A Emergência da Perspectiva Psicossocial para Pensar a Cis-Heteronormatividade na Identidade de Homens
The Emergence of the Psychosocial Perspective to Think about Cis-Heteronormativity in the Men’s Identities
El Surgimiento de la Perspectiva Psicosocial para Pensar la Cis-Heteronormatividad en las Identidades de los Hombres
Walter Aristóteles Oliveira Miez
Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo
Sujeitos são fruto da interlocução de processos biopsicossociais e alicerçados em relações grupais. Portanto, num processo dialógico entre o eu e o outro, o componente social e o olhar dos pares são fundamentais para construir a identidade. Realizamos uma revisão historiográfica de teorias em Psicologia Social a partir de dois manuais, com o objetivo de fundamentar a visão de sujeito psicossocial a partir de teorias e conceitos apresentados nesses materiais; reconhecer o campo que propõe a identidade como produto da negociação do sujeito com o meio; e tematizar o debate apontando estruturas cis-heteronormativas atravessando a socialização e impactando modos de se identificar. Constatamos, assim, que as conceituações de identidade se apoiam em uma trajetória que reconhece a interação entre aspectos biológicos e sociais; e, como seres sociais, nossas relações e o que apreendemos estão alicerçados em estruturas e discursos partilhados culturalmente, impactando formas de interagir e perceber-se no mundo. Concluímos que a imersão na cultura e a construção de identidade estão atravessadas por estruturas e discursos, como os que orientam a cis-heteronormatividade. Identificar essas partilhas permite reconhecer hierarquias e subverter identidades pautadas em noções estereotipadas do gênero, inventando modos mais livres de existir.
Palavras-chave: psicologia social, normas de gênero, masculinidade, identidade, homens
Abstract
People are the result of the interlocution of biopsychosocial processes and based on group relationships. Therefore, in a dialogical process between the self and the other, the social component and the perspective of peers are fundamental to building identity. We carried out a historiographical review of theories in Social Psychology based on two manuals with the aim of substantiating the view of the psychosocial subject based on theories presented in these manuals; recognize the field that proposes identity as a product of the subject’s negotiation with the environment; and thematize the debate by pointing out cis-heteronormative structures that permeate socialization and impact ways of identifying. We thus observe that the conceptualizations of identity are based on a trajectory that recognizes the interaction between biological and social aspects; and as social beings, our relationships and what we learn are based on culturally shared structures and discourses, impacting ways of interacting and perceiving ourselves in the world. We conclude that immersion in culture and the construction of identity are permeated by structures and discourses, such as those that guide cis-heteronormativity. Identifying these shares allows us to recognize hierarchies and subvert identities based on stereotypical notions of gender, inventing freer ways of existing.
Keywords: social psychology, gender norms, masculinity, identity, men
Resumen
Las personas son resultado de la interlocución de procesos biopsicosociales y basados en relaciones grupales. En un proceso dialógico entre uno mismo y el otro, el componente social y de los pares son fundamentales para la construcción de identidad. Realizamos una revisión historiográfica de teorías en Psicología Social a partir de dos manuales con el objetivo de fundamentar la visión del sujeto a partir de teorías presentadas en dichos manuales; reconocer el campo que propone la identidad como producto de la negociación del sujeto con el entorno; y tematizar el debate señalando estructuras cis-heteronormativas que permean la socialización e impactan las formas de identificación. Observamos que las conceptualizaciones de identidad se basan en una trayectoria que reconoce la interacción entre aspectos biológicos y sociales; y como seres sociales, nuestras relaciones y lo que aprendemos se basan en estructuras y discursos culturalmente compartidos, lo que impacta las formas de interactuar y percibirnos a nosotros mismos en el mundo. Concluimos que la inmersión en la cultura y la construcción de la identidad están permeadas por estructuras, como los que guían la cis-heteronormatividad. Identificar estas acciones nos permite reconocer jerarquías y subvertir identidades basadas en estereotipos de género, inventando formas libres de existir.
Palabras clave: psicología social, normas de género, masculinidad, identidad, hombres
Introdução
Na Psicologia Social, a disputa epistêmica entre perspectivas psicológicas e sociológicas criaram cisões, mas também ampliação de debates para pensar os sujeitos. É na análise da interação entre conceitos e teorias que compreendemos o sujeito para além de cognição pura ou fruto do seu meio, mas por uma perspectiva ampla, dialógica e psicossocial (Ferreira, 2010).
Afirmações como essa só são possíveis graças ao debruçar de algumas metodologias revisionais sobre campos do conhecimento. As revisões propostas por métodos historiográficos, por exemplo, potencialmente nos permitem comparar conceitos por diferentes bibliografias, analisar disputas de perspectivas e acompanhar sua evolução e aprimoramento ao longo do tempo (Barros, 2007; Pieranti, 2008).
Trabalhos nessa perspectiva metodológica são essenciais em espaços de debates sobre como se formam áreas do conhecimento e geralmente alimentam um tipo de produção escrita que chamamos manual. O uso de manuais e artigos científicos é amplamente mobilizado como recurso bibliográfico no ensino em cursos de graduação. Enquanto o primeiro sintetiza e sistematiza teorias dentro de um percurso histórico e conceitual, o segundo propõe atualizações ou ampliações das discussões articulando a debates temáticos.
Existem dois grandes manuais utilizados atualmente para o ensino de Psicologia Social no curso de graduação de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG): 1. Psicologia Social de Michener et al. (2005a) e 2. Psicologia Social: perspectivas psicológicas e sociológicas, de Álvaro e Garrido (2006). A partir desses produtos, buscamos aplicar para este trabalho um método historiográfico, revisando e comparando o percurso conceitual apresentado por cada um desses. Acreditamos que, ao comparar o modo como os dois manuais apresentam as propostas de cada teoria e as articula, é nos oferecido um panorama da evolução da Psicologia Social como área do saber. Ao compreendermos teoricamente as duas versões sobre como é formado o sujeito social, teremos um debate mais bem estabelecido para pensar e tematizar o conceito de identidade proposto por Ciampa (1987; 2002).
Assim, o presente trabalho objetiva: realizar uma revisão historiográfica de teorias a partir da revisão historiográfica de dois manuais de Psicologia Social; fundamentar a visão de sujeito psicossocial a partir das teorias e dos conceitos apresentados nos manuais; construir a ideia de identidade como produto da negociação do sujeito com o meio; e tematizar o debate mostrando como estruturas cis-heteronormativas atravessam os processos de socialização impactando a produção da identidade de homens.
Apresentar esse percurso propõe evidenciar a constante interação de processos biológicos, psíquicos e sociais, bem como de que maneira esses se alicerçam em relações grupais. Ao chegarmos ao conceito psicossocial de Identidade cunhado por Ciampa (1987; 2002), tematizaremos esse debate a partir de discussões sobre o processo formador de identidade em homens.
Uma vez evidenciado como processos psicossociais estão sedimentados em discursos e estruturas sociais fundadas na cultura, intencionamos debater também, a partir de autoras e autores estudiosos de gênero, como essa dimensão é um componente fundamental e organizador da construção de identidades de homens.
O Sujeito sob a Perspectiva Psicossocial
As experiências vividas pelo ser humano ao longo de sua imersão na cultura e socialização, ainda que sejam partilhadas, valorizadas, reproduzidas e reiteradas coletivamente, são apropriadas, significadas e negociadas de modo particular para cada sujeito.
Porém, nessa dinâmica dialógica entre os aspectos micro e macrossocial, indivíduo e sociedade, fundamentalmente necessitamos compreender a emergência do sujeito psicossocial no percurso histórico e político da Psicologia Social e como o desenvolvimento teórico do campo contribuiu para o olhar psicossocial de Ciampa (1987; 2002) sobre as dinâmicas da construção de identidades.
Para entendermos a Psicologia Social em sua pluralidade e multiplicidade de abordagens teóricas, devemos retomar as principais tendências que marcaram a evolução do campo. Assim, Ferreira (2010) nos coloca que, ainda que houvesse dificuldade na delimitação do seu objeto de estudo da Psicologia Social, a relação que os indivíduos mantêm entre si e com a sua sociedade ou cultura era o cerne da discussão entre os psicólogos e as psicólogas da área.
Deparamo-nos, então, com a existência de duas modalidades de Psicologia Social: a Psicologia Social Psicológica, ocupada em explicar processos internos do indivíduo, e a Psicologia Social Sociológica, ocupada em compreender as dinâmicas sociais às quais esse estava submetido.
Como nos conta Ferreira (2010), ainda que os estudos das dinâmicas psíquicas e sociais tenham se dado ao longo do campo da Psicologia Social como processos distintos, isso acontece apenas para fins didáticos. De certo, esses processos estão articulados, indissociados e construídos por vias da interseccionalidade.
A observância do sujeito por lentes psicossociais não é apresentada de pronto nos primeiros estudos propostos pela Psicologia Social. O campo passou por transformações significativas em seus pressupostos, caminhando por reflexões que entendiam o homem a partir de dinâmicas psicológicas (Psicologia Social Americana) e a partir de dinâmicas sociológicas (Psicologia Social Europeia). Só com a crise de relevância da Psicologia Social e a emergência da Psicologia Social Crítica que pudemos reconhecê-lo numa dinâmica psicossocial, modificado e modificador dos processos culturais nos quais está inserido, reverberando num refinamento do conceito de identidade (Ferreira, 2010).
Elaborar uma revisão historiográfica de conceitos e teorias em Psicologia Social para pensar Identidade é um desafio significativo, por determinar que pesquisadores elenquem o campo de rastreio, os elementos de análise relevantes e reconheçam vínculos entre os elementos selecionados, permitindo, então, que a costura se estabeleça (Barros, 2007; Pieranti, 2008).
Para a realização desta revisão, buscamos dois manuais de Psicologia Social referência para os estudos sobre o campo no curso de Psicologia da UFMG: 1. Psicologia Social dos sociólogos estadunidenses Michener et al. (2005a) e 2. A Psicologia Social Atual dos psicólogos europeus Álvaro e Garrido (2006).
Tomando por base as orientações de Barros (2007) e Pieranti (2008), os manuais foram revisados atentando à ordem e ao aprofundamento do debate relacionado ao campo científico, para que fosse possível entender as especificidades de cada um na apresentação dos conceitos e das teorias em Psicologia Social. A partir desta revisão, foi possível construir uma filtragem de conceitos e teorias que contribuíam diretamente para os debates sobre a construção da subjetividade de sujeitos e a consolidação de sua identidade sob a perspectiva psicossocial.
Comparando as teorias apresentadas cronologicamente pelos manuais e acompanhando a relação entre os conceitos elencados e o nível de aprofundamento dos debates sobre a fundamentação das perspectivas, pudemos estabelecer uma linha organizadora da sedimentação do conhecimento sobre o campo (Barros, 2007; Pieranti, 2008).
Na revisão historiográfica dos manuais, pudemos notar que os conceitos não estão apresentados de maneira cronológica, mas pelo estilo de narrativa de cada grupo de autores. Ainda que em nossa revisão consideremos o momento histórico das produções, não desenvolvemos a discussão em um percurso cronológico, mas a partir da construção do debate sobre a emergência de elementos que puderam contribuir para a compreensão do sujeito sob uma perspectiva psicossocial.
Em nossa revisão, foi possível identificar que, apesar de não ter havido diferenciação nos conceitos e nas teorias elencadas para a elaboração de um manual em Psicologia Social, notavelmente o produto elaborado pelo autor e pela autora psicólogos espanhóis dedica-se muito mais à apresentação da perspectiva que nos permite conhecer o desenvolvimento do campo de conhecimento, enquanto o manual produzido pelos sociólogos estadunidenses é mais atento à apresentação didática de teorias do campo. Ainda assim, pela convergência dos dois foi possível uma costura que faz notar a sofisticação e ampliação dos debates para a emergência da perspectiva psicossocial.
Desenvolvemos um caminho pelo qual alinhavamos conceitos para a compreensão de sujeito e a consolidação de sua identidade sob a perspectiva psicossocial. Assim, resgatamos um percurso historiográfico atravessando os seguintes conceitos e teorias: percepção social, estereótipo, atitudes, atribuição causal, identidade social, categorização, relações grupais.
Iniciando a proposta, partimos da ascensão do cognitivismo no campo da Psicologia Social Psicológica, a partir de Fritz Heider. No texto Psicologia das Relações Interpessoais – A percepção de outra pessoa (1958), o autor propõe que perceber é o movimento de tomar conhecimento do mundo (coisas, pessoas, acontecimentos). A partir desse movimento, podemos atribuir e antecipar causas internas (influência da habilidade ou da personalidade de cada sujeito) ou externas (influência do ambiente) ao comportamento do outro.
Heider (1958) compreende que a percepção social é transpassada pela apreensão do ambiente físico, pela interação com o objeto observado e pelo repertório de vivências do observador, influenciando em processos responsáveis pelos julgamentos sociais.
A percepção social é passível de generalização para outras situações vividas por uma mesma pessoa ou para outras pessoas dentro de um mesmo grupo. Tendemos, portanto, a criar esquemas de percepção de modo a haver uma coerência entre o que é percebido e nossa forma de perceber o mundo (Heider, 1958).
Assim, lemos o outro a partir do nosso repertório de processos psicológicos, estabelecendo um padrão coerente entre o que percebemos e inferimos, significando, inclusive, as nossas impressões a partir de características atribuídas a outra pessoa que interage com quem percebemos e inferindo pensamentos e sentimentos a partir do que o objeto diz ou de sua maneira de dizer.
Portanto, tendemos a perceber por uma lógica que privilegia nossos esquemas familiares e exclui as informações que não se ajustam a isso. A percepção tende para uma representação coerente do mundo, e os sentidos são fundamentais como esses fatores organizadores. O mundo que percebemos precisa ser coerente, e, ainda que nossos julgamentos possam ser errôneos, tendemos a eliminar as redundâncias, para codificar as informações de forma mais econômica (Heider, 1958).
No manual Psicologia Social, Michener et al. (2005a) apresentam o conceito de estereótipo como uma ou mais características atribuídas a todos os integrantes de um grupo específico. Esse é criado a partir da experiência direta com o dado grupo, da forte presença desses integrantes em determinados papéis sociais e pelas partilhas grupais. Assim, os estereótipos funcionam como ferramentas de organização que, a partir de supergeneralizações, possibilitam a construção de inferências sobre um grupo.
Contudo, os autores apontam tropeços comuns nesse processo, como a ideia de perfeita semelhança entre os componentes de um mesmo grupo e perfeita discordância entre membros de grupos distintos (Michener et al., 2005a).
Michener et al., (2005b), ao tratarem do conceito de atitudes, apresentam-no como um estado mental de predisposição anterior à ação, uma guia para que ela aconteça.
Sendo, então, uma tendência para responder a algo, as atitudes impactam na atenção e no comportamento e se constituem a partir de três componentes: crenças (conhecimento sobre algo), sentimentos (emoção diante de algo) e ações (tendência a comportar-se de forma específica diante de algo). Contudo, ainda que se refiram ao mesmo fenômeno/objeto, isso não implica numa coerência entre eles (Michener et al., 2005b).
Michener et al. (2005b) destacam que a formação das atitudes se dão numa dinâmica social de aprendizagem e socialização, como condicionamentos (contato com o fenômeno/objeto), interação com os pares (observações, partilhas, incentivos, coerções, punições) e mídia (apreensão de conteúdos disseminados nos meios de comunicação).
A partir dessa função cognitiva, alinhamos objetos que nos recompensam a atitudes favoráveis e o contrário a atitudes desfavoráveis; norteamos nosso comportamento e atribuímos significado ao ambiente; construímos nossa autoimagem (Michener et al., 2005b).
Hewstone (1992), ao fazer uma análise da Teoria de Atribuição Causal proposta por Heider, explicita a nossa tendência a explicar comportamentos não apenas pela coerência com o nosso repertório individual, mas também pelas nossas relações grupais, valorizando aspectos endogrupo em detrimento do exogrupo, conforme propôs Tajfel (1982). O grupo, portanto, pode ser definido a partir de critérios internos e externos – o primeiro deriva da autoidentificação dos membros do grupo e o segundo a partir de uma nomeação externa por não componentes desse grupo.
. . . o grupo apresenta para Tajfel três componentes: cognitivo – consciência da pertença ao grupo, avaliativo – a noção de pertença ao grupo pode apresentar uma conotação positiva ou negativa e emotivo – os aspectos cognitivos e avaliativos de pertença ao grupo podem ser acompanhados de emoções (por exemplo, amor, ódio, gostar ou não gostar) (Miranda, 1998, p. 600).
Hewstone (1992) apresenta, a partir da teorização de Tajfel, a articulação entre processos de dimensão interna, cognitiva e individual e de dimensão externa, social e coletiva, reconhecendo que os processos de atribuição causal e as relações intergrupais embasam a reprodução de ideologias, conflitos e hierarquias sociais.
No manual Psicologia Social: perspectivas psicológicas e sociológicas, Álvaro e Garrido (2006) desenvolvem um capítulo tratando das dinâmicas internas e externas arroladas à relação intergrupal. Notamos aí que, ainda que o conceito de Identidade Social proposto por Tajfel tenha sido desenvolvido sob uma perspectiva sociológica, pensando a identidade a partir das interações intergrupos, ensaia-se o início de um pensamento psicossocial.
Para Tajfel (1981, p. 290), a identidade social é entendida como a “parcela do autoconceito de um indivíduo que deriva do seu conhecimento de sua pertença a um grupo (ou grupos) social, juntamente com o significado emocional e de valor associado àquela pertença”.
A categorização é uma função cognitiva de modo a obter coerência na compreensão do fluxo de acontecimentos de forma a simplificar as informações advindas do mundo externo e preservando a nossa integridade. Assim, a percepção do mundo exterior consiste na captação das informações a partir dos nossos sentidos e sua organização interna ativa. Portanto, à medida que realizamos esse processo de categorização, simplificamos as informações externas a nós e economizamos esforços do nosso sistema cognitivo (Álvaro & Garrido, 2006).
O estereótipo é, portanto, resultado de um processo de categorização no qual se compartilha a crença que determinadas características são próprias de um grupo social. Assim, durante nosso processo de socialização, a categorização promove um destaque às diferenças intergrupais e um acobertamento das diferenças intragrupais. Contudo, ainda que as categorias sociais sejam fruto de um longo processo histórico e que, para haver estereotipificação, é preciso haver partilha social, Álvaro e Garrido (2006) destacam que, mesmo que assimilemos os valores e as normas sociais da cultura, a forma como isso se dá é diferente para cada sujeito, demarcando a dinâmica interna dos processos sociais.
Assim, somos autores parte dessa dinâmica e construímos nossa identidade social estabelecendo pertenças e comparações entre grupos e membros de um mesmo grupo. A partir dessa lógica, o sujeito tece críticas sobre si e seu grupo, averiguando se esse contribui positivamente para sua identidade (Álvaro & Garrido, 2006).
Segundo Tajfel (1981), tendemos a favorecer o nosso grupo em detrimento dos demais como processo de afirmação da própria identidade. Na relação intergrupal, quanto mais flexíveis percebemos as fronteiras endogrupo/exogrupo, mais tendemos a compreender as vivências dos sujeitos e nos relacionar com eles de modo interpessoal. Contudo, quando essas fronteiras são percebidas como rígidas e imutáveis, tendemos a nos relacionar de maneira mais estanque e intergrupal (nós x eles).
Tajfel expõe que, por vezes, nós nos submetemos a um processo de desfavorecimento de outro grupo para fins de fortalecimento do seu próprio grupo; assim, “a melhora da posição do grupo e o fortalecimento da afiliação ao grupo por parte de seus membros que dela resulta, às vezes se consegue à custa de utilizar a capacidade do grupo para manter o outro em situação de desvantagem” (Tajfel, 1982, p. 168).
A revisão historiográfica realizada nos permitiu compreender que a Psicologia Social foi pensada e teorizada a partir de contribuições diretas de profissionais de outros campos, como da Sociologia e da Filosofia. Notamos também que, apesar das tendências, não há exclusividade de que produções estadunidenses serão de tendência mais cognitivista ou que europeias serão de tendência mais sociológica.
Ainda assim, em ambos é factível o entendimento que processos psicossociais conjugam eventos internos e externos, micro e macrossociais simultaneamente. Dessa forma, é possível inferir que tais processos não se restringem a interações entre pequenos grupos, mas se deslocam alcançando níveis de interferência ampliados, como organizações, instituições e estruturas sociais.
Estamos entendidos de que o campo político impacta e influencia articulações teóricas em Psicologia Social. Partindo dessa compreensão, chegamos ao ponto de costurar essa trama teórica a um novo momento de produção intelectual, indo desde a crise da psicologia social brasileira até a conceituação de identidade para Ciampa (1987; 2002).
Como nos afirma Ferreira (2010), a Psicologia Social sofreu outros desdobramentos a partir de contribuições do marxismo, do pós-modernismo e do feminismo. Isso instiga o campo não apenas a um posicionamento mais crítico diante de dinâmicas sociais, como mobiliza que propostas teóricas sejam articuladas a debates temáticos como gênero e sexualidade.
Silvia Lane (1984) nos aponta que, na década de 1960, a Psicologia Social passou a ser questionada em sua relevância, até corporificar-se, em 1979, a proposta de uma Psicologia Social com bases na metodologia marxista, o materialismo histórico e a lógica dialética.
O homem passou, então, a ser percebido como cultura, parte e influenciador de uma superestrutura sócio-histórica e que o caráter descritivo das relações causais é insuficiente para a compreensão de como apreendemos determinados objetos como reforços e outros como punição (Lane, 1984).
Como nos explicita Miranda (1993), as ciências humanas entendem o homem como início e fim das suas investigações; assim, diante de sua complexidade diversa, esse não é passível de ser categorizado em fragmentos. Está na esfera do humano definir-se, significar-se e objetivar-se a partir das relações sociais. Portanto, ao compreender que indivíduo e sociedade se determinam mutuamente, é estabelecido o elo que os torna articuláveis. Assim, quando nos propomos a compreender o homem, devemos nos comprometer com as dinâmicas que ele impacta e nas quais está implicado.
Segundo Martin-Baró (1983, p. 380), citado por Miranda (1993):
Preocupa-nos o homem social, concreto, “sintese de múltiplas determinações”, enquanto indivíduo que cria a história ao mesmo tempo em que é por ela determinado; expressão tanto das características peculiares que o individualizam (dados de sua biografia) bem como das forças sociais que caracterizam suas relações sociais. Tais aspectos (individuais/sociais) materializam-se nos marcos de uma sociedade concreta, o que implica necessariamente uma concepção integral que considere o homem e o mundo na sua relação recíproca.
Embebidos das discussões que aconteciam na América Latina, Silvia Lane e Vanderley Codo (1984) marcam a ruptura brasileira com a tradição pragmática estadunidense e com a sociologia e filosofia europeia a partir da organização da obra Psicologia Social: o Homem em Movimento.
Silvia Lane inicia seu texto A Psicologia Social e uma nova concepção de homem para a Psicologia (1984) citando o alerta de Lucien Goldmann (1947) para que desacreditemos em uma ação humana que não seja articulada por um grupo. Ele nos orienta que, ainda que sejamos conduzidos a ler os processos coletivos como uma somatória de individualidades distintas e não articuláveis umas às outras, o “nós” é quase sempre o sujeito de nossas ações.
Com essa brecha, Lane (1984) apresenta o fio condutor que norteará sua crítica ao que foi feito da Psicologia Social até o momento. Assim, são tecidas fortes críticas ao modo operante da perspectiva estadunidense, que, ao debruçar-se sob os aspectos intrapsíquicos, analisava as questões relacionadas ao humano exclusivamente a partir do domínio interno. Desse modo, a Psicologia Social Psicológica negligenciava as relações grupais, minimizando seus conflitos, demarcando o interesse político na produtividade pós-Segunda Guerra Mundial.
A autora também não se furtou de tecer críticas à perspectiva europeia, a qual, apesar de sua tradição filosófica, é lida por Lane (1984) como excessivamente positivista e comprometida com modelos científicos abrangentes e genéricos, distanciando-se do homem em si. Compreender o domínio social era uma preocupação da Psicologia Social Sociológica, em especial porque o período pós-Segunda Guerra Mundial influencia uma produção científica implicada em evitar novos conflitos dessa proporção.
Para Lane (1984), a objetividade e a totalidade fizeram com que a perspectiva europeia perdesse o homem como agente de mudança e protagonista da própria história. Ao pensar ideologias como produto histórico, desconsideraram que essas se articulavam aos demais saberes, transformavam os atores que a sustentavam, modificando-as, assim, ao longo da história. Ao resgatar o subjetivismo como materialidade psicológica, permitiu-se uma discussão que percebesse o ser humano em realidade e especificidade, bem como as relações e os vínculos sociais estabelecidos.
Assim, à América Latina não eram suficientes os saberes coloniais propostos pelo pragmatismo estadunidense ou pelo distanciamento europeu. A chamada Crise da Psicologia Social convidou os teóricos latino-americanos a pensarem uma Psicologia Social devidamente implicada e congruente com a nossa realidade: dinâmicas e desafios. Desta forma, houve uma reconstrução não só das lentes de análise da Psicologia Social, agora, crítica, mas também dos lugares de pesquisador e pesquisado, menos preocupados com a produção de uma ciência neutra. Entendeu-se, por conseguinte, que pesquisador é afetado pela sua pesquisa e vice-versa, não havendo produção científica que não modifique quem nela se insere, e não havendo quem não leve um pouco de si para o campo a se pesquisar (Lane, 1984).
Diferentemente de Tajfel, Lane (1984) não propõe a dicotomia indivíduo x grupo, pois percebe o ser como inserido em relações grupais antes mesmo do seu nascimento e que este constituirá sua linguagem a partir desses códigos produzidos socialmente. Indivíduo e sociedade estariam articulados, portanto, pela atividade e pelo fazer social.
A atividade, conceito proposto por Lane (1984), seriam ações, orientadas pela linguagem e pelo pensamento, realizadas por nós a fim de satisfazer uma necessidade comum. Contudo, a atividade é mediada ideologicamente pelas instituições sociais, partindo de representações sociais do que é adequado, correto e desejável, bem como o patriarcado e a cis-heteronormatividade reverberam na construção das categorias gênero e sexualidade.
Portanto, as contradições e hierarquias calcadas em processos sócio-históricos só podem ser rompidas a partir da consciência do propósito e do impacto dessas mediações, e essa desigualdade deve ser percebida como diferenças produzidas para projetos de poder.
Antes de chegarmos ao debate proposto por Ciampa (1987; 2002), para pensarmos identidade é preciso diferenciá-la de outros conceitos que não se apresentavam nos manuais revisados.
Silva (2009), ao pensar os conceitos de subjetividade, individualidade, personalidade e identidade, não os trata como sinônimos, e sim tece considerações em relação ao caráter histórico e processual que os diferencia.
. . . subjetividade se refere ao processo de apropriação da realidade objetiva, sendo processo básico para a constituição e compreensão do psiquismo, enquanto a individualidade é a herança biológica de toda pessoa, que é a base para o processo de subjetivação e construção de todo o psiquismo . . . Já a personalidade se refere à complexificação da individualidade de forma superior, cuja base é a individualidade, sendo a gênese e o desenvolvimento histórico-sociais “o tecido” que possibilita seu desenvolvimento (além da atividade e da consciência, que são as outras categorias centrais, junto com a personalidade, para a compreensão do psiquismo) (Silva, 2009, p. 176).
Assim, a subjetividade é entendida como constituinte da singularidade de cada um, “aquilo que diz respeito ao indivíduo, ao psiquismo ou a sua formação, ou seja, algo que é interno, numa relação dialética com a objetividade, que se refere ao que é externo” (Silva, 2009, p. 170). Citando Vigotski (1995), ela propõe o psiquismo fruto de uma dinâmica psicossocial, dialogando processos internos e externos, dado que a gênese do caráter singular da subjetividade está em como a pessoa apropria (ou subjetiva) de forma única suas relações sociais.
Silva (2009) arremata sua análise ao apontar que a personalidade também a apresenta em uma perspectiva psicossocial apontando essa como uma interlocução interdependente entre o endopsiquismo, abarcando as funções psicológicas superiores, e exopsiquismo, abarcando as experiências de vida. Ou seja, a dimensão biológica se articula à social para compor o que se entende também por personalidade.
Em substituição aos debates que pensavam a personalidade, chegamos a uma nova perspectiva para entender o sujeito. Proposta por Ciampa em 1987 e atualizada nos anos seguintes, a identidade é conceituada trazendo uma percepção dinâmica e crítica do eu social, que acontece em um fazer contínuo, metamórfico e interessado na promoção de bem-estar, reconhecimento e emancipação do sujeito (Ciampa, 1987; 2002).
Assim, essa ideia de identidade nos apresenta o sujeito como aquele que existe sob e a partir do olhar do outro, porém existir socialmente não é só retroalimentar, mas também divergir e recriar códigos e modos de ser nessa cultura. Ser socializado não diz respeito a um processo passivo, mas de ativo gerenciamento e negociação com essas estruturas e símbolos que atravessam nossas interações e existência (Ciampa, 1987; 2002).
Importante lembrarmos aqui que esse protagonismo diz respeito ao fazer do sujeito, mas não desimplica necessariamente nas influências e estruturas que operam organizando signos, códigos, modos de ser e expectativas sociais.
Ciampa foi orientando e parte do grupo de pesquisas e estudo coordenado por Silvia Lane, no Programa de Estudos Pós-Graduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), cujo objetivo era acompanhar e elaborar teorias psicológicas que fossem críticas à realidade social, sob uma perspectiva sócio-histórica. O termo personalidade foi abandonado pelo grupo porque o consideravam individualizante e a-histórico, negligenciando as interferências do meio social (Silva, 2009).
Tendo por bases as filosofias de Hegel e Bosi e o teatro de Stanislaviski, Ciampa (1987) conceitua identidade como um processo metamórfico de acordo com as condições históricas e sociais às quais estamos submetidos.
O conteúdo que surgirá dessa metamorfose deve subordinar-se ao interesse da razão e decorrer da interpretação que façamos do que merece ser vivido. Isso é busca de significado, é invenção de sentido. É autoprodução do homem. É vida (pp. 241–242).
Ciampa (1987) reconhece que os vários papéis que representamos ao mesmo tempo ao longo da vida constituem a nossa identidade, sendo posta e reposta continuamente num diálogo entre a identidade pressuposta (idealizações próprias ou do outro sobre o desempenho daquele papel), a vivida e a que projetamos viver.
Para o autor (1987), o estudo da identidade deve se dar a partir da narrativa, pois assim acessamos elementos que são conscientes: sentidos e significados, ainda que reconheça a existência de elementos inconscientes também envolvidos na metamorfose.
Contudo, os processos de identificação e diferenciação têm implicações sociais e fomentam hierarquizações, lógicas de poder e desigualdades. Assim, Silva (2011) nos propõe identidade e diferença como processos politicamente e socialmente produzidos. Para o autor, seu rompimento deve ser estimulado de modo a subverter, transgredir e apontar o caráter artificial e construído das identidades.
Notamos, assim, que o processo de percepção de pessoas, de desenvolvimento de atitudes, de categorização, de estereotipificação, de relações entre grupos, de identificação e diferenciação são processos orgânicos para facilitar o nosso processo de socialização e organização cognitiva. Contudo, percebemos também que o que entendemos como desejável socialmente, os signos e as referências dentro da nossa cultura são transmitidos e reproduzidos na interação com nossos pares a fim da manutenção de valorações, lógicas hierárquicas, privilégios e projetos de poder e controle.
O perigoso é que, ao introjetarmos esses elementos, naturalizamos todos os processos construídos socialmente e apagamos as dimensões sócio-históricas que sustentam estruturas, lógicas de poder, não desenvolvendo, assim, a devida criticidade de seus impactos sociais.
Como nos apresenta Camino e Ismael (2004), a Psicologia é um campo de lutas com avanços e recuos na construção da cidadania, fomentando processos de exclusão e inclusão social. Porém, essa deve estar intimamente comprometida com o desenvolvimento da inclusão social, deixando claras as intenções do saber que constrói.
Assim, devemos atentar às teorizações da Psicologia e os elementos apreendidos pelo senso comum constantemente naturalizados, generalizados e pensados sem problematizar as implicações sociais dessas, produzindo consequências políticas (Camino & Ismael, 2004).
A revisão desse percurso teórico-conceitual nos permitiu compreender, em suma, dois importantes aspectos do sujeito sob a perspectiva psicossocial: 1. as conceituações de identidade que utilizamos hoje se apoiam em um percurso que não dissocia, mas reconhece a interação entre aspectos biológicos e sociais, bem como micro e macrossociais; 2. como seres sociais, nossas relações e o que apreendemos por elas estão alicerçados em discursos e lógicas partilhados e reiterados culturalmente, impactando formas de interagir e perceber-se no mundo.
Estamos entendidos dos impactos do campo político em interações grupais, marcadores culturais e na produção de conhecimento no campo da Psicologia Social. Assim, a fim de exemplificar esse arranjo, nós nos propomos a articular o debate mobilizado aqui às teorizações de gênero, mais especificamente para pensarmos a construção de identidades de homens nessa cultura.
2 Pensando a Cis-heteronormatividade na Construção da Identidade de Homens
A trajetória histórica e política da Psicologia Social e de suas teorizações trazidas no tópico anterior nos oferece um referencial significativo para dar seguimento a debates nos estudos de gênero.
Retomar as interações entre influências biológicas e grupais na construção psicossocial da identidade é também reconhecer que essas construções acontecem num campo repleto de discursos sobre como se comportar na cultura, como propõe a cis-heteronormatividade (Toneli & Becker; 2010).
As expectativas de gênero e os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres são sustentados por uma matriz reguladora do gênero e da sexualidade chamada cis-heteronormatividade. Essa é camuflada de discursos que atribuem seus protocolos à defesa da natureza humana e nos é apresentada por meio de códigos e símbolos partilhados na cultura (Butler, 2003; Scott, 1990).
A cultura é um sistema simbólico que se dá pela apreensão de uma série de elementos a serem significados num dado tempo e espaço, partilhados e ensinados por grupos nos quais estamos inseridos.
Como nos aponta Geertz (1989), práticas, rituais, costumes partilhados socialmente estão em constante transformação e não são de pronto passíveis de generalização para outras culturas, por se tratar de uma dinâmica própria e localizada, ainda que possa se repetir. Portanto, o nosso fazer social está ligado à partilha grupal e é na experiência que aprendemos socialmente a fazer.
Assim, é a partir do processo de experimentação e significação do mundo e das relações sociais que comunidades constroem saberes, expressões culturais e modos de vida, reverberando no processo de construção identitária dos seus membros (Jovchelovitch, 2008).
As dinâmicas culturais devem ser compreendidas a partir de seu lugar no tempo, no espaço e considerando as relações grupais e disputas por versões num dado momento histórico. É esse olhar contextualizado que nos permite analisar a conjuntura em que grupos se inscrevem e como arranjam categorias tão essenciais para a organização social, como o gênero (Jodelet, 1998).
Signos, códigos e protocolos sociais interferem em modos como a cognição opera e reconhece elementos da cultura, na influência das relações com os pares para a construção de percepções sobre si, bem como na negociação para incorporação ou rechaço desses elementos, apresentados por grupos e estruturas sociais, na composição identitária de sujeitos (Jovchelovitch, 2008).
A economia cognitiva da ideia e a abdicação de comprovação metodológica que justifique o saber produzido no senso comum apaga o seu caráter de construção (Geertz, 1989). Dessa forma, a naturalização de construções sociais no senso comum vai pautar noções do que é certo/errado sem ponderar que dinâmicas e interesses sustentam esses saberes. A leitura que fazemos do papel socialmente atribuído a homens e mulheres muitas vezes não é questionada, mas replicada e estimulada nas relações sociais. Ainda que diferenciações a partir do gênero sustentem hierarquias e relações de poder, essas são naturalizadas no senso comum (Butler, 2003; Scott, 1990).
A matriz cis-heteronormativa é baseada nas diferenças percebidas entre os sexos e significada de modo a sustentar hierarquias de poder. Ideais de masculinidade e feminilidade, ainda que possam ser flexibilizados e vividos de maneiras diferentes a depender de cada microcultura, são construídos tomando por base produtos estanques ancorados nessa matriz. Assim, para ser humanizado e inteligível, sujeitos precisam se organizar socialmente a partir de dicotomias, tais como: masculino/feminino; ativo/passivo; mente/corpo; público/privado (Butler, 2003; Scott, 1990).
É importante reconhecer que tal matriz impacta e organiza não apenas o gênero, mas todas as leituras sociais que são costuradas por essa dimensão, reverberando sobre questões de classe e raça, por exemplo.
A cis-heteronormatividade propõe um lugar de privilégio, controle e dominação a homens que performam a masculinidade hegemônica e punição para aqueles que não a performam. E, mesmo que existam variações e especificidades a depender de cada subjetividade e microcultura, de modo geral, exigências são feitas para a identificação do masculino. Para ser reconhecido socialmente como homem, os grupos demandam que sujeitos busquem conquistar espaços de poder, atentem à rigidez do corpo e se afastem de elementos entendidos como femininos (Connel & Messerschmidt, 2013; Lattanzio, 2011; Trindade & Nascimento, 2004).
Essa lógica não só valida uma série de violências, como dá forma e legitima inúmeras práticas socioculturais de fim regulatório, como o processo de generificação e cis-heterossexualização de sujeitos a partir de ideais estereotipados de masculinidade e feminilidade (Butler, 2003; Scott, 1990).
A socialização de homens e seu processo de masculinização na cultura ocidental se dá a partir de ensinamentos que atravessam gerações e que incidem sobre formas de ser, pensar e se comportar a partir de expectativas de gênero. Dessa forma, ainda que hajam pluralidades nas identidades masculinas, corpos, identidades e interações estão fundadas em construções sociais a partir do ideal de homem nessa cultura (Connel & Messerschmidt, 2013).
Sujeitos são orientados de maneira coercitiva a cumprir normas que fixam ideais de gênero. Esses acabam por se dar numa socialização repleta de práticas discursivas que vão nos ensinar formas supostamente corretas de se comportar, tomando como ponto de partida o sexo biológico. É oferecida, assim, uma ilusão de coerência entre o natural e o social à medida que se emparelham a identidade social e o desejo do sujeito (Butler, 2003; Maherie, 2002).
Essa articulação buscaria tanto garantir o controle e a submissão de sujeitos rendidos a essa orientação quanto o devido mapeamento e punição de possíveis tentativas de subversão. Dessa forma, cumpre-se o propósito de apreensão, replicação e manutenção das prescrições orientadoras da masculinização (Connel & Messerschmidt, 2013).
Para Butler (2003), existe uma relação direta entre a norma, a formação e orientação das ações, assim como a normalização desse modelo promove e sustenta convites e coerções sociais. A norma é paradoxal à medida que funciona tanto para o reconhecimento e construção de laços sociais como para a exclusão de corpos que não correspondem a determinadas regras, princípios e padrões compartilhados socialmente. A norma apresenta-se em um modelo criado a partir da compreensão social de determinado fenômeno, e este modelo se sustenta por um discurso que o coloca em posição de hegemonia em relação aos demais. Deste modo, a norma faz com que sujeitos se submetam à matriz cis-heteronormativa e é somente quando elas partilham esses signos que são reconhecidas como sujeitos.
Rios (2011) e Toneli e Becker (2010) observam esse processo político na experiência pessoal ao mencionar que as lógicas de poder e hierarquização que atravessam os sujeitos são colocadas pré-discursivamente e acabam por impactar na construção de suas subjetividades. É por meio de exercícios de poder que se produz o sofrimento psíquico à medida que inúmeras possibilidades de ser são desqualificadas e que a naturalização das diferenças sexuais apaga o caráter de produção dessas identidades.
Os códigos postos pela matriz cis-heteronormativa são anteriores à subjetividade, pensados no e pelo discurso, codificados, institucionalizados e transformados em lei, privando sujeitos da liberdade de outros possíveis, para além de uma padronização estereotipada (Butler, 2003).
Fanon (2008), ao discutir os processos simbólicos que atravessam a constituição de identidades negras, sinaliza o quanto a adoção de comportamentos postos por uma maioria dominante interfere em processos de construção identitária.
Sujeitos tendem a adotar e repetir signos postos pela hegemonia porque são ensinados e estimulados pelos seus pares. Esses códigos, além de serem partilhados socialmente como modos bons ou mais corretos de se viver, seduzem a partir da ideia de que assim os sujeitos serão mais aceitos, humanizados e protegidos de violências.
Fanon (2008), ao sinalizar o efeito da violência racial e colonial na subjetividade de pessoas negras, oferece-nos campo para entender também estruturas violentas pautadas no gênero. Sujeitos, na busca por inteligibilidade e por escapar de violências, tentam performar a masculinidade hegemônica. Esse, ainda que seja um ideal inalcançável, orienta a construção de corpos e identidades a partir do enaltecimento de uma referência estereotipada de masculino, replicada e estimulada a partir de interações sociais e pela apreensão da cultura.
Como dissemos anteriormente, a conceituação de identidade proposta por Ciampa (1987; 2002) nos possibilita entender essa dimensão como construída de maneira dialógica e em constante negociação entre as dimensões micro e macrossociais. A partir dessa percepção de identidade, entendemos que é na interação com seus pares que sujeitos se reconhecem e são reconhecidos. Contudo, entendemos também que é na cultura que se estabelecem os códigos para que sujeitos se entendam partilhando ou não elementos que os farão se identificar e serem identificados pelos seus.
Os códigos em uma cultura possibilitam o entendimento e rastreio de elementos entendidos como masculinos. A partir disso, sujeitos inseridos nessa cultura serão ensinados a pensar, perceber-se, perceber os pares do modo que é esperado que homens o façam. Essa estrutura é pensada para se garantir os privilégios masculinos e a organização social pautada no gênero, propostos para uma sociedade sustentada em uma matriz cis-heteronormativa.
Isso não significa que sujeitos socializados como homens estão fadados a portar-se e entender o mundo como tal. Ainda que a construção da identidade de homens se dê por vias pautadas na cis-heteronormatividade e na masculinidade hegemônica, sujeitos também são capazes de negociar com o meio social (Connel & Messerschmidt, 2013).
Segundo Ciampa (1987), é por meio dos processos relacionais e biográficos que o sujeito é analisado pelo outro, constrói e conta sua própria história. A identidade se constrói na relação e sob o olhar do outro. Porém, ainda que a identidade dê a ideia de movimento, o enrijecimento dessa se dá à medida que, no processo de socialização, os sujeitos elegem atividades e constroem memórias e representações de si.
Para o autor (1987; 2002), a identidade está em constante transformação e detém aspectos sociais e intrapsíquicos em sua composição, como a história de vida, o contexto em que se vive e seus planos. Segundo ele, para a construção identitária, é preciso a existência de personagens previamente padronizados culturalmente, como as referências estereotipadas da masculinidade hegemônica. Porém, cada sujeito incorpora as personagens a sua forma, e isso garante o caráter diverso da produção identitária, sinalizando a inventividade do sujeito e as possibilidades de negociação desse com o meio social.
Assim, a identidade de homens é desenhada e redesenhada ao reconhecer o que se perde e o que se ganha ao incorporar ou rechaçar elementos postos pelos pares e pela estrutura social. A identidade, por mais que se organize a partir de elementos postos pré-discursivamente, intenciona a emancipação do sujeito, alinhando-se a elementos que o signifiquem e orientem para sua sustentação no mundo (Ciampa, 2002).
Homens que entendem os códigos postos pela cis-heteronormatividade potencialmente podem desenvolver criticidade, maior negociação com o meio e construir outros estilos de masculinidade, para além das referenciadas em perseguir a masculinidade hegemônica.
É essencial que sujeitos entendam impactos de estruturas e moldes culturais em suas formas de ser, perceber e transformar o mundo. É dessa maneira que podemos denunciar processos de violência e exclusão, compreender sua incorporação ou negação de símbolos e lógicas atribuídas pelo seu grupo e a negociação desses elementos para a construção de uma identidade mais emancipada e alinhada ao seu reconhecimento de si.
Considerações Finais
A trajetória da Psicologia Social nos apresenta que somos a interlocução de processos biológicos, psíquicos e sociais, nós nos constituímos e somos constituídos por relações grupais. Dessa forma, num processo dialógico entre o eu e o outro, o componente social e o olhar dos nossos pares são fundamentais à metamorfose que constrói e reconstrói nossa identidade.
Reconhecemos que a revisão historiográfica realizada pode ter uma análise restrita, posto que nos debruçamos apenas sobre dois manuais de Psicologia Social, reduzindo o material disponível para avaliação.
Contudo, pelo todo exposto, a relevância deste trabalho segue se dando por três motivos: 1. pela apresentação da retomada histórica que nos permite entender como a ideia de sujeito sob a perspectiva psicossocial ganha consistência à medida que teorias sociais se complementam e sofisticam; 2. pela sustentação teórica de que os aspectos biológicos e sociais interagem mutuamente em espaços sociais atravessados pela cultura cis-heteronormativa; 3. pela articulação da ideia que a cis-heteronormatividade, por meio de seus discursos e signos, penetra relações sociais impactando a percepção que o sujeito tem sobre si, seu coletivo e sua identidade como homem.
Assim, para que possamos compreender o impacto da cis-heteronormatividade sobre a produção da identidade de homens, devemos considerar seus arranjos, estratégias, negociações e reapropriações necessários para a construção e reconstrução cotidiana do seu gênero e sua sexualidade. A fim de que possamos compreender as práticas, representações e identidades, essas devem ser percebidas como fenômenos da nossa socialização, sendo orquestrados nesta e por esta cultura e contexto social e histórico.
É preciso reconhecer o componente violento ao qual sujeitos estão submetidos ao organizarem suas compreensões de masculino e feminilidade sustentadas na cis-heteronormatividade. Assim, reafirmamos que estruturas sociais interferem em processos psicossociais e é a partir da compreensão dessas estruturas que se constrói criticidade sobre si e sobre o meio social. Entender os atravessamentos sociais que constituem identidades possibilita que sujeitos exerçam sua subjetividade com mais autonomia e possam exercer criatividade nos modos de ser, pensar e transformar socialmente.
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Recebido em: 12/08/2022
Última revisão: 04/10/2023
Aceite final: 16/12/2023
Sobre o autor:
Walter Aristóteles Oliveira Miez: Doutorando em Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia. Pesquisador de gênero e sexualidade. E-mail: waltermiez@gmai.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8160-3820
doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v15i1.2120
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