A Perspectiva do Paciente sobre Sua Vivência no Contexto da Terapia Intensiva
The Patient’s Perspective on Their Experience in the Intensive Care Setting
La Perspectiva del Paciente sobre Su Experiencia en Cuidados Intensivos
Jamille Fontes Leite Botelho1
Valéria Christine Albuquerque de Sá Matos
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Resumo
Introdução: O presente estudo teve como objetivo conhecer a perspectiva do paciente adulto acerca da sua vivência de internação no contexto de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) após sua alta da unidade. Método: Trata-se de uma pesquisa qualitativa, utilizando a técnica de entrevista semiestruturada e um questionário estruturado para traçar o perfil sociodemográfico dos participantes. Foram entrevistados 9 pacientes adultos que estiveram internados na UTI do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão (HU-UFMA), durante o período de setembro a outubro de 2021. Os dados coletados foram analisados a partir da técnica de análise de conteúdo, na modalidade temática. Resultados e Discussão: Destacaram-se os temas por repetição e relevância, resultando em três categorias relativas à vivência do paciente: o estigma da UTI e sua mudança após internação; sentimentos evidenciados pelos pacientes durante a internação na UTI; e os recursos de enfrentamento. Conclusão: Concluiu-se que os aspectos emocionais indicaram importantes elementos para a compreensão da vivência do paciente no contexto da UTI, e, por se tratar de um ambiente potencializador do sofrimento psíquico e onde muitos dos estressores não podem ser alterados, a equipe assistencial tem papel fundamental na minimização dos impactos dessa experiência.
Palavras-chave: unidade de terapia intensiva de adulto, perspectiva do paciente, psicologia em saúde
Abstract
Introduction: This study aimed to understand the adult patient’s perspective about his/her experience of hospitalization in the Intensive Care Unit (ICU) after discharge from the unit. Method: This is a qualitative research, using the semi-structured interview technique and a structured questionnaire to trace the sociodemographic profile of the participants. We interviewed 9 adult patients who were admitted to the ICU of the University Hospital of the Federal University of Maranhão (HU-UFMA), during the period of September and October 2021. The data collected were analyzed using the content analysis technique, in the thematic modality. Results and Discussion: Themes were highlighted by repetition and relevance, resulting in three categories related to the patient’s experience: the stigma of the ICU and its change after hospitalization; feelings evidenced by patients during ICU stay; and coping resources. Conclusion: It was concluded that the emotional aspects indicated important elements for understanding the experience of the patient in the context of the ICU, and, because it is an environment that promotes psychological suffering and where many of the stressors cannot be changed, the care team has a key role in minimizing the impacts of this experience.
Keywords: adult intensive care unit, patient perspective, health psychology
Resumen
Introducción: Este estudio tenía como objetivo conocer la perspectiva de los pacientes adultos sobre su experiencia de hospitalización en la Unidad de Cuidados Intensivos (UCI) tras su alta de la unidad. Método: Se trata de una investigación cualitativa, que utiliza la técnica de la entrevista semiestructurada y un cuestionario estructurado para elaborar el perfil sociodemográfico de los participantes. Entrevistamos a 9 pacientes adultos que ingresaron en la UCI del Hospital Universitario de la Universidad Federal de Maranhão (HU-UFMA), durante el período de septiembre y octubre de 2021. Los datos recogidos se analizaron mediante la técnica de análisis de contenido, en la modalidad temática. Resultados y discusión: Se destacaron los temas por su repetición y relevancia, lo que dio lugar a tres categorías relacionadas con la experiencia del paciente: el estigma de la UCI y su cambio tras la hospitalización; sentimientos evidenciados por los pacientes durante la hospitalización en la UCI; y recursos de afrontamiento. Conclusión: Se concluyó que los aspectos emocionales indicaron elementos importantes para la comprensión de la experiencia del paciente en el contexto de la UCI, y, debido a que es un ambiente que promueve el sufrimiento psicológico y donde muchos de los factores de estrés no pueden ser cambiados, el equipo de atención tiene un papel clave en la minimización de los impactos de esta experiencia.
Palabras clave: unidad de cuidados intensivos para adultos, perspectiva del paciente, psicología de la salud.
Introdução
A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é um ambiente hospitalar destinado ao tratamento de pacientes graves, com possibilidade de recuperação, sendo um setor classificado como de alto custo, no qual fazem parte grande número de equipamentos, materiais, tecnologias duras e profissionais especializados. Caracteriza-se como um espaço complexo, reservado, com pacientes em monitorização contínua, vigilância 24 horas e tratamento intensivo (Moreira & Costa, 2018; Nogueira et al., 2017).
É um espaço com características específicas, marcado pela relação de profissionais e pacientes em situação de risco, destacando o conhecimento técnico-científico e a tecnologia para o atendimento biológico. Nota-se uma rotina rígida, pouco flexível, com agilidade de ação para o atendimento e um ambiente com iluminação artificial, ruídos, aparelhos, falta de privacidade e isolamento social (Nogueira et al., 2017).
A princípio, o nome UTI é repleto de um estereótipo de morte iminente e de um lugar para o falecimento. É habitual observar pessoas que dispõem da crença de que a UTI refere-se a um local onde os pacientes são levados pois estão em estado terminal e têm pouca chance de melhora clínica (Moreira & Costa, 2018).
De acordo com Simonetti (2004, p. 153), “tudo é intenso na UTI: o tratamento, os riscos, as emoções, o trabalho, os custos e a esperança”. Tal cenário pode tornar-se mobilizador de diversos sentimentos e emoções nos pacientes e familiares, pois, além dos agentes estressores ambientais (iluminação, ruídos, tecnologias), que podem ocasionar alterações no sono, mudanças no estado mental e no humor, os pacientes vivenciam fatores relacionados com a suspensão da rotina, distanciamento familiar e de vínculos afetivos, limitação das atividades, perda de autonomia e a participação direta ou indireta do sofrimento do outro, que são geradores de grandes impactos na vida dos sujeitos hospitalizados (Arantes et al., 2020).
Perante a circunstância única da vivência em UTI, o sujeito que ali está estabelece uma relação com o adoecimento, tratamento e internação, e os sentimentos são manifestados durante todo o processo e podem variar entre tristeza, ansiedade, angústia, medo, impotência, desamparo, perda de autonomia e insegurança. Do mesmo modo, estão presentes o medo da morte, as fantasias ligadas a esse lugar, a solidão, a saudade da família, a perda do controle sobre si mesmo e a dificuldade em conservar sua identidade, individualidade e privacidade (Gomes & Carvalho, 2018).
Diante da experiência do paciente na UTI os aspectos emocionais são relevantes, pois podem provocar maior agravo no quadro clínico e/ou acarretar uma instabilidade emocional, que resulta em sofrimento psíquico, assim como respostas não adaptativas a hospitalização (Maciel et al., 2020).
Considerando que a internação nesse setor está carregada de características especiais, podendo gerar sofrimento importante e em algumas situações ser traumáticas para o paciente, mostra-se pertinente e fundamental conhecer a percepção do paciente adulto sobre a sua experiência acerca da vivência na UTI, de modo a colaborar para uma reflexão dos profissionais sobre as suas formas de cuidar e para o desenvolvimento da qualidade da assistência, favorecendo a minimização dos estressores em um ambiente tão estigmatizado.
Dessa maneira, esta pesquisa teve como objeto de estudo conhecer a perspectiva do paciente adulto acerca da sua experiência de internação no contexto da UTI após sua alta da unidade e teve como objetivos descrever o perfil sociodemográfico dos entrevistados; conhecer como o paciente descreve o tempo de hospitalização na UTI; verificar crenças relativas à UTI e se houve mudanças acerca delas após período de internação; e identificar sentimentos relacionados com a vivência na UTI.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva, analítica e exploratória. Este estudo foi realizado no Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão (HU-UFMA), sendo um hospital de Alta Complexidade, abarcando diversas especialidades em saúde e equipes multiprofissionais. Dentre estes setores, destaca-se a Unidade de Terapia Intensiva do Adulto (UTIAD), onde se deu esta pesquisa. No momento do estudo, a UTIAD contava com 15 leitos, atendimento 24 horas com suporte de equipe multiprofissional composta de assistentes sociais, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, enfermeiros, médicos, nutricionistas, odontólogos, psicólogos, técnicos em enfermagem e terapeutas ocupacionais. Vale ressaltar que mesmo o estudo tendo ocorrido em contexto pandêmico, a unidade onde foi efetuada esta pesquisa era destinada a tratamento de pacientes gerais e não relacionados à covid-19.
Os sujeitos da pesquisa foram nove pacientes adultos que estiveram internados na UTIAD durante o período de setembro a outubro de 2021. Foram incluídos na amostra pacientes de ambos os sexos, maiores de 18 anos, admitidos na UTIAD do HU-UFMA, que tiveram tempo de permanência na unidade igual ou superior a 2 dias; receberam alta no período de setembro a outubro de 2021; encontravam-se internados nas enfermarias da clínica médica e cirúrgica do Hospital; e concordaram em participar da pesquisa, após leitura, compreensão e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do HU-UFMA, sob o parecer n. 4.860.233.
Foram excluídos da amostra pacientes com tempo de permanência na UTIAD menor que 48 horas, traqueostomizados, com déficit cognitivo, o que inviabilizaria a realização das entrevistas e pacientes que recusaram participar da pesquisa e não assinaram o TCLE. Neste estudo, o critério para definição da amostra foi o de saturação temática. Tal medida considera que em um dado momento pode ocorrer a interrupção da inserção de novos participantes, quando as informações oferecidas pelos novos entrevistados não trouxerem mais contribuições significativas para a reflexão teórica embasada nos dados já adquiridos. Apesar de se conhecer o universo da pesquisa, no método qualitativo o pesquisador não conhece o número de entrevistas a priori (Minayo, 2017).
A coleta de dados foi realizada de setembro a outubro de 2021. Para essa etapa, foi aplicada a técnica de entrevista semiestruturada e um questionário estruturado. O questionário estruturado conteve perguntas fechadas e foi aplicado individualmente, antes da entrevista semiestruturada, com o objetivo de traçar o perfil sociodemográfico da amostra. Ele também tinha um campo de preenchimento sobre informações de suporte clínico ao paciente internado na UTIAD. Esses dados foram coletados pela primeira pesquisadora, por meio do prontuário eletrônico.
As entrevistas foram realizadas com o apoio de um roteiro semiestruturado, em que se pretendeu abordar conteúdos a respeito da experiência de internação na UTI, acerca das emoções e dos sentimentos vivenciados nesse contexto, assim como quais as crenças e fantasias relacionadas ao ambiente da UTI antes do período de internação. As entrevistas foram constituídas de perguntas abertas, a fim de possibilitar que os entrevistados falassem livremente sobre os conteúdos apresentados, além da possibilidade de efetuar questionamentos a partir das temáticas estabelecidas a priori. Estas foram executadas nas enfermarias da clínica médica e cirúrgica do HU-UFMA, onde foram gravadas após o conhecimento e a autorização dos entrevistados, a partir da assinatura do TCLE e do Termo de autorização para uso de imagem e voz. Após esta etapa, as entrevistas foram transcritas e analisadas. A entrevista com menor tempo de duração ocorreu em 6 minutos e 22 segundos, e a de maior duração, em 18 minutos e 54 segundos. Tanto a coleta de dados quanto a transcrição foram executadas pela primeira pesquisadora.
Os dados foram analisados segundo a técnica de Análise de Conteúdo, na modalidade Temática. De acordo com Minayo (2014), a análise temática divide-se em três fases, a primeira definida como Pré-Análise, que se baseia na triagem dos documentos revendo os objetivos iniciais da pesquisa e criando parâmetros que norteiam a interpretação. A segunda, chamada de Exploração Material, consiste em codificar as informações compostas no material, realizando um recorte a fim de atingir a compreensão do texto. Por fim, a fase de Tratamento dos resultados, que tem a finalidade de constituir e captar os conteúdos contidos em todo o material coletado por meio dos instrumentos, destinando-se à busca de significação das mensagens, sendo um momento da análise reflexiva e crítica (Minayo, 2014).
Resultados e Discussão
Baseado nos dados do perfil sociodemográfico dos entrevistados, observou-se que a maioria se constituiu de participantes do sexo feminino e com nível médio de escolaridade, sendo essas as principais características da amostra, conforme consta na Tabela 1.
Tabela 1
Perfil Sociodemográfico dos Entrevistados
Variáveis |
N. |
Sexo |
|
Feminino |
6 |
Masculino |
3 |
Faixa etária |
|
27 – 37 |
3 |
38 – 48 |
4 |
49 – 55 |
2 |
Estado civil |
|
Solteiro |
5 |
Casado |
3 |
União consensual |
1 |
Escolaridade |
|
Sem escolaridade |
1 |
Nível médio completo |
6 |
Nível superior completo |
2 |
Atividade laboral |
|
Sem atividade laboral |
3 |
Assessor de logística |
1 |
Funcionário público |
3 |
Comerciante |
1 |
Aposentado |
1 |
Religião |
|
Católico |
4 |
Evangélico |
5 |
Os dados de suporte clínico dos pacientes entrevistados serão apresentados na Tabela 2.
Tabela 2
Informações de Suporte Clínico ao Paciente via Prontuário Eletrônico
Variáveis |
N. |
Primeira internação na UTI |
|
Sim |
9 |
Não |
0 |
Uso de Ventilação Mecânica durante a internação |
|
Sim |
5 |
Não |
4 |
Tempo de internação |
|
2 dias |
1 |
3 dias |
2 |
5 – 10 dias |
4 |
21 – 25 dias |
2 |
A partir das entrevistas efetuadas, foi realizada a leitura até a impregnação do conteúdo e destacados os temas por repetição e relevância, resultando em três categorias relativas à vivência do paciente: o estigma da UTI e sua mudança após internação; sentimentos evidenciados pelos pacientes durante a internação na UTI; e os recursos de enfrentamento.
O Estigma da UTI e sua Mudança após Internação
Na primeira categoria, foram evidenciados, a partir das entrevistas, os estigmas associados ao ambiente da UTI. Sete dos participantes relataram que, anteriormente à internação na UTI, percebiam esse lugar como um espaço destinado à morte e a pessoas que estavam sem esperança de recuperação. Acredita-se que, como se tratava da primeira internação na UTI de todos os participantes, esse dado teve um impacto no olhar estigmatizado diante do ambiente desconhecido, uma vez que, como aponta Soares et al. (2020), a representação social relacionada à UTI foi construída ao longo do tempo pela sociedade.
Pensava assim “Eita, vai morrer”, é, vai morrer, porque está na UTI. (E3)
A gente ouve falar e fica logo no pânico, com medo, achando que vai para lá e vai morrer que é lugar de quem está muito mal. (E7)
O que eu achava na verdade é que quando ia para UTI é que não tinha mais jeito, já era para bater as bielas, quando alguém dizia “fulano foi para UTI”, pronto, já perdi as esperanças. (E8)
Destaca-se que os dois entrevistados que não trouxeram no seu discurso o estigma de morte associado à UTI possuíam escolaridade nível superior completo, sendo um formado em Enfermagem e outro em Administração, o que pode colaborar para uma visão menos estigmatizada. Contudo, a partir da fala de ambos, notou-se que, mesmo quando o paciente não apresenta uma visão estigmatizada da UTI, estar nesse cenário traz pensamentos sobre a sua própria finitude e a respeito da fragilidade humana.
Eu sei que é um lugar que não é totalmente só para quando a pessoa está muito ruim, que é para pessoas que requerem um cuidado de rápido atendimento, de uma atenção melhor, de mais especialistas. Só que é assim, eu nunca fiquei assim . . . eu não tinha me programado psicologicamente. E mexeu muito com meu pensamento e ao estar na UTI eu me sentia frágil. (E6)
Os discursos são importantes para observar como a internação na UTI é geradora de incertezas, preocupações e medos. Nogueira et al. (2017) afirmaram que a percepção de morte é comum nos pacientes de UTI, pois as particularidades do espaço colaboram para essa percepção, por ser um setor onde estão localizados os pacientes mais graves, ocorrendo maiores números de intercorrências, sendo gerador de estresse devido a sua estrutura (iluminação, ruídos, tecnologias), procedimentos e distanciamento familiar.
Os dados revelaram que as percepções dos pacientes sobre o contexto da terapia intensiva existem antes mesmo de estarem internados nesse ambiente, sendo influenciadas por vivências e informações recebidas no cotidiano e a partir do estereótipo sobre a UTI (Gomes & Carvalho, 2018). Contudo, após estarem na UTI, há uma mudança de percepção. Todos os entrevistados relataram modificação nas suas concepções em relação à UTI após hospitalização.
Hoje eu penso diferente, que é um lugar que vão cuidar, a gente vai ter mais atenção, não é um lugar que a gente é abandonado . . . se acontecer alguma coisa tem alguém lá o tempo todo do nosso lado, tem mais rapidez. (E7)
Não era como eu pensava, é diferente, porque vai depender do estado de saúde de cada um, porque às vezes a gente está lá não porque está ruim, mas para controlar a doença, que foi o meu caso. (E8)
Após a internação, houve, dentre os participantes, quem associasse a UTI a um lugar de cuidado, de recuperação, mudança de vida e esperança. Destaca-se que esse pensamento precisa ser fomentado, pois a UTI deve ser marcada por um lugar de vida, uma vez que a natureza da sua função é lidar com a vida (Moreira & Costa, 2018).
Tem casos que realmente a pessoa está muito grave, mas tem pessoas que não estão, é só para se recuperar. É um lugar que a gente tem que buscar esperança . . . tipo “ah eu vou pra lá e lá eu vou ficar bem”. (E2)
Há 17 anos [pausa/choro], há 17 anos eu tinha esse problema, entendeu? Então eu estar lá foi um acontecimento histórico na minha vida, porque a minha vida será outra a partir de agora. (E5)
Dois dos participantes abordaram sobre o desejo de permanecerem na UTI até a alta hospitalar, por associarem-na com um lugar de maior agilidade nos processos e na assistência exclusiva. Soares et al. (2020) já referiam, na sua pesquisa, como a provisão dos equipamentos e das ferramentas para a prestação do cuidado intensivo colabora para uma nova concepção dos pacientes sobre a unidade, gerando segurança durante o tempo de internamento, o que pode esclarecer o desejo dos pacientes.
Se eu pudesse ficar lá até hoje, eu ficaria . . . um técnico ficava lá direto, não que aqui não esteja, está, está sempre, mas lá é diretamente, uma pessoa só para você. Aqui, por exemplo, estou desde ontem à tarde aguardando o equipamento para fazer o exame . . . eu tenho absoluta certeza de que um paciente da UTI não espera. (E5)
Acho que lá estava até melhor, era mais tranquilo, o clima era bom, aqui é quente, dá para sentir. Lá é o ambiente mais confortável, a gente chamava, nem precisava chamar já tinha gente lá para atender. (E9)
Em contrapartida, quatro participantes discorreram sobre o desejo de não retornar para a UTI, ainda que reconhecessem a necessidade de internação no setor para recuperação.
Ao meu ver foi uma experiência única que eu espero que não tenha mais que repetir. Foi a busca de um sonho, de uma cura. (E1)
Deus me livre passar por aquilo ali de novo, só que eu sei que é um meio deles salvarem as vidas . . . eu tenho consciência disso. (E4)
Sentimentos evidenciados pelos pacientes durante a internação na UTI
Nos relatos apresentados abaixo, são demonstrados os sentimentos referidos pelos pacientes durante a vivência na terapia intensiva. Observa-se que sete dos participantes verbalizaram o medo de morrer na UTI, sendo este um dos sentimentos mais relatados pelos participantes. A morte e o processo de morrer são fenômenos que geram angústia, e essas falas apontaram para o reconhecimento do limite da vida e da condição de vulnerabilidade do ser humano. Em pesquisas semelhantes, como o estudo de Maciel et al. (2020), esses dados são igualmente apresentados, indicando como o medo da morte e do desconhecido está diretamente associado ao contexto de internação na UTI. Os participantes semelhantemente mencionaram o medo diante de um local desconhecido e de isolamento.
Tive medo, medo de não sair, medo de não resistir ao tratamento. (E1)
Pensava que não ia ver mais minhas filhas . . . achei que eu ia morrer. (E2)
Bateu certo medo, muito medo mesmo . . . medo de não sair bem, como se fosse uma linha sem fim . . . a morte andava ali praticamente. (E6)
A gente não deixa de ficar com medo, até porque era a primeira vez que a gente vai, nunca tinha ido. (E8)
UTI, antes deu conhecer, era um pânico, era um lugar fechado, onde as pessoas não têm acesso, é uma porta fechada, nem todo mundo pode entrar, você fica ali sozinho. (E5)
As situações que aconteciam com os pacientes de outros leitos também apareceram como fator que influenciava no medo de morte e na insônia dos entrevistados. De acordo com Nogueira et al. (2017, p. 55), a participação direta ou indireta do sofrimento alheio, inclusive da morte, “pode assombrar, estressar e exacerbar a fragilidade e a impotência do paciente que assiste”.
Eu via as intercorrências, aí batia um medo. (E6)
Lá a gente vê várias situações de pessoas diferentes . . . então a gente fica olhando a experiência de cada um que está lá, aí a gente se sente meio aliviado e meio com medo também. (E7)
Eu vi o caso da paciente que faleceu bem em frente, ou o caso na outra moça do lado que também faleceu, aí eu ficava preocupada, desde esse tempo que eu não consegui dormir direito, fiquei com muita dificuldade para dormir. (E2)
Outro fator que ocasionou a insônia dos pacientes foram os ruídos das máquinas e os procedimentos realizados. Os ruídos desconhecidos dos equipamentos, sentir dor, não conseguir dormir e a interrupção do sono pela equipe são apontados como fatores geradores de estresse durante a hospitalização na UTI. Ressalta-se que o sono colabora para a recuperação do paciente, devido a transformações fisiológicas e metabólicas relativas às funções orgânicas desse; dessa maneira, os profissionais de saúde da unidade têm papel importante no que tange às possíveis intervenções que possibilitem uma maior qualidade do sono, como concentrar o maior número de procedimentos durante o dia, diminuir os ruídos e a movimentação dispensável da equipe, por exemplo (Lana et al., 2018).
Eu achei muito forte, assim de termo da vivência, do barulho, tinha dificuldade para dormir, dificuldade pra me concentrar . . . era a questão do barulho das máquinas mesmo. (E1)
É horrível, te furar todinha . . . porque dói, é uma coisa que incomoda muito, você não dorme, você não tem paz. (E4)
Dos cinco entrevistados que fizeram uso de Ventilação Mecânica (VM) durante a internação na Unidade, quatro discorreram acerca dessa vivência e de como ela foi mobilizadora de emoções. Observou-se que a experiência da entubação repercute de maneira significativa no paciente, e o sofrimento diante do uso de VM pode ser entendido como uma angústia intensificada, que transcende o desconforto mediante os aparelhos invasivos, relacionando-se intimamente à sensação de ameaça à integridade pessoal e ao resultado da leitura que cada paciente faz dos significados que atribui a essa condição (Arruda, 2019).
Do mesmo modo, o despertar durante a VM envolve aspectos físicos, como a dificuldade de respirar e a dor, e questões emocionais, como a ansiedade e o medo. A dificuldade respiratória é percebida como uma sensação ameaçadora que provoca ansiedade e o aumento da pressão arterial, da frequência cardíaca e respiratória; são sintomas que podem inclusive prolongar e colocar em risco o processo de desmame da ventilação (Arruda, 2019).
Eu piorei mesmo foi quando eu fui entubada, eu estava sufocando, não estava conseguindo respirar, eu só tentava respirar e pensava nas minhas filhas e na minha mãe . . . pensava que não ia ver mais elas. (E2)
Teve um tempo que eu fiquei entubada, quando eu acordei, aí ali teve confusão, quando eu me acordei . . . para mim eu tinha morrido, eu não sonhei, eu me via morta, assim que eu acordei acho que fiquei delirando um pouco, só pode ter sido. (E3)
O meu problema foi acordar, acordar com aquele tubo, e a gente não tem ninguém ali, tipo família, acordei só tinha um homem, já eram duas e meia da manhã . . . era um enfermeiro, eu só falei, não, que a gente não fala, né?! Meu Deus, só meu pensamento, agoniada, o que está acontecendo? Eu não sabia o motivo deu estar ali . . . aí quando a gente acorda que vê aquela maquinazona, a gente pergunta “O que está acontecendo?” . . . Machuca, machuca assim, da hora que eu acordei só, sem poder falar, o problema é não poder falar o que tu estás sentindo. Na hora que eu acordo de noite eu me espanto, ontem eu pensei que estava na minha cama entubada. (E4)
Nota-se como o período do uso de VM colaborou para a vivência de situações ansiogênicas, devido à dificuldade do paciente em se comunicar em função da utilização do tubo orotraqueal, do distanciamento familiar e da carência de informações nesse momento. Observou-se que a impossibilidade do paciente de falar a respeito das suas necessidades e emoções e a ausência dos familiares, que frequentemente são figuras de segurança diante do desconhecido, foram mobilizadores de ansiedade. Outro fator potencializador dessa condição é o próprio ambiente da UTI (ruídos, luminosidade, alteração do sono etc.) que pode colaborar para quadros de confusão mental e delirium (Arruda, 2019).
Outro sentimento que apareceu no discurso dos entrevistados foi a tristeza devido ao distanciamento familiar e à mudança de rotina. Por meio da pesquisa feita por Gomes e Carvalho (2018), pode-se perceber que esse sentimento é frequente nos pacientes que estão na UTI. O isolamento de familiares e figuras de segurança são fonte de sofrimento psíquico, e estar afastado da rede familiar foi identificado como um dos principais geradores de estresse na UTI.
Só tristeza por não estar em casa, porque eu queria era estar em casa. (E8)
Eu me senti com muita vontade de ir pra casa, saudade, muita saudade. (E2)
Isso de olhar a minha família só uma vez no dia, só uma horinha, não dava para me consolar. (E6)
A perda de autonomia e de privacidade foi referida por alguns entrevistados como situação que repercutiu em suas emoções. Moreira e Costa (2018) trouxeram no seu estudo o quanto a experiência do banho no leito interfere na percepção de autonomia, pois compromete condições básicas de cuidado pessoal, assim como a exposição corporal torna-se inevitável, levando os pacientes a se sentirem constrangidos, com vergonha, desconfortáveis e invadidos.
Só o que me deixou um pouco constrangida foi o fato de ter que deixar os funcionários fazerem o serviço deles, que no caso é banhar a gente, é um pouco constrangedor, a gente não tem costume dessas coisas, é uma situação que tu não estás acostumada, ser banhada por um estranho. (E8)
O banho para mim era algo horrível, para mim parecia mais coisa de terror. (E1)
Sentimentos como esperança, gratidão e alegria foram mencionados pelos participantes, todos correlacionados ao processo de recuperação e cuidado assistencial. Dessa maneira, entende-se que a internação na UTI também pode ser percebida sob enfoque positivo. Nunes et al. (2017) referiram que os participantes de um estudo, do mesmo modo, relacionam o ambiente da terapia intensiva a um local de recuperação, considerando o trabalho da equipe como facilitador da diminuição dos aspectos negativos, por meio de um cuidado humanizado, dando ênfase à integralidade.
Minha primeira nomeação de emoção seria esperança, eu olhava assim, tinha uma vista bonita, olhava a difusora e eu dizia assim “Eu estou aqui porque eu tenho a esperança de buscar saúde”. (E1)
Alegria, alegria de ter conseguido chegar aqui, aqui já é um passo para eu chegar a ir para casa. (E6)
Sentimento de gratidão também, sou muito grata a todos que estavam ali, a Deus principalmente, é isso. (E2)
Os Recursos de Enfrentamento
Definem-se aqui, como recursos de enfrentamento, as estratégias utilizadas pelos sujeitos com objetivo de enfrentar as situações adversas que causam sofrimento psíquico e emocional. Essas estratégias são importantes, pois visam minimizar os efeitos negativos dessas circunstâncias geradoras de sofrimento e são meios de conduzi-las (Pereira & Branco, 2016).
Baseado nas falas dos entrevistados, observou-se que a presença e o apoio da família comparecem como uma estratégia significativa de enfrentamento diante da internação na UTI, conforme pode ser visto nos relatos “Se meu esposo não estivesse lá eu não teria conseguido, se eu não tivesse ele ali, naquela hora acordada, entubada, eu não teria conseguido.” (E4); “Foi conversando com minha mãe, que me deu um ânimo.” (E6). No período em que o paciente se encontra hospitalizado na terapia intensiva, a família representa um elo com a vida fora da UTI e pode influenciar muitas das reações do paciente. Geralmente, os familiares representam uma unidade de amparo, proteção, carinho e são fonte de incentivo à reabilitação, o que refletirá na recuperação do paciente diante desse suporte (Nogueira et al., 2017; Nunes et al., 2017; Moreira & Costa, 2018).
Diante do distanciamento do suporte psicossocial dos familiares, nota-se que a equipe pode auxiliar os pacientes neste período transitório, conforme referiram oito dos entrevistados. Moreira e Costa (2018) abordaram na sua pesquisa como a equipe multiprofissional tem potencial para reduzir os efeitos negativos da experiência do paciente. Uma postura acolhedora, empática e respeitosa possibilita a minimização do sofrimento, amenizando o medo e a solidão, tornando-se um apoio emocional.
Os técnicos, então, pessoas excelentes . . . sempre alegram, então isso aí nos passa confiança, a gente se sente à vontade, a gente se recupera mais rápido também. (E5)
O pessoal me consolou muito, os técnicos, os médicos, os enfermeiros, o médico que estava me acompanhando me deu muita força. Tinha algumas pessoas que quando eu via que estavam comigo no plantão eu ficava tranquila, pois sabia que podia contar com elas. (E6)
Um dos entrevistados mencionou sobre o suporte da equipe de psicologia como atenuante da solidão diante do cenário da UTI. O trabalho do psicólogo possibilita um espaço de acolhimento e favorece a expressão dos sentimentos em curso na UTI. Desse modo, a assistência psicológica pode auxiliar o paciente a entrar em contato com tais sentimentos e mobilizar recursos de enfrentamento diante da internação.
Assim, tipo, as psicólogas conversavam comigo [choro], isso é muito bom, porque é um lugar que você não tem nem como conversar com a pessoa do lado, e você encontrar alguém para falar, mesmo que seja um pouquinho, é bom. Em uma sala cheia de pessoas, a pessoa não tem tempo para conversar, para dar atenção pra gente, e quando elas iam, era bom, nos davam um pouquinho de atenção, mesmo que às vezes, mesmo que eu não falasse muito, porque eu não sou de ficar falando muito, mas era muito bom. (E2)
Outro aspecto que emergiu no discurso dos entrevistados e merece destaque por ser uma constante entre os depoimentos foi a manifestação da fé como recurso de enfrentamento. Gomes e Carvalho (2018) citaram que os mecanismos religiosos são utilizados pelos pacientes como uma forma de suporte diante de um momento de fragilidade emocional, perante um ambiente desconhecido, repleto de tantos estigmas e sentimento de medo, auxiliando-os na renovação da esperança na recuperação. Culturalmente, a espiritualidade faz parte do cotidiano dos brasileiros e, em uma amostra em que todos declararam ser religiosos, é compreensível que a crença em uma entidade superior compareça como significado de suporte, cura e salvação.
Cada dia que passava, Jesus estava me dando vitória, porque, quando cheguei, a esperança era pouca para mim, como eles me disseram, era muito pouca. Aí passou o dia, como que estava me sentindo? Bem. Outro dia? Bem. Aí cada dia que passava era uma vitória. (E3)
Você acredita em Deus, né?! Teve uma hora que eu pedi: “Senhor, se for para está nesse sofrimento bem aqui, não irei aguentar tanto sofrimento, pede um médico para tirar isso de mim”. Foi questão de meia hora chegou um rapaz dizendo “tira logo, ela não está precisando disso aí”, pronto, passou a agonia. (E4)
Conclusão
Pensando na perspectiva do paciente a respeito da sua vivência no contexto da UTI, observou-se que as percepções diante desse cenário se dão anteriormente ao contexto de internação, devido ao estigma que a UTI carrega, sendo vista como um lugar de morte e solidão.
O medo da morte diante de um local desconhecido, a tristeza devido ao distanciamento familiar, a perda de autonomia, a vergonha associada à falta de privacidade, a angústia perante as intercorrências presenciadas com outros pacientes, assim como a ansiedade pelo uso de VM, foram evidenciados como sentimentos presentes durante o processo de hospitalização na UTI.
Identificou-se, contudo, que, após a vivência da internação na terapia intensiva, houve modificações das percepções prévias dos pacientes, emergindo sentimentos como esperança, gratidão e alegria. Em grande parte, o novo enfoque estava relacionado à relação de cuidado estabelecida entre equipe e paciente, em que uma postura acolhedora, afetuosa e dedicada por parte dos profissionais possibilitou maior confiança na reabilitação e a minimização do sofrimento, tornando-se um apoio emocional ao paciente, assim como a concepção da UTI ser um ambiente necessário para a recuperação da saúde.
Nesse sentido, destaca-se o papel fundamental dos profissionais de saúde da UTI, visto que, em um ambiente potencializador do sofrimento psíquico e onde muitos dos estressores não podem ser alterados, uma relação de vínculo, confiança e afeto pode ser uma alternativa possível para o enfrentamento dessa vivência.
Do mesmo modo, tanto a presença e o apoio da família como a fé compareceram como estratégias significativas de enfrentamento; portanto, compete à instituição assegurar a possibilidade do acompanhamento familiar, assim como a UTI precisa ser um espaço onde exista abertura para o acolhimento da espiritualidade do paciente, visto que é fundamental um olhar acerca da dimensão totalizante do sujeito, incluindo as diversas esferas, seja física, seja emocional, social ou espiritual. Dessa forma, é imprescindível acolher as crenças e os valores espirituais do paciente, atendendo, dentro do que é possível, às suas necessidades.
A partir das questões suscitadas neste trabalho e com a riqueza dos dados evidenciados nesta pesquisa, espera-se que este possa suscitar outras pesquisas, buscando a compreensão dos fenômenos presentes na UTI e a respeito de intervenções viáveis para a formação de um ambiente mais humanizado, favorecendo a assistência integral ao paciente.
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Última revisão: 06/10/2022
Aceite final: 15/12/2022
Sobre as autoras:
Jamille Fontes Leite Botelho: Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Psicóloga especialista em Residência Multiprofissional em Saúde pelo Hospital Universitário da UFMA. Psicóloga hospitalar do Hospital dos Servidores Públicos do Estado do Maranhão. E-mail: jamillefleite@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5163-3404
Valéria Christine Albuquerque de Sá Matos: Doutora em Psicologia pela Universidad del Salvador, Argentina. Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Psicóloga especialista em Saúde Mental, Saúde da Família e Saúde Materno-Infantil pela UFMA. Psicóloga hospitalar do Hospital Universitário da UFMA, unidade Presidente Dutra. E-mail: valcasmatos@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1685-9245
1 Endereço de contato: R. Barão de Itapary, 227, Centro, São Luís, MA. CEP 65020-070. Telefone: 2109-1012. E-mail: jamillefleite@hotmail.com
doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v14i4.2020