Interprofissionalidade e Matriciamento na Atenção Básica: Percepções dos Profissionais

Interprofessionality and Matrix Support in Primary Care: Professionals´s Conceptions
Interprofesionalidad y Apoyo Matricial en Atención Primaria: Concepciones de los Profesionales

Meyrielle Belotti

Alexandra Iglesias

Grace Kelly Grace Kelly Filgueiras Freitas

Bárbara Lima Gravino Passos

Guilherme Augusto Loiola Passos

Carolina Dutra Degli Esposti

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

Resumo

Objetivou-se analisar as concepções de profissionais de saúde da Atenção Básica sobre a interprofissionalidade e o matriciamento, bem como os desafios e as potencialidades de sua execução. Realizou-se um estudo com abordagem qualitativa, com 17 profissionais de saúde. Para a coleta de dados, foram criados dois Grupos Focais em ambiente virtual, cujos dados foram analisados segundo a análise de conteúdo. Os resultados indicam que a interprofissionalidade e o matriciamento são práticas com objetivos comuns e orientadas pelo desenvolvimento do trabalho colaborativo e exercício da interdisciplinaridade. A complementaridade dos saberes das diferentes categorias destacou-se como potencialidade, enquanto a sobrecarga de trabalho e o esgotamento das equipes foram pontuados como desafios à realização dessas práticas. Ressalta-se a importância da interprofissionalidade e do matriciamento como ferramentas dialógicas capazes de superar as hierarquias de poder existentes no campo da saúde e a dicotomia entre o aprender e o ensinar.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde, atenção básica, interprofissionalidade, matriciamento

Abstract

The objective was to analyze the conceptions of health professionals in Primary Care about interprofessionalism and matrix support, as well as the challenges and potential of its implementation. A study with a qualitative approach was carried out, with 17 health professionals. For data collection, two Focus Groups were carried out in a virtual environment, and the data were analyzed according to content analysis. The results indicate that interprofessionalism and matrix support are practices with common goals and are guided by the development of collaborative work and the exercise of interdisciplinarity. The complementarity of knowledge between the different categories was highlighted as potential, while the work overload and exhaustion of the teams were pointed out as challenges for carrying out these practices. The importance of interprofessionality and matrix support is highlighted as dialogic tools capable of overcoming power hierarchies in the health field and the dichotomy between learning and teaching.

Keywords: Unified Health System, primary care, intreprofessionality, matrix support

Resumen

El objetivo fue analizar las concepciones de los profesionales de la salud en Atención Primaria sobre la interprofesionalidad y el soporte matricial, así como los desafíos y potencialidades de su implementación. Se realizó un estudio con abordaje cualitativo, con 17 profesionales de la salud. Para la recolección de datos, se realizaron dos grupos focales en un ambiente virtual, cuyos datos fueron analizados según análisis de contenido. Los resultados indican que la interprofesionalidad y el soporte matricial son prácticas con objetivos comunes y guiadas por el desarrollo del trabajo colaborativo y la interdisciplinariedad. Se resaltó como potencial la complementariedad de conocimientos entre las distintas categorías, mientras que la sobrecarga de trabajo y el agotamiento de los equipos se señalaron como desafíos para la realización de estas prácticas. Se destaca la importancia de la interprofesionalidad y el soporte matricial como herramientas dialógicas capaces de superar las jerarquías de poder existentes en el ámbito de la salud y la dicotomía entre aprendizaje y enseñanza.

Palabras clave: Sistema Único de Salud, atención primaria, interprofesionalidad, apoyo matricial

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) traz em seus princípios e diretrizes a imprescindibilidade de interação entre os seus diferentes atores sociais e os diversos serviços existentes no território para a consolidação de uma saúde pública de qualidade, considerando a determinação social do processo saúde-doença-cuidado. Contudo, no campo das práticas em saúde, tal integração ainda se apresenta como um desafio, tendo em vista os inúmeros atravessamentos que perpassam a sua concretização. Entre esses desafios, cabe destacar o modelo formativo hegemônico uniprofissional, as relações intersubjetivas, ainda marcadas pelas hierarquias e relações de poder entre as categorias profissionais, e os fatores organizacionais e estruturais relacionados ao modelo de atenção e à gestão do sistema de saúde (Lima et al., 2018).

Com o propósito de fomentar essa integração entre os profissionais de saúde requerida pelo SUS, algumas estratégias foram sendo propagadas ao longo do processo de desenvolvimento do sistema de saúde, tais como o matriciamento e a interprofissionalidade. O matriciamento caracteriza-se como um novo modo de produzir o cuidado em saúde, no qual duas ou mais equipes, num processo dialógico, compartilham experiências, saberes e poderes para a tomada de decisões de modo integrado (Iglesias & Avellar, 2019). Assim, sua proposta utiliza-se dos conceitos de trabalho colaborativo e em rede, da cogestão, do referencial da interdisciplinaridade e da clínica ampliada, objetivando-se a construção de corresponsabilidade no cuidado em saúde entre as equipes envolvidas (Cunha & Campos, 2011).

Por sua vez, a interprofissionalidade é compreendida como uma forma de trabalho coletivo que se configura na relação recíproca entre as intervenções técnicas e as interações dos múltiplos agentes envolvidos. O desenvolvimento de sua prática solicita a articulação entre as diferentes categorias profissionais, a partir do reconhecimento de sua interdependência e da complementaridade das ações, almejando a produção da atenção centrada no usuário (Peduzzi, Agreli et al., 2020).

Ressalta-se que a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) têm assumido o compromisso de propor ações formuladoras de políticas capazes de incorporar a interprofissionalidade como uma abordagem inovadora para a transformação dos sistemas de saúde (OMS, 2010). No contexto brasileiro, entre os mecanismos para introduzir essa prática, destaca-se o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), que, em sua edição de 2019/2021, abordou a temática da interprofissionalidade e foi intitulado de PET-Saúde/Interprofissionalidade (PET-Saúde/EIP).

O PET-Saúde é uma iniciativa de aproximação entre os ministérios da Saúde e da Educação, com potencial para gerar mudanças no processo de formação em saúde, para o trabalho no SUS, a partir da integração ensino-serviço-comunidade. Sua operacionalização ocorre por meio da inserção, nos cenários de práticas, de estudantes de graduação da área da saúde, acompanhados por tutores docentes das Instituições de Ensino Superior (IES) e preceptores (profissionais dos serviços) (Fonsêca & Junqueira, 2017).

Este estudo faz parte de uma pesquisa vinculada a um projeto PET-Saúde/EIP que buscou analisar as concepções dos profissionais de saúde da Atenção Básica (AB) sobre a interprofissionalidade e o matriciamento, bem como os desafios e as potencialidades de sua execução. Cabe destacar que o referido projeto elencou a prática do matriciamento como eixo orientador para o fortalecimento da interprofissionalidade na AB, partindo da compreensão de que essa metodologia pode fomentar o trabalho compartilhado e interdisciplinar e reforçar a produção de tecnologias para a gestão do cuidado no território, ancorado no campo de conhecimento e prática da saúde coletiva.

todo

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa realizada em um município da região sudeste do Brasil que, em uma parceria entre a Secretaria Municipal de Saúde (SEMUS) e uma IES, participou da edição do PET-Saúde/EIP de 2019/2021. O projeto PET-Saúde/EIP, aprovado e realizado neste município, contemplou a participação de nove cursos de graduação da área da saúde: Enfermagem; Farmácia; Fisioterapia; Fonoaudiologia; Medicina; Nutrição; Odontologia; Psicologia; e Terapia Ocupacional. Os docentes e os estudantes desses cursos foram inseridos em cinco Unidades Básicas de Saúde (UBS).

No total, o município possui 29 UBS distribuídas em seis regiões de saúde. As cinco UBS que participaram do PET-EIP eram compostas por equipes da Saúde da Família (eSF) constituídas por médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde (ACS), auxiliares de enfermagem, odontólogos, técnico em saúde bucal e auxiliares em saúde bucal. Além disso, quatro dessas UBS possuíam equipes de Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB), que incluíam as seguintes categorias profissionais: assistente social; farmacêutico; fonoaudiólogo; profissional de educação física; e psicólogo.

Além da UBS, a rede de serviços de saúde do município é composta por um Centro de Referência de Atendimento ao Idoso, um centro de tratamento de infecções sexualmente transmissíveis, quatro Centros de Atenção Psicossocial (CAPS II, CAPS III, CAPS infanto-juvenil e CAPS álcool e drogas), um Serviço de Atendimento às pessoas em situação de violência, dois Prontos Atendimentos e um Centro Municipal de Especialidades.

O PET-Saúde/EIP desse município foi composto por 16 docentes, 25 profissionais de saúde da AB lotados nas UBS onde foi realizado o projeto (assistente social, enfermeiro, farmacêutico, odontólogo e psicológico) e 42 estudantes de graduação em saúde, distribuídos em cinco grupos tutoriais. Alguns desses participantes atuaram como bolsistas e outros na condição de voluntários. Todas as UBS que participaram do projeto foram representadas, sendo priorizada a composição de, pelo menos, um profissional de saúde que exerceu a função de preceptoria e outro que não estava inserido no PET-Saúdse/EIP. No total, participaram 17 profissionais de saúde, sendo 11 com formação universitária (uma assistente social, uma psicóloga, cinco enfermeiras, duas odontólogas e duas farmacêuticas) e seis com formação técnica (quatro ACS e dois auxiliares de enfermagem).

Em razão do cenário de pandemia de Covid-19, para a coleta de dados, foram realizados dois Grupos Focais (GF) em ambiente virtual, em dezembro de 2020, por meio da plataforma Google Meet. A escolha pelo GF deveu-se ao fato dessa técnica de coleta possibilitar a identificação das diferentes concepções das pessoas em relação a um tema, sendo caracterizada como uma fonte que intensifica o acesso às informações acerca de determinado fenômeno, seja pela possibilidade de gerar novas concepções ou pela problematização de uma ideia em profundidade (Backes et al., 2011).

Os GFs foram conduzidos por um trio de pesquisadores, sendo um moderador e dois observadores. O moderador tinha a função de esclarecer a dinâmica de funcionamento dos GFs, apresentar os aspectos éticos vinculados à pesquisa, facilitar a discussão e estimular o debate. Já os observadores tinham o papel de registrar a dinâmica grupal, auxiliar na ­condução das discussões, colaborar com o moderador no controle do tempo e monitorar a gravação. Além dos pesquisadores, cada GF tinha a presença de dois estudantes, participantes do PET-Saúde/EIP, que assumiram a função de suporte no manejo da tecnologia virtual.

Cada GF teve duração aproximada de duas horas. Os dois GFs aconteceram de modo similar, iniciando-se com a apresentação, em slides, de figuras selecionadas aleatoriamente, a partir das quais os participantes deveriam escolher aquelas que consideravam melhor representar a interprofissionalidade e o matriciamento. Na sequência, cada participante apresentou ao grupo as duas imagens escolhidas (uma relacionada à interprofissionalidade e outra ao matriciamento) e comentou sobre a associação feita entre a imagem selecionada e as temáticas em questão. Essa estratégia foi utilizada como um disparador para a discussão seguinte, orientada por um roteiro com os tópicos: concepção sobre interprofissionalidade e matriciamento; organização e operacionalização da interprofissionalidade e do matriciamento; e potencialidades e desafios para efetivação dessas práticas.

Os GFs foram gravados em áudio e transcritos, posteriormente. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (parecer nº 3.810.065) e obteve anuência da SEMUS. Todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em atendimento à Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Para a análise de dados, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, conforme proposta por Bardin (2011), que contou com as seguintes etapas: (1) pré-análise; (2) exploração de material; e (3) tratamento dos resultados. A fase da pré-análise dos dados se constituiu na leitura flutuante da transcrição dos grupos focais, sendo recortados trechos das falas que contemplam o objetivo do estudo. Em seguida, foi realizada a exploração do material, com a categorização dos trechos selecionados, que foram agrupados e classificados por semelhança, com base nos disparadores contemplados no roteiro do grupo focal. A última etapa consistiu no tratamento dos resultados, com análise reflexiva dos dados, visando expressar os sentidos e os significados conferidos às mensagens analisadas. Para a apresentação de cada categoria, são explicitados extratos das falas dos participantes, as quais serão identificadas por meio da letra P seguida de um número, representando os entrevistados (P1, P2, P3 etc.).

Resultados

Após a análise dos dados brutos, foram identificados quatro temas: concepções sobre a interprofissionalidade e o matriciamento; potencialidades da interprofissionalidade e do matriciamento; desafios para realização do matriciamento e da interprofissionalidade; e propostas para consolidação da interprofissionalidade e do matriciamento.

Concepções sobre a Interprofissionalidade e o Matriciamento

Essa categoria refere-se aos entendimentos apresentados pelos profissionais sobre a interprofissionalidade e o matriciamento a partir das imagens disponibilizadas no início do grupo focal. Dessa forma, por meio de metáforas, os participantes apresentaram suas concepções sobre as temáticas em questão.

A metáfora mais frequente associada à interprofissionalidade foi a imagem de uma mesa com várias pessoas sentadas ao seu redor. Os participantes relacionaram a “mesa” à possibilidade de encontro, de realização de discussão de caso, de troca de conhecimento e de construção coletiva para a resolução de casos. Nas palavras de um dos participantes “é onde a gente tenta se doar, se dar” (P7).

Outro profissional associou a interprofissionalidade à figura das “mãos entrelaçadas” e relatou que a figura passou a ideia de “opiniões entrelaçadas que vão se completar em prol do objetivo” (P1). A figura do “jogo de basquete” também foi apresentada de forma associada a uma equipe interprofissional, que possui um objetivo comum, com funções desenvolvidas de forma complementar, conforme ilustrado na fala abaixo:

Cada um tem a sua função, e essas funções vão se complementando para atingir o objetivo final. Porque se eu tenho um time que só ataca, a defesa vai ficar vulnerável, né? Então, o trabalho interprofissional é assim, diferentes funções que vão se complementando para poder atingir o objetivo comum que seja o melhor para a assistência ao usuário (P12).

Compareceu, ainda, a associação da interprofissionalidade com a figura de um girassol. O participante explicou que, como as sementes do girassol, a prática interprofissional está em processo de “disseminação”, de “multiplicação”, como “algo novo” que se apresenta no cotidiano do trabalho em equipe (P1).

No que refere ao matriciamento, a figura do “quebra-cabeça” foi utilizada por dois participantes, sendo associada ao “pensar junto”, à “promoção da discussão de caso para um cuidado mais integral” e à elaboração de “encaminhamentos corretos” (P3 e P10). Nas palavras de um dos participantes, o matriciamento “é uma espécie mesmo de montar um quebra-cabeça para visualizar melhor o que está acontecendo ali e encontrar estratégias para manejar” (P3).

Nessa mesma direção, compareceu a concepção do matriciamento como possibilidade de troca, de fomento da interdisciplinaridade por meio do “fazendo com, fazendo entre, junto e misturado” (P1). Contudo, nesse “estar junto” também foi pontuada a existência de um tensionamento que, em determinados momentos, produz um distanciamento, conforme ilustrado no depoimento abaixo:

[...] a escolha da figura, daquele todo mundo interligado, aquilo que tinha várias linhas amarrado nos dedos e que se puxavam um tencionava e era tensão para todo mundo um afrouxava... e acaba que a gente tem um pouco essa distância. [...] Então assim, a figura é o que eu considero o ideal, todo mundo junto, interligado, mas que ainda tem uma distância (P10).

A figura do “mar” também foi associada ao matriciamento. A questão do ir e do vir das ondas” (P1) foi utilizada para reportar a relação entre as equipes de referência e a equipe matriciadora. Segundo um dos participantes, essa relação possibilita “a oportunidade de estar passando o que você tem do paciente e de eles [equipe matriciadora] estarem trazendo para você o que tem de experiência acerca de determinadas situações que envolve o paciente” (P1).

Potencialidades da Interprofissionalidade e do Matriciamento

Essa categoria apresenta os significados conferidos pelos profissionais sobre as potencialidades da interprofissionalidade e do matriciamento. Especificamente sobre a interprofissionalidade, os participantes destacaram “o aprendizado proporcionado pelo trabalho coletivo”. Também compareceu a importância da complementaridade dos saberes entre as diferentes categorias profissionais para a realização do cuidado. Nas palavras de um dos participantes:

[...] um profissional só não dá conta, porque as questões estão sendo cada vez mais complexas, e aí como que dá solução? É junto, quando a gente pensa junto, sai uma solução muito melhor do que aquela que vem individualizada, uma só pensou, decidiu (P3).

Para outro participante, a interprofissionalidade pode ser uma estratégia importante para o desenvolvimento da clínica ampliada. Nessa proposta, os “diferentes olhares”, proporcionados pela composição de uma equipe interprofissional são importantes para a construção de uma clínica com ênfase no usuário.

[...] não adianta, assim, por exemplo, eu só ver a parte de hipertensão, mas não saber onde aquela pessoa mora, como é o seu relacionamento naquela família, qual o contexto social que ela está inserida. Então tem que ser uma visão mais ampliada e diferentes profissionais, cada um com sua habilidade, vão se complementando [...] (P12).

Já em relação ao matriciamento, uma das potencialidades destacadas diz respeito “ao olhar externo do serviço”, que proporciona uma “visão diferenciada” e agrega “novas experiências”. Na fala de um dos participantes, o matriciador “traz consigo uma outra possibilidade, que, às vezes, quem está na correnteza não vai enxergar” (P12). Para outro participante, às vezes, a equipe de referência só “enxerga um ponto”, “[...] a pessoa que vem de fora traz outros olhares, e a gente consegue olhar de uma forma mais ampla” (P13).

Outro resultado encontrado discorre sobre a contribuição do matriciamento para o aprendizado do trabalho em saúde. Os participantes destacaram os encontros de matriciamento como um espaço “construtivo”, em que a prática do “apoio não é só para o paciente, mas um apoio para os profissionais de saúde também” (P17). Nesse contexto de espaço de aprendizado, o matriciamento em saúde mental foi apontado como “uma coisa nova”, possibilitando capacitar os profissionais que antes não se sentiam autorizados a realizar algum tipo de cuidado direcionado a pessoas com sofrimento mental, em função da ausência de conhecimento sobre a temática.

Desafios para Realização da Interprofissionalidade e do Matriciamento

Essa categoria refere-se aos desafios para a operacionalização da interprofissionalidade e do matriciamento no cotidiano da AB. Desafios relacionados à interprofissionalidade dizem respeito ao campo das relações entre os profissionais e ao esgotamento provocado tanto pelo trabalho em si quanto pelo exercício do trabalho coletivo, conforme ilustrado na fala abaixo de um participante:

[...] tem o cansaço, de ver profissionais muito esgotados, muito cansados. É do trabalho, mas, além disso, também, na relação mesmo. Às vezes, é uma resistência à mudança e uma dificuldade de expor um ponto de vista, ou de ser ouvido e de dialogar de uma forma mais pacífica mesmo, e aí, às vezes, isso toma uma proporção grande e que pode gerar um esgotamento dos profissionais. Às vezes, mais do que o quantitativo do trabalho, mas do desafio mesmo de trabalhar nesse coletivo, é isso (P3).

Já em relação aos desafios do matriciamento, os participantes pontuaram a dificuldade da equipe de referência em se apropriar da metodologia do matriciamento e da impotência de algumas categorias profissionais frente ao matriciamento em saúde mental, deixando essa demanda a cargo da Psicologia e do Serviço Social. Sobre esse último desafio, um participante elenca algumas possibilidades para justificar tal cenário: “Pode ser por comodismo nosso? Pode ser! Pode ser por que eles têm mais afinidade com o tema? Não sei. E assim, isso eu acho que a gente tem que corrigir, eu vejo uma falha” (P5).

Especificamente sobre o matriciamento em saúde mental, destaca-se como um desafio a pouca resolutividade dos casos discutidos, em função da ausência de uma rede de atenção estruturada. Na fala de um dos participantes: “o grupo [de matriciadores] é potente, o grupo tem bagagem teórica, tem conhecimento técnico, mas a gente acaba esbarrando na rede” (P5). Contudo, a “rede” destacada pelos participantes é atrelada à presença do profissional de Psiquiatria:

[...] a gente sente mesmo essa questão da Psiquiatria, porque a gente vê, a gente fica de mão atada. A gente sabe que precisa desse profissional para dar conta de algumas questões, daquele profissional específico que, às vezes, está faltando na rede. A gente sente isso: a falta desse profissional (P3).

Ainda sobre o matriciamento em saúde mental, um dos participantes relatou a dificuldade em estabelecer um fluxo para o encaminhamento. De acordo com o participante: “tem muito esse bate e volta, você encaminha um paciente que você acha que é um perfil para aquele matriciamento e não é. O paciente não é perfil para ser discutido. Não é perfil para ser encaminhado para o CAPS” (P9).

Propostas para Consolidação da Interprofissionalidade e do Matriciamento

Essa categoria destaca as propostas enunciadas pelos participantes para a consolidação do trabalho interprofissional e do matriciamento na AB. Entre os resultados, compareceu a prática de estudo nos serviços como uma possibilidade para o fortalecimento dessas ações, conforme ilustrado nas palavras de um dos participantes:

Uma ideia que veio também, talvez a gente estudar, não estudar aquela forma de você formar, de fazer cursos não, mas tipo, “vamos discutir hoje o caso de saúde da mulher sobre mioma”. Vamos supor, exemplo: naquele grupo ali eu tenho psicólogo para discutir aquele caso? Vamos estudar um pouquinho o que é mioma [...]. “Ah, vai estudar hoje o paciente que é dependente químico. Ah, eu não tenho apropriação?”. “Vamos fazer um material e vamos ler” (P5).

Por fim, os participantes destacaram a dificuldade de elencar propostas para a efetivação do trabalho interprofissional e da prática do matriciamento. É pontuada a necessidade de uma pessoa externa ao serviço, que “visse de fora” o trabalho, para ajudar na elucidação das propostas vinculadas às temáticas da interprofissionalidade e do matriciamento. Nas palavras do participante: “tem hora que você está tão enfiado dentro do problema que você não consegue enxergar, visualizar lá na frente uma saída para aquilo, entendeu?” (P7).

Discussão

Os resultados encontrados neste estudo demonstram que as concepções sobre a interprofissionalidade e o matriciamento apresentam-se de forma alinhada com as definições teóricas que orientam essas práticas. É possível observar que as compreensões convergem no sentido de potencializar o trabalho colaborativo, o cuidado integral e a troca de conhecimentos por meio do exercício da interdisciplinaridade para a resolutividade do trabalho em saúde. Ou seja, a realização do trabalho interprofissional e do matriciamento caminham de forma atrelada, lado a lado, em busca de objetivos comuns. Destaca-se que a complementaridade entre essas práticas é algo singular do contexto brasileiro, em decorrência do matriciamento ser um método de trabalho próprio do SUS, que assume explicitamente a aposta na construção de práticas de saúde de caráter democrático.

Especificamente sobre o matriciamento, comparece a ideia de que a sua realização possibilita o “encaminhamento correto”, ao mesmo tempo em que é pontuado como um desafio a ausência da elaboração de fluxo para a realização dos encaminhamentos dos casos discutidos de saúde mental. Vale destacar que, por meio do matriciamento, busca-se a ampliação da capacidade resolutiva das equipes de referência, evitando, dessa forma, os encaminhamentos desnecessários a outros níveis de atenção (Cunha & Campos, 2011).

Dito isso, questiona-se se o sentido atribuído ao uso do termo “encaminhamento correto” comparece como sinônimo de encaminhamento qualificado, sendo um desdobramento do matriciamento. Ou seja, o ato de encaminhar configura-se como uma prática do cuidado compartilhado, realizado por meio da elaboração de projetos terapêuticos executados por um conjunto de profissionais atuantes em uma rede de atenção, possibilitando o acesso com responsabilidade e resolutividade (Oliveira & Campos, 2017).

Esse questionamento torna-se importante pelo fato de que tem sido frequente a associação, pelos profissionais de saúde, do matriciamento à ideia de um espaço propício de encaminhamento ao especialista, reproduzindo, por vezes, uma lógica fragmentada de cuidado; mesmo diante da proposta matricial de compartilhamento da atenção prestada à população (Pegoraro et al., 2014; Dantas & Passos, 2018; Iglesias & Avellar, 2019).

Nesse sentido, é preciso ficar atento para que o “encaminhamento correto” não reproduza a lógica dos encaminhamentos excessivos, que geram a desresponsabilização e não privilegiam o vínculo nas práticas terapêuticas entre as equipes. Em outras palavras, na operacionalização do matriciamento, a lógica de referência e contrarreferência seria alterada para uma perspectiva de corresponsabilização, de modo que a equipe de referência não deixa de realizar o acompanhamento longitudinal da pessoa, independentemente do fluxo do cuidado estabelecido. Especificamente, sobre a elaboração desses fluxos, ressalta-se a sua importância enquanto ferramenta de gestão e de direcionamento do cuidado em saúde. Contudo, por terem um caráter prescritivo, é preciso cuidar para que não se transformem em scripts estanques, que podem engessar o trabalho e burocratizar os atendimentos (Figueiredo & Campos, 2009).

No que diz respeito às relações estabelecidas entre as equipes matriciadoras e a equipe de referência, verifica-se que, apesar dos participantes caracterizarem as práticas do matriciamento como “estar junto”, os dados demonstram que existe uma fragilidade nessa relação, uma tensão, um distanciamento entre as duas equipes. Uma hipótese a ser aqui levantada é a de que pode existir uma fragmentação nesse “estar junto”, sem uma integração efetiva, o que inviabiliza a construção colaborativa das ações, colocando as equipes em campos opostos: equipe que pensa o cuidado versus a que executa. Ou seja, o “estar junto”, a depender da situação vivenciada, pode ser reduzido à presença dos profissionais no mesmo espaço, com uma organização do trabalho constituída por relações verticalizadas, frágeis, que geram incompreensões, expectativas irreais sobre o trabalho do outro e conflitos não trabalhados entre aqueles que deveriam atuar em parceria.

Nesse cenário, por parte de uma das equipes, a não realização de sua “função esperada” pode impossibilitar o fomento da reciprocidade e da integração dialógica, conforme proposto na prática do matriciamento. Dito isso, corrobora-se com Peduzzi e Agreli (2018) que o “estar junto” no trabalho em saúde é um exercício constante de colaboração entre as diferentes categorias profissionais, na busca por relações de parceria interprofissional e responsabilidade coletiva.

A interprofissionalidade, por sua vez, em conformidade com a OMS (2010), é entendida pelos participantes como um processo em que, de modo complementar, dois ou mais profissionais trabalham por um objetivo comum de cuidado. Trata-se de uma proposta em que “duas ou mais profissões aprendem sobre os outros, com os outros e entre si para a efetiva colaboração e melhora dos resultados na saúde” (OMS, 2010, p. 13).

Vale destacar, ainda, o entendimento apresentado pelos participantes da interprofissionalidade como “algo novo” que se manifesta no cotidiano do trabalho, necessitando ser disseminado dentro dos serviços de saúde. Nesse ponto, faz-se importante a problematização dessa recenticidade apontada. Se a referência é a discussão internacional sobre essa temática, com tal denominação, faz sentido afirmar que se trata de uma proposta relativamente atual, datada de 2010 (Canadian Interprofessional Health Collaborativa [CIHC], 2010). Todavia, o SUS, desde sua origem, traz todas as prerrogativas da interprofissionalidade com outras denominações: atenção centrada na pessoa; liderança colaborativa; dinâmica de equipe; comunicação interprofissional; clareza de papéis; e resolução de conflitos. Advoga-se, nos princípios e diretrizes desse sistema, pela participação social, cogestão e trabalho em equipe interdisciplinar para a promoção da integralidade da atenção, sustentado pelo diálogo e sob a perspectiva do conflito como espaço de expressão de diferentes entendimentos de mundo, de saúde e de sujeito a serem negociados e reconstruídos no encontro entre os diversos atores sociais.

Os dados deste estudo destacam que a operacionalização da interprofissionalidade e do matriciamento ocorre, principalmente, por meio da discussão de casos, o que pode ser bastante interessante se tal discussão for aberta à análise constante dos processos de trabalho envoltos ao cuidado da situação em questão. Contudo, como discutido por outros estudos (Cunha & Campos, 2011; Previato & Baldissera, 2018; Iglesias & Avellar, 2019), não se pode perder de vista que a discussão de caso é uma das importantes ferramentas possíveis na efetivação da interprofissionalidade e do matriciamento; e que não pode ser tomada como sinônimo dessas duas temáticas trabalhadas neste estudo.

No que se refere às potencialidades da interprofissionalidade e do matriciamento, verifica-se em relação à interprofissionalidade que os resultados apresentados convergem para a complementaridade dos saberes por meio dos “diferentes olhares”, fomentando o desenvolvimento da clínica ampliada. Comparece também a interprofissionalidade e o ­matriciamento enquanto facilitadores do processo de aprendizado. Nesse sentido, especificamente sobre o matriciamento, pondera-se a utilização dos seus encontros como um recurso para a produção de conhecimento sobre o uso desta metodologia, tendo em vista o que aponta os resultados desta pesquisa sobre a existência de uma dificuldade por parte da equipe de referência em compreender a lógica do matriciamento. Em outras palavras, os encontros matriciais podem ser utilizados como espaços para promover a discussão e a troca de saberes sobre a própria dinâmica de funcionamento da prática de matriciamento.

Ainda como efeito desse aspecto educativo presente no matriciamento, os participantes destacam os conhecimentos adquiridos sobre o cuidado em saúde mental como uma potencialidade. Essa realidade também compareceu no estudo realizado por Amaral et al. (2018), que ressalta o matriciamento como uma metodologia potente para a qualificação do cuidado em saúde mental, com consequências diretas na atenção ao usuário. Os autores destacam mudanças na atitude dos profissionais, em função de uma maior compreensão do que acontece com pessoas em sofrimento psíquico. Tais mudanças possibilitam maior aproximação com os casos, criação de vínculo, diminuição do sentimento de medo por parte dos profissionais e fomento da corresponsabilidade da equipe sobre o cuidado (Amaral et al., 2018).

Contudo, percebe-se que apesar da potencialidade do matriciamento para a qualificação das ações de saúde mental, ainda comparece a sensação de impotência de determinados profissionais frente a esse tipo de atenção. Nesse estudo, o sentimento de impotência foi atrelado pelos participantes à existência de certo “comodismo”, de modo que alguns trabalhadores se acomodam naquelas categorias profissionais que possuem maior afinidade com a temática da saúde mental, em função do seu núcleo de saber, e acabam não contribuindo para esse cuidado.

Infere-se que essa sensação de impotência pode estar relacionada à fragilidade na formação em saúde, que produz um mal-estar do não saber fazer, colocando o profissional em uma situação defensiva frente ao cuidado a ser efetivado. Todavia, é preciso desmistificar a ideia de que a formação, isoladamente, seria capaz de amenizar as dificuldades na realização do cuidado ampliado, principalmente no que se refere às demandas da saúde mental. Ou seja, qualquer processo de formação em saúde só trará resultados para o cuidado se estiver atrelado às mudanças políticas e culturais capazes de fomentar o compromisso ético com a vida, a promoção e a recuperação da saúde.

Os dados também discorrem sobre o esgotamento provocado pela sobrecarga do trabalho, mas, principalmente, pelo exercício do trabalho coletivo. Comparece a dificuldade para estabelecer a prática da escuta e do diálogo, as divergências para expor os diferentes pontos de vista e a resistência à mudança como impasses para o desenvolvimento da interprofissionalidade. Destaca-se que o trabalho em saúde deve acontecer, majoritariamente, na modalidade de trabalho coletivo multiprofissional e em cooperação. Ou seja, por meio da construção de uma relação de reciprocidade entre as múltiplas intervenções técnicas e pela interação dos diferentes profissionais (Peduzzi et al., 2020).

Todavia, historicamente, verifica-se que a organização do trabalho em saúde é marcada, predominantemente, pelo domínio técnico e atos próprios de cada categoria, estabelecendo uma fronteira entre os grupos profissionais. Esse cenário torna-se propício para a criação de conflitos entre os atores com diversos interesses, nem sempre convergentes, demandando dos profissionais um processo de negociação permanente (Scherer et al., 2009). Verifica-se que o esgotamento apontado pelos participantes converge com esse processo de negociação permanente, que nem sempre é realizado de “forma pacífica”.

De acordo com Peduzzi e Agreli (2018), o processo de negociação entre os profissionais de equipes de saúde deve ocorrer de forma frequente no cotidiano dos serviços, em função das diferenças existentes e do conhecimento limitado que cada profissional tem da atuação e das responsabilidades das outras categorias. Assim, as autoras destacam que o reconhecimento das ações específicas de cada profissão pode contribuir para a construção de uma relação interprofissional mais resolutiva e harmoniosa. Para tanto, torna-se importante a criação de espaços que oportunizem a escuta e o diálogo com a interlocução das pluralidades. A ideia é promover a troca de conhecimento por meio de diálogos democráticos que favoreçam o desenvolvimento da compreensão das diferentes práticas profissionais.

Essa discussão se torna pertinente inclusive para discutir o desafio apresentado pelos participantes sobre a Rede de Atenção à Saúde (RAS) existente nesse município. Eles estabelecem uma correlação entre a resolutividade dos casos e a presença de psiquiatras no matriciamento. Vale destacar a relevância do papel desse profissional no contexto da RAS, contudo, faz-se importante questionar a centralidade que lhe é atribuída frente ao repertório de estratégias de cuidado em saúde mental orientado pelo modelo de atenção psicossocial.

Nesse sentido, como discutido por Lima e Guimarães (2019), é inegável que séculos de hegemonia do saber médico-psiquiátrico, associado ao contexto de ascensão capitalista e neoliberal que fomentaram e/ou ainda fomentam a indústria da loucura, deixaram marcas significativas no cuidado em saúde mental, principalmente no que compete aos processos de trabalho das equipes, à organização dos serviços e sua articulação com os demais equipamentos da rede, à formulação de políticas públicas e ao imaginário popular de usuários, familiares e profissionais de que o cuidado em saúde mental se limita à atenção médica. Contudo, há de se afirmar que a rede de cuidado voltada à pessoa em sofrimento psíquico é muito diversificada em suas possibilidades e que o profissional psiquiatra é apenas um dos importantes atores envolvidos nessa atenção integral que se quer construir.

Em relação às propostas apresentadas pelos participantes para a consolidação do matriciamento e da interprofissionalidade, destaca-se a “prática de estudo nos serviços” de cuidado em saúde que comparecem no território, viabilizado por meio da interação entre profissionais de categorias distintas, assemelhando-se à proposta da Educação Permanente em Saúde. Ou seja, com a ênfase na aprendizagem no trabalho e para o trabalho, em que aprender e ensinar são fatores indissociáveis e incorporam-se ao cotidiano dos serviços, favorecendo o desenvolvimento de práticas voltadas para o cuidado integral. A prática do matriciamento e da interprofissionalidade permeariam, de forma transversal, esses espaços de formação, configurados por trocas de saberes e reflexão para a prática.

Verifica-se que essa proposta não se constitui como uma via de mão única, quer dizer, ao mesmo tempo que ocorre a prática do estudo no serviço, também são fomentados os princípios que sustentam o matriciamento e a interprofissionalidade. É um processo indissociável, imanente ao encontro. Contudo, ressalta-se a importância desses espaços não serem captados pela lógica bancária de educação, conforme apontado por Paulo Freire (2016). Ao se reduzirem a encontros de depósitos de conteúdo, deslocados da realidade do território, limitam-se a ensinar procedimentos e protocolos a determinados profissionais que ­assumem o papel de receptores, reforçando, assim, a fragmentação das ações.

Por fim, os participantes também destacam a necessidade de uma pessoa “externa ao serviço” para ajudar na elucidação e na criação de propostas para a efetivação do matriciamento e da interprofissionalidade. Transparece, por meio dos resultados, que os profissionais estão mergulhados e naturalizados com uma lógica de produção imediatista e quantitativa, sendo necessária a figura de uma pessoa externa capaz de convocar a equipe a refletir sobre o seu próprio trabalho e a operar com novos sentidos. Alguém que provoque um estranhamento, que traga um olhar estrangeiro para enxergar o que já não é mais possível ser visto pelos “olhos dos nativos”, produzindo mudanças, novas perspectivas, acertos e erros (Mendes et al., 2016, p. 201).

Considerações Finais

Este artigo teve como objetivo analisar as concepções dos profissionais de saúde da AB sobre a interprofissionalidade e o matriciamento, bem como os desafios e as potencialidades de sua execução. Os resultados demonstram que a interprofissionalidade e o matriciamento são caracterizados como práticas que possuem objetivos em comum, sendo orientados por meio do desenvolvimento do trabalho colaborativo e do exercício da interdisciplinaridade, com vistas ao cuidado integral e resolutivo. Entre as potencialidades, destacam-se a complementaridade dos saberes entre as diferentes categorias e, especificamente, sobre o matriciamento, o seu aspecto educativo no que se refere ao cuidado em saúde mental. A sobrecarga de trabalho e o esgotamento das equipes, provocados pela dificuldade do trabalho coletivo, foram pontuados como alguns dos desafios para a realização dessas práticas.

Diante dos resultados encontrados nesse estudo, reforça-se a importância do domínio da prática interprofissional e do matriciamento, enquanto ferramentas dialógicas para a (re)construção dos saberes e dos fazeres que emergem do cotidiano do trabalho das equipes da AB. Sugere-se, nesse sentido, a instauração de espaços e oportunidades que sejam capazes de cultivar o exercício do diálogo, superando as hierarquias de poder existentes no trabalho em saúde e a dicotomia entre o aprender e o ensinar. Para tanto, recomenda-se, especificamente, explorar os espaços destinados para as reuniões de equipes, criando uma periodicidade para a sua realização, qualificar as discussões dos casos, exercer a tomada de decisão compartilhada e favorecer a elucidação da clareza dos papéis profissionais, por meio da prática da EPS. Acredita-se que o desenvolvimento dessas ações pode aumentar as possibilidades de um trabalho pautado na prática colaborativa em saúde com vista ao cuidado integral.

Por fim, espera-se que os achados deste estudo favoreçam o direcionamento político das práticas voltadas para a interprofissionalidade e para o matriciamento, nos níveis nacional, regional e local. Destaca-se como limitação deste estudo o fato de ter investigado apenas as concepções de profissionais da AB. Desse modo, indica-se a necessidade de novos estudos nessa temática junto aos gestores, aos usuários e a outros atores que compõem o SUS, com o propósito de elucidar as concepções e as práticas desenvolvidas em torno da interprofissionalidade e do matriciamento no trabalho das equipes da AB a partir de vários olhares e, consequentemente, produzir novos conhecimentos nesse campo de estudo.

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Sobre os autores:

Meyrielle Belotti: Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora da Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: meyrielle.belotti@ufes.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3901-4656

Alexandra Iglesias: Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora da Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: leiglesias@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7188-9650

Grace Kelly Filgueiras Freitas: Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora da Graduação em Fisioterapia da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: grace.freitas@ufes.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6720-9947

rbara Lima Gravino Passos: Especialista em gestão e logística farmacêutica pela Unyleya. Farmacêutica pela Universidade Federal do Espírito Santo e E-mail: barbaraglp@hotmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9991-9097

Guilherme Augusto Loiola Passos: Mestre em Nutrição e Saúde e nutricionista pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: guilherme_alp@hotmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8343-8627

Carolina Dutra Degli Esposti: [Autora para contato]. Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-Fiocruz). Professora da Graduação em Odontologia e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: carolina.esposti@ufes.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8102-7771

Recebido em: 22/12/2021

Última revisão: 06/10/2024

Aceite final: 20/02/2025

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v1i1.1870

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