade da situação da pandemia, os protocolos organizados pela direção do hospital, com a finalidade de orientar e ordenar as ações de transição, precisaram ser revistos e relançados quase que diariamente.

Como observa Barbosa et al. (2020), a partir do decreto emitido pela OMS, em 11 de março de 2020, sobre as orientações para a organização e o gerenciamento dos centros de tratamentos específicos no cenário da pandemia por covid-19, os protocolos que mais se destacaram em nível mundial foram aqueles que orientavam as triagens nas unidades de saúde, os que criavam instalações comunitárias para o cuidado de pacientes leves e aqueles sobre os centros de treinamento e direcionamento para enfermarias ou similares específicos para os casos mais graves.

Ainda que o objetivo desses protocolos fosse o de estabelecer certa isonomia, eles tiveram de ser adaptados à especificidade de cada setor, tendo em vista as limitações do espaço físico ou até mesmo da organização das equipes, que desenvolveram estratégias para assimilar o novo funcionamento. Por exemplo, um setor contava com uma sala própria para a paramentação e desparamentação de EPIs, enquanto o outro não contava, no início, com essa disponibilidade física, tendo de providenciar, no corredor, um espaço para essa função.

Entre o “Covitério” e as Famílias

Dentre os muitos protocolos que eram seguidos em situações normais, aquele para atendimento ao óbito foi mantido no HUPE para os pacientes não covid-19: alguns familiares podem se aproximar do falecido, e o médico conversa e desce com os familiares para a Portaria, a fim de formalizar a certificação do óbito. No entanto, tal protocolo já não era suficiente para os casos da pandemia, em razão da gravidade da emergência, não apenas por causa do número de óbitos, mas também por causa do risco de contágio na lida com o corpo desses pacientes e da impossibilidade de convocar a família. Apesar de um médico descer para atestar o óbito, ele não tinha tempo para permanecer com a família, que, diante da ausência de um atendimento mais personalizado, não recebia a atenção adequada.

O pessoal da Portaria, responsável pela internação, terceirizado e sem formação alguma para lidar com essa excepcionalidade, angustiava-se enormemente, sem um mínimo de apoio. Finalmente, por falta de um setor especializado para a gestão do necrotério, aquele mesmo pessoal foi responsabilizado pelo encaminhamento do corpo. No necrotério, recebiam um único familiar para confirmação do óbito.

Se o morrer no hospital já contribui para tornar “a morte invisível” (Rezende et al., 2014, p. 29), ainda que haja preocupação com a humanização no trato com os pacientes e suas famílias, o isolamento social e os números vertiginosos de óbitos, decorrentes da pandemia, tornam essa experiência ainda mais radical. Observávamos, preocupadas, a impossibilidade dos cuidados com os laços familiares, com as posições subjetivas, as angústias tanto das equipes quanto dos pacientes e de seus familiares; mas, inicialmente, devido à falta de equipamento adequado para as psicólogas, só tentávamos intervir quando possível. As soluções encontradas pela Residência em Psicologia serão desenvolvidas em outra oportunidade. O que nos interessa neste artigo é elaborar teoricamente o que foi escancarado pela pandemia: o sintoma que ela permitiu identificar na prática institucional, a objetalização.

Conclusão

A Objetalização

Equipes, pacientes e familiares sofriam a conjuntura avassaladora, por maiores que tivessem sido o cuidado e o trabalho incessantes da direção do hospital para rever protocolos, conforme eram noticiados eventuais avanços nacionais e internacionais no combate à pandemia, seus efeitos econômicos, sociais e psíquicos. Após um dia extenuante de trabalho, os médicos saíam do hospital com a tarefa de ainda decorarem, para o dia seguinte, as mudanças dos protocolos, que frequentemente eram diárias, justamente em razão das incessantes tentativas das chefias dos setores e da direção do hospital em acertar o passo, no aggiornamento esperado − mas nem sempre possível.

Desde sempre, identificamos não apenas em nosso trabalho cotidiano no hospital como também em cada produção acadêmica e bibliográfica que dele emana, ao longo dos últimos mais de vinte anos, que cada pessoa com quem nos deparamos no exercício da prática institucional deve ser, por razões éticas mesmo, considerada um sujeito. Nem sempre isso é simples, e a dificuldade com a qual nos deparamos no contexto que aqui analisamos deixou isso mais claro ainda. O sintoma da objetalização, a que já se referiam Darriba & Oliveira (2019), sempre foi uma tendência acentuada, quando desconsidera “a importância da subjetivação das perdas e do trabalho psíquico em jogo na singularidade de cada caso” (Darriba & Oliveira, 2019, p. 167).

No início da pandemia, nem mesmo celulares dos pacientes foram admitidos nas internações. Sem possibilidade de contato com o mundo exterior, as equipes, avassaladas com a quantidade de trabalho, a exaustão e suas próprias angústias por se verem ali, expostas ao contágio, não tinham ainda possibilidade de se ocupar do acolhimento subjetivo dos pacientes e de seus próximos. Na realidade, as preocupações dos médicos, residentes em Medicina e demais membros das equipes que estavam atuando nas linhas de frente − nos CTIs e no interior das enfermarias-covid –, preocupações não apenas com sua própria saúde, mas também a de seus familiares, levaram vários a se associarem para alugar apartamentos nas imediações do hospital, de forma a não terem que voltar para a casa que dividiam com pais, filhos pequenos, às vezes até com pessoas idosas, e não correrem o risco de também contaminá-las com o que possivelmente foram contaminados na prática da profissão. Também aqui houve um exílio, de suas casas e famílias, de seus filhos e cônjuges.

Andrien (2007) chamava já atenção para o fato de que, na mesma proporção que os hospitais se veem cada vez mais obrigados a familiarizarem-se com a busca por uma eficácia que acompanha a medicina baseada em evidências, instituem-se práticas de despersonalização, de objetalização, a ponto de pacientes já não mais terem nomes, mas serem designados pelas próprias síndromes e afecções clínicas que os levaram à internação.

Nos corredores de certos serviços, não se fala mais de um paciente, mas da síndrome de Lyell da enfermaria 27, e da neuropatia diabética da enfermaria 4. Se o termo ‘paciente’ não está mais em uso, o que não dizer do termo ‘sujeito’. . . O vírus da despersonalização, da desumanização, da objetalização também já atingiu o setor médico (Andrien, 2007, s/p, tradução nossa)2.

Trata-se de um novo uso do termo objetalização, frequentemente utilizado no contexto da análise de situações em que crianças são tratadas como objetos dos adultos (Faria, 2018; Piza & Alberti, 2014; Drummond, 2007), mulheres são objetos de maus-tratos de seus parceiros (Lima, 2016), ou quando o consumidor é dessubjetivado, tomado exclusivamente como objeto a influenciar para comprar (Bertonzzin, 2016). Também ocorre no contexto do próprio saber científico, quando o sujeito se vê apático e alienado, “imerso num discurso da apologia de uma suposta felicidade plena proporcionada pelo saber científico, saber este que pretende superar todo e qualquer limite e suprir toda e qualquer falta” (Torezan & Aguiar, 2011, p. 526). É assim que Santos et al. (2020) observam uma “objetalização do corpo do paciente diante do discurso médico” (Santos et al., 2020, p. 13), o que situa bem o tema de que aqui tratamos, mas que, no contexto que delineamos, não se resume ao corpo do paciente, e sim a todos os acontecimentos dentro do hospital.

Os reflexos da pandemia, dizíamos, escancararam o sintoma que já estava presente antes dela, permitiram ver o que já observávamos, mas que ficava como que velado pelo funcionamento habitual, conforme os protocolos estabelecidos, sem grandes questionamentos. O conceito de sintoma como aquilo não apenas que claudica, mas que assinala a presença de alguma coisa que se dá a ver por contrabando, no sentido de não ser dito de maneira clara e objetiva, e sim nas entrelinhas, é caro à psicanálise desde seu início, porque é índice de uma verdade do sujeito para muito além daquilo que ele próprio personifica, sustenta ser. E é nesse sentido que aqui o tomamos, como uma verdade que se apresenta do modo como se constitui atualmente o funcionamento do hospital. Com a chegada da medicina tecnológica, “as condições que estimulam o emprego do método clínico tornam-se cada vez mais raras” (Pimenta & Ferreira, 2003, p. 225) e, por maior que seja o cuidado de parte do pessoal da saúde para com os pacientes e seus familiares, no que tange justamente à humanização do atendimento, ele deixou de ser necessário, como se isso não fizesse mais parte do próprio tratamento que um sujeito precisa receber visando à recuperação de sua saúde. Ele torna-se contingente: dependendo do staff que estiver presente, da boa vontade desse ou daquele profissional, da maior ou menor empatia, o paciente e sua família recebem diferentes atenções. Porque, no fundo, com a medicina tecnológica, as técnicas laboratoriais estão cada vez mais sofisticadas, a ponto de, não raro, permitirem “antecipar-se aos fenômenos clínicos e à manifestação dos sintomas” (Pimenta & Ferreira, 2003, p. 224); já não é tanto a clínica que dita os protocolos de atendimento, mas são as probabilidades estatísticas que identificam os fatores de risco, normatizados. Na melhor das hipóteses, índices estatísticos sobre eventuais efeitos depressores, de ansiedade, de fenômenos causados por stress, são listados de forma a nortear novamente protocolos para as internações se tornarem menos iatrogênicas quanto às consequências psíquicas.

Mas tais dados e protocolos, mais uma vez, não se ocupam com uma possível humanização do atendimento, apenas reincidem na tentativa de antecipar fenômenos clínicos visando evitar o surgimento de sintomas que a literatura médica pôde, em algum momento, ter identificado como iatrogênicos. As singularidades subjetivas que emanam do atendimento clínico entendido no sentido original do termo, ou seja, do atendimento personalizado a cada caso, ficam de fora, são excluídas, e os pacientes e seus familiares se tornam apenas objetos de aplicação de técnicas protocolares que, na pandemia, justamente, não mais funcionavam.

O lugar do objeto, na teoria psicanalítica, em especial no seu afinamento por Lacan, em seu O Seminário, livro 4: a relação de objeto (Lacan, 1995), conceitua isso muito bem. Isto é, todo sujeito já ocupou esse lugar em algum momento de sua vida, submetido que esteve ao próprio fato de se ver obrigado a inserir-se nas normas da cultura que, como sempre observou Freud, exigem o recalcamento das pulsões e, não raro, de desejos, quando ele se vê em situação de desamparo. Seja por estar doente, seja por ter um ente querido doente, ou ainda por estar inserido em equipes numa situação de urgência em que ele próprio se angustia com a possibilidade de se ver contagiado ou contagiar sua própria família, há um retorno dessa experiência na vida do sujeito. Frequentar esse lugar de objeto, por não ser desconhecido de ninguém, pode ser reforçado numa condição fragilizada, e cada um pode nele se alojar, quando a incomensurabilidade da situação para um ou outro sujeito contribui com a própria objetalização em repetição. As consequências tanto para a saúde física quanto a mental não devem ser negligenciadas, como testemunham, por exemplo, os próprios textos que identificam efeitos depressores, de ansiedade, de fenômenos causados por stress. Quando a própria instituição não só não cria mecanismos para auxiliar o usuário ou o profissional a se posicionar como sujeito do desejo, das escolhas, responsável pela direção que escolheu para sua vida, mas, ao contrário, objetaliza-o também, urge uma intervenção que possa interromper esse processo que, caso contrário, se torna um verdadeiro círculo vicioso da objetalização.

Se, por um lado, o discurso médico, ancorado pelos protocolos, reduz as desordens da subjetividade, por outro lado, isso muitas vezes fracassa, e é desse fracasso que se abre espaço para a atuação da psicanálise na instituição hospitalar (Villardo et al., 2011). Quando não há respostas prontas, muito menos definitivas, isso tem efeitos para o próprio ato médico. Lidar com questões que dizem respeito diretamente a sujeitos, pessoas, com suas histórias e suas próprias angústias, é, antes de mais nada, sempre garantir um lugar para cada um, inclusive para o que não se sabe, para o furo no saber, como se expressa a psicanálise. “A clínica do mal-estar é, propriamente falando, a clínica da Psicanálise, uma vez que o mal-estar é inarredável e assume diferentes formas em cada cultura e em cada época” (Manso et al. 2016, p. 1083).

É por isso que nos interessou tanto demonstrar esse funcionamento, que nos auxilia a elaborar teoricamente o que claudica no hospital. Delimitamos o período da pandemia para ilustrar a dinâmica dessa claudicação, pois a pandemia foi um momento em que protocolos foram mudados a cada dia, ou mesmo, simultaneamente, na medida em que um staff decidia uma conduta enquanto seu colega decidia uma outra diferente. Além disso, foi também um momento em que as equipes não podiam mais funcionar como estavam habituadas, porque a situação era totalmente anormal, a ponto de ter havido mudança até mesmo na própria arquitetura interna do hospital. Dessa forma, os profissionais da assistência passaram a se ver como objetos de uma engrenagem que antes parecia funcionar, mas apenas parecia. . . O que assinalamos é que, desde antes da pandemia, já havia essa objetalização da qual tratamos aqui, ainda que de forma menos explícita, nas entrelinhas, em função do próprio modo de os discursos se darem no hospital. Mas, com a covid-19, cada membro de equipe, cada staff, cada auxiliar de enfermagem, bem como cada paciente e familiar, foram exilados como sujeitos, segregados, isto é, suas singularidades foram deixadas fora do hospital. Ressaltamos que esse processo de objetalização é análogo àquele citado por nós, quanto à segregação do hospital em relação ao Necrotério e à Psiquiatria, também deixados fora do prédio principal. Algo do exílio do que diz respeito às questões subjetivas e suas dificuldades e angústias ficam aí à margem, mas não apenas isso. O que pudemos notar é que foram exiladas também as possibilidades de conhecimento, de saber o que cada uma das especialidades que se praticavam no hospital contribuía com a formação dos alunos, internos, residentes. . . Sujeitos eles, também, que se viram avassalados na urgência da situação que literalmente interrompeu a formação que cada um viera buscar a partir das práticas realizadas nas diferentes áreas de atuação.

A prática da psicologia no hospital já se mostrou inúmeras vezes de enorme importância para que os pacientes, seus familiares e, também, membros de equipes de saúde recuperem um lugar em que se validem suas falas, suas questões subjetivas, suas angústias. Com o que pudemos assistir a partir do que ocorreu na urgência da pandemia a qual assolou o mundo em 2020, mais clara ainda ficou a importância do psicólogo no hospital. Felizmente, o hospital em que trabalhamos não apenas aceita a inserção da psicologia, como, na realidade, solicita-a.

Referências

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Recebido em 30/09/2020

Última revisão em 21/02/2022

Aceite final em 04/04/2022

Sobre os autores:

Sonia Alberti: Pós-doutora pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Psicologia pela Universidade de Paris X – Nanterre. Professora titular e procientista do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista de Produtividade 1B do CNPq. E-mail: sonialberti@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-5120-5247

Heloene Ferreira da Silva: Doutoranda em Psicanálise na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista de Doutorado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). E-mail: heloeneferreira@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7753-5500

Andressa Pinto Diniz: Mestranda em Psicanálise na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Residente do Programa de Especialização em Psicologia Clínica – Institucional, Modalidade Hospitalar na UERJ. E-mail: andressapdiniz@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0690-8197

Luisa Freire de Moraes: Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Residente do Programa de Especialização em Psicologia Clínica – Institucional, Modalidade Hospitalar na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: luisafmoraes@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9624-5891

Luiza da Cunha Soares: Residente do Programa de Especialização em Psicologia Clínica – Institucional, Modalidade Hospitalar na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: luizasoarespsi@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9477-0249

Priscila Mählmann Muniz Dantas: Residente do Programa de Especialização em Psicologia Clínica – Institucional, Modalidade Hospitalar na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: primahlmann@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0045-2774


1 Endereço de contato: Rua João Afonso, 60, casa 22, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 22261-040. E-mail: sonialberti@gmail.com

2 Dans les couloirs de certains services, on ne parle plus d’un patient mais du syndrome de Lyell de la chambre 27, et de la névropathie diabétique de la chambre 4. Si le terme de « patient » n’est déjà plus usité, pensez-vous donc, celui de « sujet ». . . Le virus de la dépersonnification, de la déshumanisation, de l’objectalisation touche déjà quelque part le secteur médical.

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v14i2.1546