A (Não) Adesão ao Tratamento de HIV/Aids: Sentidos, Manejos Clínicos e Dilemas Bioéticos

The (Non) Adherence of HIV/Aids Treatment: Meanings, Clinical Management and Bioethical Dilemmas

La (No) Adherencia al Tratamiento VIH/Sida: Significados, Manejo Clínico y Dilemas Éticos

Fábia Maria Ribeiro Duarte1

Hospital Universitário Professor Edgard Santos

Cristiane de Oliveira Santos

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Rosana dos Santos Silva

Hospital Universitário Professor Edgard Santos

Resumo

O estudo analisa sentidos, manejos clínicos e dilemas bioéticos dos profissionais de saúde sobre a (não) adesão ao tratamento de pessoas com HIV/aids. Trata-se de uma pesquisa exploratória, de caráter qualitativo, com entrevistas semiestruturadas, dirigidas a profissionais de uma unidade de infectologia de um hospital público e submetidas à análise de conteúdo de Bardin. Os achados revelam que há uma diversidade de sentidos atribuídos à (não) adesão, com predominância da perspectiva individualista e racionalista para explicação do fenômeno. Diante dos casos de (não) adesão, os profissionais questionaram a autonomia do paciente, abordando os dilemas bioéticos em torno do sigilo e da confidencialidade do diagnóstico de HIV/aids. Os achados apontaram a necessidade de se pensar estratégias de cuidado guiadas pela elaboração de projetos terapêuticos singulares, bem como de se construir espaços de educação permanente em saúde para a reorientação das práticas de cuidado.

Palavras-chave: não adesão ao tratamento, HIV/aids, manejos clínicos, profissionais de saúde, subjetividade

Abstract

This study analyses the meanings, clinical management, and bioethical dilemmas of health professionals in relation to patient (non) adherence to HIV/aids treatment. This is an exploratory, qualitative study, applying content analysis to semi-structured interviews conducted with health professionals from an infectious disease unit in a public hospital. The findings reveal the diversity of meanings attributed to (non) adherence, with the phenomenon predominantly explained from an individualist and rationalist perspective. Faced with (non) adherence, the professionals questioned patient autonomy and addressed the bioethical dilemmas surrounding the secrecy and confidentiality of HIV/aids diagnosis. The findings indicate the need to consider care strategies guided by tailored therapeutic approaches, and to construct arenas for ongoing health education in order to reorient care practices.

Keywords: non-adherence to treatment, HIV/aids, clinical management, health professionals, subjectivity

Resumen

El estudio analiza significados, manejos clínicos y dilemas bioéticos de los profesionales de sanidad sobre la (no) adherencia al tratamiento de personas con VIH/sida. Se trata de una investigación exploratoria, de carácter cualitativo, con entrevistas semiestructuradas, dirigidas a profesionales sanitarios de la unidad de infectología de un hospital público y sometidas a análisis de contenido de Bardin. Los hallazgos revelan que se atribuyen diversos sentidos a la (no) adherencia, predominando la perspectiva individualista y racionalista en la explicación del fenómeno. Ante los casos de (no) adherencia, los profesionales cuestionaron la autonomía del paciente, haciendo referencia a los dilemas bioéticos en torno al secreto y confidencialidad del diagnóstico de VIH/sida. Los hallazgos apuntan la necesidad de pensar estrategias de cuidado guiadas por la elaboración de proyectos terapéuticos singulares, así como de construir espacios de educación permanente en salud para la reorientación de las prácticas del cuidado.

Palabras clave: no adherencia al tratamiento, VIH/sida, manejos clínicos, profesionales de la salud, subjetividad

Introdução

A implementação da política de acesso universal e gratuito ao tratamento antirretroviral (TARV), no ano de 1996, representou um marco no controle da epidemia de HIV/aids, refletindo na redução de internações hospitalares, mortalidade, incidência de desenvolvimento de infecções oportunistas, na diminuição da transmissão vertical do vírus e no aumento da expectativa de vida (Polejack & Seidl, 2010). A transição de uma doença aguda para doença crônica produziu uma mudança radical na vida das pessoas, colocando em questão a complexidade do viver com a aids (Daniel & Parker, 2018).

Apesar do aumento da expectativa de vida com o tratamento, nota-se a persistência de moralidades vinculadas às pessoas com HIV/aids; o preconceito e a discriminação ainda a mantêm sob forte estigma. Desta forma, persistem o temor e a preocupação quanto às repercussões diante da revelação do diagnóstico, condição que interfere diretamente na adesão ao tratamento (Monteiro & Brigeiro, 2019; Castellani & Moretto, 2016).

Desse modo, o fenômeno da adesão ao tratamento traz para a cena assistencial impasses e desafios para a equipe de saúde, pois toca em questões sobre os processos de saúde e doença, vida e morte, revelando de antemão que a condição de ter uma doença não garante a adesão ao tratamento. Na literatura, de modo recorrente, tal fenômeno é abordado como uma correspondência do comportamento do paciente às recomendações dos profissionais, o que pressupõe uma obediência, escamoteando, por sua vez, os aspectos subjetivos, suas reais necessidades e dificuldades (Reiners et al., 2008).

Quanto às particularidades do HIV/aids, as barreiras à adesão incluem medo de ter o diagnóstico revelado, uso abusivo de drogas, depressão, dificuldade de aceitação do diagnóstico, aspectos socioeconômicos, baixa escolaridade, dificuldade de compreensão sobre o tratamento, crenças sobre os medicamentos e seus efeitos colaterais, falta de confiança na relação com o profissional de saúde, fragilidade do suporte socioafetivo (Mills et al., 2006; Freitas et al., 2020). Portanto, a adesão ao tratamento é um fenômeno multidimensional, que abrange variáveis individuais, características da doença e do tratamento, aspectos da relação com o serviço de saúde e suporte social, tornando-se necessário considerar os aspectos sócio-históricos e culturais envolvidos nesse processo (Carvalho, 2017).

O Ministério da Saúde (2007) propôs uma definição ampliada sobre adesão, que deve ser compreendida como um processo multifatorial que implica decisões compartilhadas e corresponsabilizadas. Recomenda-se que a concepção de adesão transcenda à simples ingestão de medicamento e inclua as tecnologias leves de cuidado (Merhy & Franco, 2003), de modo a reconhecer o vínculo entre o sujeito, a equipe e o serviço de saúde, o acesso à informação e o compartilhamento das decisões relacionadas à própria saúde como condições de produção de cuidado (Ministério da Saúde, 2007). Nessa perspectiva, o indivíduo deixa de ser visto como um mero seguidor das recomendações dos profissionais de saúde e passa a assumir uma posição ativa e colaborativa no seu tratamento (Coelho & Amaral, 2012).

Apesar da importância do vínculo entre a equipe de saúde e a pessoa que vive com HIV/aids, preconizado pelo Ministério da Saúde (2007), há uma escassez de estudos (Ferreira, 2017) de natureza qualitativa dedicados a analisar os sentidos, os impasses e manejos clínicos mobilizados pelos profissionais de saúde ao lidarem com esse fenômeno da (não) adesão ao tratamento.

Considerando que o percurso terapêutico de cada sujeito é marcado por diversos movimentos, barreiras, resistências, ações, desdobramentos e deslocamentos, o que implica múltiplas interações entre uma heterogeneidade de atores – usuários dos serviços e sua rede de apoio, profissionais, instituições, tecnologias, doenças, medicamentos –, que podem produzir efeitos de mudanças em direção à criação de novos rumos e possibilidades de cuidados à saúde (Silva, Santos, & Dourado, 2015), esta pesquisa tem a intenção de trabalhar o fenômeno da (não) adesão a partir da narrativa dos profissionais que atuam na assistência à saúde, reafirmando, com isso, a importância da corresponsabilização do cuidado.

O presente trabalho tem como objetivo analisar os sentidos, manejos clínicos e dilemas bioéticos dos profissionais de saúde sobre a não adesão ao tratamento da pessoa que vive com o diagnóstico de HIV/aids.

O Itinerário Metodológico

Trata-se de uma pesquisa exploratória de caráter qualitativo, realizada em uma unidade de infectologia de um hospital público de Salvador, Bahia, que presta assistência a pessoas com HIV/aids. A unidade conta com uma equipe de referência composta por 38 trabalhadores (3 médicos, 8 enfermeiros e 27 técnicos de enfermagem). Outros profissionais atuavam como interconsultores, mas a escolha em compor o universo da pesquisa com profissionais de referência se deu para fazer ganhar relevo na análise os desafios que aparecem na atuação de uma equipe no cotidiano da assistência, considerando a continuidade do cuidado no hospital. Participaram do estudo 7 profissionais: 3 médicos, 2 enfermeiros e 2 técnicos de enfermagem, com tempo médio de atuação de 14 anos. Dos participantes da pesquisa, 5 mulheres e 2 homens, com idades entre 27 e 61 anos, a maioria se autodeclarou de cor parda. A composição do universo de investigação foi por acessibilidade.

Utilizou-se como instrumento de coleta de dados a entrevista em profundidade, guiada por roteiro semiestruturado, que contemplou: 1 − experiência de cuidado com pessoas com diagnóstico de HIV/aids; 2 − compreensão sobre a díade adesão e não adesão ao tratamento; 3 − afetos, sentimentos e dilemas bioéticos mobilizados nos casos de não adesão; 4 − manejo clínico destes casos. As entrevistas com os trabalhadores foram presenciais, gravadas e, em seguida, transcritas. Tiveram um tempo médio de duração de 60 minutos. Com o objetivo de manter o anonimato dos depoimentos e a confidencialidade das informações fornecidas, não foi identificada a categoria profissional de cada entrevistado.

Os dados obtidos por meio das entrevistas foram submetidos ao método da análise de conteúdo de Bardin (2011), considerando suas três fases: pré-análise, na qual os dados foram organizados a partir de regras, como: exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência; exploração do material, fase em que ocorreram as operações de codificação dos dados; e tratamento dos resultados, momento de proposição de inferências e interpretações sobre o material. A partir deste processo, foram construídas três categorias para este trabalho: (1) sentidos associados à não adesão ao tratamento; (2) manejos clínicos e ressonâncias da não adesão ao tratamento e (3) dilemas bioéticos nos casos de não adesão ao tratamento.

Esta pesquisa propõe uma abordagem interdisciplinar sobre o fenômeno da não adesão à luz da discussão sobre estigma, vínculo, sofrimento, autonomia e vulnerabilidade. Esta articulação promove um encontro entre diferentes saberes e campos, a saber, saúde coletiva, psicanálise e bioética, que permitem pensar os desafios para a produção do cuidado às pessoas que vivem com HIV.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do hospital no qual a pesquisa foi realizada, sob o parecer n. 3.691.141.

Resultados e Discussão

Sentidos Associados à Não Adesão ao Tratamento

Os profissionais de saúde entrevistados atribuíram à não adesão ao tratamento um espectro amplo de sentidos ancorados em diferentes registros. No registro da construção imaginária em torno de quem é a pessoa que vive com HIV/aids em dificuldade de adesão ao tratamento, um conjunto de predicativos se deslocam com o passar do tempo, mas indicam a permanência de um sujeito deficitário (dos pontos de vista socioeconômico, subjetivo, relacional), não raro agressivo, fragilizado em sua autoestima, desistente da vida, que dá muito trabalho e frustra e suscita na equipe ambivalência afetiva.

Uma primeira etapa que põe à prova a resposta da pessoa com HIV à adesão ao tratamento é o momento do diagnóstico. Nesse registro, a partir de suas experiências clínicas, as dificuldades de sua aceitação por parte das(os) usuárias(os) representam um primeiro desafio para o autocuidado, bem como para a construção de vínculos com a equipe:

Pessoas frágeis, carentes, com medo, medo de tudo e pessoas difíceis de lidar, de trabalhar, de se adaptar . . . por recusar o diagnóstico, tem o período de não aceitação, que eles se negam a tudo, se negam a tomar medicação, se negam a se alimentar, se negam a tudo, eles acham que ali acabou a vida deles e até pra eles se adaptarem àquela nova vida, é difícil (P. 04).

No registro da reação social à condição da soropositividade, os participantes apontaram o estigma associado ao HIV/aids como uma marca de diferença em relação às demais doenças crônicas, pelas implicações psicossociais que dificultam a aceitação do diagnóstico e interferem na adesão ao tratamento: “. . . tem uma carga de estigma, discriminação muito grande . . . o fato de ser uma doença tão grave, fazia com que esse estigma e essa possibilidade de discriminação fosse amplificada” (P. 05). Estigma que é proveniente, na história dessa pandemia, da associação do HIV/aids ao desvio social e sexual.

Nota-se que o estigma associado à doença tem efeitos para a equipe que atua na assistência aos usuários. A ressignificação da imagem estigmatizada das pessoas com HIV/aids associada a grupos específicos da sociedade, o que remete à noção de grupo de risco, foi um processo que atravessou parte do percurso assistencial dos entrevistados:

Eu imaginava que eram usuários, que eram as mulheres sem parceiros fixos, que bebiam, eu associava o HIV aos hábitos de vida de farra, de rua e, eu tô vendo que . . . não é exclusivamente isso. Eu vejo senhoras idosas, mulheres, que algumas a gente não consegue entender como adquiriu esse vírus, a gente fica assim chocada, a gente fala assim: meu deus, eu com certeza já corri mais riscos do que ela e ela pegou . . . a gente reflete nossos comportamentos e de amigos, porque a gente acha que só um grupo é vulnerável, mas não é, somos todos vulneráveis (P. 03).

Nesse percurso, o estigma emerge na cena de cuidado atravessando a relação que o profissional de saúde estabelecia com a pessoa que vive com HIV/aids, expressando o julgamento e medo, sobretudo, de ser contaminado: “. . . É um paciente comum como qualquer outro e eu vou prestar os cuidados como qualquer outro lugar. . . . Mas o costume de usar duas luvas, eu deixei depois de um tempo, eu tinha muito medo . . .” (P. 02).

Por outro lado, observa-se que, com o tempo de experiência na assistência, houve uma ampliação da compreensão dos condicionantes para a não adesão, que dependem de aspectos individuais, mas também de condições coletivas, contextuais, de situações que produzem maior vulnerabilidade à infecção e ao adoecimento, favorecendo reposicionamento na relação de cuidado que possa mitigar as moralidades sociais vigentes associadas ao HIV/aids. Reflete-se, no campo assistencial, um deslizamento da noção de grupos de riscos para a inclusão da noção de vulnerabilidade (Ayres et al., 2006).

No registro do prognóstico, uma particularidade que marca o itinerário terapêutico da pessoa com dificuldade de adesão é a reinternação hospitalar, quando os parâmetros clínicos se descompensam, não raro pela descontinuidade da TARV. A partir dessa experiência clínica, as pessoas são fixadas na posição de “não aderente”, e o olhar da equipe de saúde é um olhar que, a partir desse dado objetificado, antecipa-se e conclui quanto ao percurso e ao desfecho clínico: “Quando ele se reinterna, porque foi irregularidade do tratamento, a gente já pensa logo vai ser um ciclo vicioso, porque normalmente o fim deles é UTI e óbito” (P. 02).

Somado a isso, a pessoa com histórico de descontinuidade no tratamento apareceu em algumas falas nomeada como o “paciente” que “dá trabalho”; em outras palavras, é uma pessoa que gera demandas delicadas e que requer o manejo de complicações clínicas e psicossociais, as quais, muitas vezes, envolvem uma complexidade de recursos técnicos e subjetivos dos profissionais de saúde: “O paciente que adere ao tratamento toma remédio direitinho, vem pra consulta, não dá trabalho, é bem tranquilo. Os pacientes que não aderem a gente tem que ficar toda hora insistindo na adesão, dá mais trabalho. . .” (P. 06).

Nas situações de não observância das prescrições médicas, o paciente não é conforme ao que deveria ser (Szpirko, 2000). A não adesão pode ser encarada como uma afronta perante um suposto contrato universal, explícito ou implícito, de que, diante da doença, existe alguém interessado em oferecer o tratamento e alguém que deseja se beneficiar da terapêutica; uma consonância entre doença e saúde, entre morte e vida, na qual se pressupõe que a segunda opção será escolhida pelo paciente. Por essa razão, os considerados “não aderentes” podem representar furos nos esquemas de funcionamento das equipes (Ferreira, 2017). A não adesão traz algo da ordem do sem sentido para os profissionais de saúde, sendo representada por uma teia de imagens reduzidas à doença e à morte, que se opõem à dupla saúde e vida. Essas construções dicotômicas, que se materializam na construção de classificações que dividem as pessoas em “aderentes” e “não aderentes”, contribuem para o não reconhecimento do caráter dinâmico do fenômeno.

Eu também queria entender o que se passa na cabeça deles, porque você tem as medicações de graça ou você passou por uma situação de risco, onde você recebeu a segunda chance de viver, teve uma doença, foi pra UTI, teve que fazer alguma cirurgia, ficou à beira da morte, tomando banho de leito e você conseguiu sair dali caminhando bem, com vida e chegar lá na frente e fazer tratamento irregular e reinterna . . . (P. 02).

A compreensão sobre como as pessoas e os grupos sociais realizam escolhas e aderem ou não aos tratamentos, ou seja, como constroem seus itinerários terapêuticos, é fundamental para orientar as novas práticas em saúde (Cabral et al., 2011). Conforme Ferreira e Favoreto (2011), a relação que o sujeito estabelece com o tratamento é dinâmica, os sentidos se transformam ao longo do tempo, variando conforme as circunstâncias afetivas, sociais e econômicas e com os efeitos gerados pelo tratamento. Respeitar a variabilidade e a singularidade, incluindo as descontinuidades como constituintes do itinerário terapêutico, permite o deslizamento da ideia do “ser” para o “estar”. Nessa perspectiva, a pessoa não é aderente, ela está aderente, condição que pode favorecer a abertura da equipe para a construção do vínculo.

Alguns profissionais trouxeram em seus discursos o reconhecimento da existência de uma dimensão de sofrimento relacionado ao processo de conviver com uma doença incurável e com as exigências em torno do tratamento do HIV/aids, que envolvem rupturas e mudanças significativas na vida das pessoas, de modo que foi praticamente consensual entre os participantes a interpretação da (não) adesão como um movimento de “desistência”, que reflete o cansaço de uma vida reduzida à doença e ao tratamento.

Paciente que veio a óbito, ficou com a gente anos tratando. Tratava certinho . . . a doença progredindo . . . de tanto ele vir e voltar, acho que ele desistiu, cansou, ele parou de lutar, porque ele viu que tava se esforçando muito, deixando de viver plenamente lá fora e aqui no hospital pra se cuidar e, mesmo assim, a doença não tava dando chance a ele (P. 03).

A leitura de que o sujeito desistiu do seu próprio tratamento não é sem efeitos para a equipe, que, ao essencializar a posição de “não aderente”, supõe que esse destino está dado e “desiste”, antecipa-se quanto à evolução clínica, não incluindo a possibilidade de mudanças por meio da relação de cuidado. Nesse sentido, a pessoa com dificuldade de adesão tem a possibilidade de prognóstico favorável desacreditada pela equipe que a assiste:

Esse vai dar trabalho, porque já sabe que vai ser vai e volta, vai e volta e essas pessoas quando acabam piorando o quadro clínico vão pra UTI e a gente já perde a esperança por ali mesmo . . . porque as pessoas que não são aderentes ao tratamento, elas não lutam muito pela vida, elas estão vivendo por viver, mas se for pra dizer faça esse esforço pra você viver, não é capaz de fazer além do necessário (P. 02).

Para o investimento no vínculo, é imprescindível reconhecer a singularidade e os movimentos no modo como cada pessoa lida com o adoecimento e o tratamento. Dunker (2016) indica que o adoecimento se trata, antes de tudo, de uma experiência de saber, um saber constituído pela experiência corporal e pelos seus signos de mal-estar, que constituem esse saber como indeterminado diante de uma verdade por vir. Nessa perspectiva, a dinâmica de autocuidado que reconhece o sofrimento deve incluir o que o sujeito tem a dizer sobre a sua experiência de adoecimento. Isso exige do profissional tanto a disponibilidade para escutar quanto o exercício de colocar em suspensão suas suposições.

O risco da interpretação da (não) adesão como um enunciado unívoco que revela a desistência do sujeito em seguir o tratamento é de individualização e descontextualização do fenômeno em pauta. A partir de uma compreensão psicológica de autonomia centrada na ideia de pessoa racional, individualista e autodeterminada, a adesão corre o risco de ser resumida a uma questão de escolha de caráter dicotômico entre querer viver e querer morrer.

É inegável a importância do esquema terapêutico medicamentoso para o controle do HIV, mas devemos refletir até que ponto reduzir o sujeito a sua doença pode contribuir para a dessubjetivação e para o seu o apagamento, ofuscando suas possibilidades de engajamento responsável no seu autocuidado. Guzman e Iriart (2009) observaram em seu trabalho a centralidade da clínica do olhar, revelando a função que os exames assumem na relação terapeuta e pessoas com HIV/aids. Desse modo, quando o resultado dos exames apresentava sinais de falha viral, a direção da consulta era apontar uma atitude desviante, como a não adesão ao tratamento, não tendo espaço para acolher a dimensão subjetiva.

A adesão é afirmada como uma vivência solipsista, que, além de fomentar conteúdos de culpabilização, não reconhece os múltiplos sentidos da (não) adesão: 1. um ato que pode fazer apelo ao outro, um pedido implícito de ajuda, passível de ser transformado em uma demanda de cuidado; 2. um não saber o que fazer diante de um diagnóstico que traz uma ameaça de perdas e sentimento de medo; 3. uma condição que escancara a precariedade das condições de vida. A não adesão inspira cuidados, requer uma decifração, o que implica a existência de uma equipe de saúde disposta a apostar na construção de projetos terapêuticos singulares, como previsto na Política Nacional de Humanização (Ministério da Saúde, 2004).

Manejos Clínicos e Ressonâncias da Não Adesão ao Tratamento

Esta categoria reflete os manejos clínicos e afetos mobilizados pelos profissionais de saúde diante dos casos que anunciam a dificuldade de adesão ao tratamento, revelam desafios, embaraços e possibilidades de intervenções neste encontro entre profissional de saúde e pessoa com HIV/aids. Observa-se o compromisso do profissional de saúde com o controle da doença e estabilidade clínica. Ele nutre a expectativa de que essa experiência de adoecimento e hospitalização gere as condições para que o sujeito possa se reposicionar em relação ao seu diagnóstico e tratamento, assumindo maior envolvimento com a adesão. O profissional de saúde tem um compromisso ético e técnico com a vida e a promoção do bem-estar. Por essa razão, o manejo clínico da (não) adesão ao tratamento do HIV/aids torna-se uma questão delicada, implica cuidados individuais e está associada à potencial transmissão da infecção pelo HIV/aids de forma coletiva (Carvalho et al., 2019).

Os participantes enfatizaram as intervenções de cunho prescritivo, trazendo à tona o dualismo saúde e doença, vida e morte. A pessoa com HIV é confrontada com a realidade ­provocada pela enfermidade como se existissem dois destinos possíveis – viver ou morrer: “A gente coloca duas opções pra ele: ou você começa de novo a tratar pra ficar bem ou você vai morrer . . . você precisa ser taxativo com eles, pra poder eles caírem na real” (P. 04). Szpirko (2000) adverte que, perante um sujeito que não adere ao tratamento, o profissional busca convencer sobre a importância desse. O autor critica esta abordagem que pressupõe a não observância das prescrições do profissional de saúde como algo passível de ser enfrentado com uma enxurrada de argumentos, os quais desprezam a dimensão inconsciente, que pode se expressar por um “nada querer saber sobre isso” mesmo diante dos riscos de agravamento do adoecimento. É justamente a elaboração desse saber rechaçado que reside a aposta de implicação do sujeito na produção de novas respostas possíveis ao tratamento.

Como contraponto, uma profissional ressaltou a importância de singularizar o caso, demarcando que, entre comunicar o diagnóstico e ofertar o tratamento, existe uma pessoa que é afetada por esta comunicação:

É ter paciência e empatia. . . . A gente não pode tratar cada caso como se fosse todos, cada pessoa que chega é diferente e a gente tem que entender a dor de todos eles, tem que resguardar o tempo deles, o luto deles (P. 02).

O que essa posição aponta é o reconhecimento de dimensões diferentes do tempo – o da doença e o do sujeito –, que não operam de modo sincronizado. Reconhecer essa diferença cria as condições para a construção de intervenções adequadas ao momento de cada sujeito.

Alguns participantes anunciaram uma posição mais ativa como um mediador para a adesão ao tratamento, caracterizada pela intensificação do cuidado, por meio da construção de uma relação de confiança:

Quando tem o paciente que não tá aderindo ao tratamento, aí é que eu aumento meu cuidado. . . tem que marcar semanal . . . pra o paciente entender algumas coisas . . . questões sociais, ela ver que as pessoas se interessam por ela (P. 07).

O manejo clínico da não adesão pela via da dimensão relacional inaugura um espaço de cuidado que permite ao profissional de saúde afastar-se da posição de que “tudo sabe”, que conclui a partir do olhar dirigido aos marcadores biológicos, para estar mais permeável ao “não saber” e ao contexto de vida do outro e, a partir desse reposicionamento, manejar as dificuldades de autocuidado, de modo sensível ao que essa mudança de perspectiva pode trazer. Conforme Seixas et al. (2019), o conceito de vínculo no cuidado em saúde traz o compromisso de práticas de cuidado com as demandas e necessidades em saúde, sendo proposta uma torção da ideia de “adesão do usuário ao tratamento” para a perspectiva de “adesão da equipe ao projeto do outro”, reafirmando a importância do compartilhamento da produção do cuidado entre trabalhadores e usuário, de forma viva e singular.

Contudo, em oposição à intensificação do cuidado, os participantes falaram sobre uma possível posição de recuo que os profissionais de saúde poderiam assumir diante da pessoa com dificuldades de adesão ao tratamento:

. . . tenta descobrir a causa da não adesão . . . essa seria a postura mais adequada, mas tem outros colegas que acha que tá perdendo tempo, que o paciente não quer tomar remédio, deixa pra lá, e a coisa vai complicando (P. 05).

Ferreira (2017) identificou que, assim como a adesão pode ser vista dicotomicamente como “não aderente” x “aderente”, as intervenções podem atender a mesma lógica, como se os profissionais tivessem duas direções: não fazer nada x fazer tudo. Isto é, identificar a dificuldade e não se implicar, deixando a pessoa em risco, ou intervir com disciplina, buscando a “correção” do outro, colocando em risco a própria relação com o paciente.

. . . A gente não pode tá mandando de alta aquele paciente que não aceitou, não teve uma boa adesão ao tratamento de forma rápida. . . “Ah! não quer?! eu vou mandar embora”. É uma terapia, é um trabalho de formiga que você tem que fazer até você sentir pelo menos que ele vai aderir, não é desistir do paciente, tem que ser firme com eles, tem que trazer eles pra realidade. . . Não é desistir deles e dar uma alta por indisciplina (P. 04).

As narrativas compartilhadas pelos profissionais de saúde transmitem uma certa dualidade entre investir e desinvestir, mobilizada na assistência com os sujeitos considerados “não aderentes”. Esse impasse expressa, respectivamente, como deve ser o manejo no campo ideal e como o profissional de saúde pode responder a esse fenômeno pela via da desistência. Nesse caso, o que fica subentendido é que a (não) adesão compreendida como um não querer se cuidar pode desimplicar o profissional dos atos de cuidado.

Apostar que algo pode ser feito nos casos de não adesão e que o profissional de saúde é um agente facilitador do tratamento é a condição para movimentar a equipe de saúde. Para Figueiredo (2007), agente de cuidado implicado é aquele que se encontra comprometido e atuante, exerce sua função como presença que acolhe e reconhece o que há de singular naquele que é cuidado. Já a presença reservada requer dar tempo e espaço, estar disponível sem intromissões excessivas, o que é completamente diferente de uma posição que nada tem a fazer, que se ausenta.

Um participante revelou uma sensação de impotência derivada da constatação de que a fragilidade da rede de atenção à saúde, somada à escassez de recursos socioeconômicos, dificulta a adesão ao tratamento. Quando a vulnerabilidade psicossocial é o fator de maior impacto na não adesão ao tratamento, os profissionais de saúde supõem não terem recursos técnicos, sendo atravessados pelo sentimento de impotência. Tais experiências colocam os profissionais diante de uma necessidade de ampliação do seu objeto de trabalho na saúde. Todavia, observa-se que, afetados em sua motivação em assistir o paciente, resta, muitas vezes, uma visualização antecipada de um desfecho desfavorável, na qual a morte é anunciada:

. . . O difícil é você encontrar o paciente que você sabe que vai morrer porque não tá usando o remédio, tá piorando e . . . você não tem recursos adequados para tratar isso. Esse é o paciente que necessitaria da atenção psicológica, apoio social, e psiquiátrico e, às vezes é um paciente que mora no interior, vive no fundão e você não tem menor condições de oferecer isso e é lamentável porque você sabe que vai morrer. É questão de tempo, você não consegue modificar isso porque tem muitas variáveis envolvidas. . . (P. 05).

Nota-se que o deslocamento do olhar da doença para a pessoa e o seu contexto permite o deslizamento da “necessidade do tratamento” para as “necessidades de saúde”. Sá e Azevedo (2010) pontuam sobre o risco de o profissional cair na estagnação ao identificar que as dificuldades para a não adesão estão relacionadas aos aspectos psicossociais, sendo tomado por representações ligadas à impotência, ao “nada a fazer”, à impossibilidade de mudança diante dos problemas percebidos. Desse modo, é preciso cuidar para que as condições precárias não afetem o profissional ao ponto de desmotivá-lo a ofertar uma assistência integral à saúde. Na posição de impotência, o profissional perde a capacidade de desenvolver um trabalho engajado com a produção de saúde, que só é possível com o envolvimento e a articulação dos diversos atores e dispositivos que compõem a rede setorial e intersetorial, dada a complexidade dos aspectos subjetivos e determinantes sociais em saúde.

O manejo clínico dos casos de (não) adesão tem efeitos para a equipe que, com frequência, é tomada por sentimentos de tristeza, decepção e impotência pela percepção de que todo o cuidado foi um investimento sem retorno. O não controle da doença atualiza, em certa medida, a vivência de uma perda de controle sobre a pessoa com HIV/aids, gerando uma frustração para o profissional. Quando ele percebe que o investimento técnico, subjetivo e afetivo para a pessoa aderir foi insuficiente, foi “pro ralo”, não deu certo, as consequências da (não) adesão – manifestação da doença, reinternação, óbito – remetem ao fracasso terapêutico.

. . . A gente fica muito triste e decepcionado. Ter tentado resgatar a vida daquele paciente, pro convívio social, pra uma vida normal, e por um tempo a gente consegue, e depois você vê que foi tudo pro ralo, não sendo positivo como a gente imaginou. . . Infelizmente o resultado é ver o paciente indo embora, perder o paciente . . . (P. 04).

Para Ayres (2001), a tradução da não adesão como uma versão do fracasso, quando não mantém a equipe imobilizada, pode, na melhor das hipóteses, tentar velhas estratégias mobilizadoras focadas no curar, tratar e controlar, e, na pior, responder com desistência, quando a equipe deixa de lidar de forma positiva com a alteridade.

Os profissionais de saúde, de modo geral, enfatizaram os aspectos psicossociais como o campo das intervenções a ser priorizado na assistência, referindo encaminhamentos para as especialidades do serviço social, psicologia e psiquiatria, quando necessário. A dimensão da escuta, em alguma medida, ganha lugar, entende-se que a atenção aos aspectos subjetivos e sociais pode contribuir no modo como o sujeito lida com o adoecimento e o tratamento.

Observa-se que a estratégia de encaminhamento aos profissionais da área psicossocial emerge como um pedido de suporte, quando o profissional se esbarra em um limite da atenção biomédica, revelando uma cisão do biológico e do psicossocial e a lógica de uma atenção à saúde fragmentada, distanciando o profissional da perspectiva de um trabalho compartilhado. De acordo com Ferreira (2017), os encaminhamentos como resposta à não adesão, em geral, expressam a expectativa de uma resolução do “problema”, como se a condição do manejo estivesse concentrada em um campo de saber específico.

É imprescindível a articulação dos conhecimentos técnicos aos aspectos relacionais da intervenção. Para a compreensão do sentido prático da ação, Ayres (2009) propõe uma discussão do cuidado em saúde que articule êxito técnico e sucesso prático: este corresponde ao valor associado ao adoecimento e ao sentido que as intervenções têm na vida dos indivíduos e populações em função das condições materiais, simbólicas e relacionais; já aquele tem a ver com o enfoque propriamente instrumental da ação, as relações entre meios e fins para o controle do risco ou dos agravos à saúde.

Dilemas Bioéticos nos Casos de Não Adesão ao Tratamento

Os dilemas bioéticos suscitados em torno do manejo clínico das pessoas com dificuldades de adesão ao tratamento do HIV/aids trouxeram à tona questionamentos acerca da posição do profissional de saúde sobre respeitar a autonomia do sujeito em decidir por aderir ou não ao tratamento ou seguir mobilizando intervenções, buscando envolvê-lo com a terapêutica. Segundo uma profissional (P. 06), trata-se de uma decisão delicada, pelas consequências implicadas no ato de respeitar essa tal decisão de não aderir ao tratamento:

. . . a gente sempre quer o melhor pro paciente, quer que ele tome a medicação e, às vezes, até você se pergunta: será que não é melhor respeitar a autonomia do paciente? Ele não quer tomar, então, ele que siga a vida dele do jeito que ele achar melhor. Porque é um trabalho, isso é um desgaste . . . estar sempre motivando, de estar sempre insistindo . . .

Se a participante P. 06 revela impasses diante dessa situação e questionamentos sobre os limites éticos de suas intervenções, a participante P. 07 traz como “saída” para lidar com a não adesão o respeito pela “decisão” do sujeito por não aderir, entendendo como uma “escolha”, sendo impelida a intervir quando identifica riscos de transmissão sexual do HIV:

. . . Aprendizado de respeito pela decisão do outro, ele trata se ele quiser; agora, se ele envolve a vida de outros, é preciso mostrar, porque eu trabalho com a saúde pública, . . . sempre tem que ver o que beneficia mais o outro, e respeitar a vontade do outro . . . (P. 07).

A preocupação dos participantes acerca da adesão ao tratamento dos usuários vincula-se ao controle da transmissão do vírus. Para os entrevistados, a (não) adesão revela uma dificuldade de autocuidado do usuário e de adoção de uma posição cuidadosa do contágio a terceiros: . . . ele não tem amor próprio de querer se cuidar, por que ele vai se preocupar de ter . . . aquela parceira sendo cuidada, de evitar passar a doença? (P. 04).

Diante disso, surge um dilema bioético ao profissional de saúde: respeitar a privacidade do sujeito ou romper a confidencialidade do diagnóstico visando à saúde de outrem. Como resposta a esse dilema, recorre-se à estratégia do convencimento para que a pessoa comunique sua soropositividade. Salienta-se que, nos casos de casais sorodiscordantes, tais situações acabam por mobilizar moralidades, que vinculam a pessoa soropositiva considerada “não aderente” a uma condição transgressora e “criminosa” que poderia ser passível de penalidades legais. Deste modo, a revelação do diagnóstico não só é sustentada pelo discurso da saúde coletiva, mas também defendida pela via judicial, se necessário.

O dilema ético que a gente tem mais frequente é o paciente HIV positivo sem tratamento que transa sem camisinha, isso é uma questão muito séria, isso é quase um crime. Devia ser visto como um crime de fato, você saber que é HIV positivo, não tomar o tratamento e passar o HIV pra outra pessoa durante a relação sexual sem preservativo. Isso pra mim é igual a um bandido, bandido que faz isso. É o pior cenário que a gente vê (P. 06).

Cabe destacar a importância das tecnologias de cuidado voltadas para fomentar práticas de prevenção e adesão ao tratamento como contraponto à criminalização da transmissão do HIV, que só contribui para a estigmatização e o apagamento do sujeito. Mobilizando resistência, não resta espaço para questionar o que está em jogo quando o diagnóstico não é revelado para o parceiro e fazer disso, do que não se sabe, material clínico para a produção do cuidado, intervindo de forma sensível nas reais dificuldades.

Merece acento a discussão sobre o conceito de autonomia e suas ressonâncias nas práticas de saúde. Conforme Camargo-Borges, Mishima e Mcnamee (2008), a autonomia segundo o principialismo é a capacidade de autogoverno, raciocínio e escolha do indivíduo sobre sua vida. Para esses autores, os serviços de saúde, buscando atender este princípio, centralizam as intervenções na transmissão da informação dos cuidados à saúde, de modo que as divergências a tais orientações são atribuídas a um entendimento errôneo ou descomprometimento do usuário, uma vez que o saber validado está do lado da ciência. Tal modelo interventivo faz ressoar uma perspectiva individualista que culpabiliza o usuário pelo fracasso da intervenção. A culpabilização tem como efeito potencial a desimplicação.

A concepção de autonomia deve ultrapassar a ideia de que as pessoas tomam decisões sozinhas mediante vontades e interesses próprios, sendo proposto o conceito de autonomia relacional, no qual o sujeito é entrelaçado por uma rede de relações sociais, políticas, culturais e econômicas. Nesse caminho, Campos e Campos (2006) sugerem pensar a autonomia não como oposto de dependência ou como liberdade absoluta, mas como a capacidade de o sujeito agir e se posicionar diante da sua rede de dependência; portanto, o sujeito é corresponsável.

Considerações Finais

São muitos os desafios que atravessam o cuidado da equipe às pessoas que vivem com HIV/aids, exigindo um saber-fazer implicado com a integralidade do cuidado, que ultrapasse a ótica biologicista, racional e individualista que ainda permeia as práticas de cuidado. Cuidar do usuário considerado não aderente convoca uma posição ativa e decidida do profissional de saúde no processo de construção de vínculo terapêutico, que envolve o reconhecimento de impasses subjetivos, demandas e recursos.

É importante fomentar espaços de educação permanente como estratégia de reorientação das práticas de saúde para uma atenção mais sensível à singularidade revelada em cada itinerário terapêutico. Ofertar uma escuta despida de suposições e de sentidos cristalizados pode ser o primeiro passo para ajudar a pessoa que vive com HIV/aids a decifrar seu sofrimento e as dificuldades que atravessam a (não) adesão, abrindo caminhos para corresponsabilidade e desenvolvimento de projetos terapêuticos singulares, que incluam a concepção de autonomia relacional. Ressalta-se a importância da construção de espaços multiprofissionais para discussões sobre o cuidado.

O presente estudo se restringiu aos profissionais de saúde que compõem a equipe de referência da unidade. Desse modo, um dos limites da pesquisa foi não ter acessado os profissionais interconsultores da equipe multiprofissional. Recomenda-se, então, a realização de pesquisas com esses trabalhadores, permitindo um maior aprofundamento e diversidade das experiências de cuidado no que tange à problemática da não adesão ao tratamento.

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Recebido em: 25/08/2021

Última revisão: 1º/04/2022

Aceite final: 21/06/2022

Sobre as autoras:

Fábia Maria Ribeiro Duarte: Especialista em Psicologia da Saúde pela Residência Integrada Multiprofissional em Saúde, Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES). Psicóloga clínica e psicóloga do Hospital Português da Bahia. E-mail: fabia.duarte@live.com, Orcid: https://orcid.org/

Cristiane de Oliveira Santos: Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Docente dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: cristianeoliveira@ufba.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4921-0183

Rosana dos Santos Silva: Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Referência técnica do Serviço de Psicologia do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES), da UFBA, e preceptora da Residência Integrada Multiprofissional do HUPES. E-mail: rosanassilva@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4830-6781


1 Endereço de contato: Rua José Estanislau de Santana, n. 274, Plataforma, Salvador, Bahia. CEP: 40718-190. E-mail: fabia.duarte@live.com

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v14i2.1781