Sofrimento e Defesas dos Profissionais de Enfermagem no Combate à Covid-19
Suffering and Defenses of Nursing Professionals in the Fight against COVID-19
Sufrimiento y Defensas de los Profesionales de Enfermería en la Lucha contra el COVID-19
Maria Cristiane Pereira dos Santos1
Denilson Bezerra Marques
Universidade Federal de Pernambuco
Resumo
A pandemia de covid-19 envolveu elementos como contágio, doença e mortes, que repercutiram no trabalho e no psiquismo dos profissionais de enfermagem. Este estudo, sob perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho, objetivou compreender o sofrimento e as defesas no trabalho dos técnicos e auxiliares de enfermagem da linha de frente no combate à covid-19. Realizou-se um estudo descritivo, com abordagem qualitativa. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas e analisados pelo método de Análise dos Núcleos de Sentidos. Os temas foram categorizados pelo critério de semelhança de significado semântico, lógico e psicológico. Identificou-se que, na luta pela saúde mental, esses profissionais enfrentaram o sofrimento no trabalho por meio de estratégias coletivas de defesa, como a proteção mútua e negação do medo. Como defesa individual, identificou-se a sublimação. O fator que mais gerou sofrimento foi a morte dos pacientes, contrapondo-se à sublimação e aos desejos desses profissionais de salvar vidas. Evidenciou-se a necessidade de ampliar formas de reconhecimento do difícil trabalho de cuidar dos pacientes diante da morte.
Palavras-chave:
Palavras-chave: Saúde do Trabalhador, Enfermagem, Covid-19, Psicodinâmica do Trabalho
Abstract
The COVID-19 pandemic involved elements such as contagion, illness and deaths, which had an impact on the work and psyche of nursing professionals. This study, from the Psychodynamics of Work perspective, aimed to understand the suffering and defenses at work of front-line nursing technicians and assistants in the fight against COVID-19. A descriptive study with a qualitative approach was carried out. Data were collected through semi-structured interviews and analyzed by the method of Analysis of Nuclei of Senses. The themes were categorized by the criterion of similarity of semantic, logical and psychological meaning. It was identified that, in the struggle for mental health, these professionals confronted suffering at work through collective defense strategies, such as mutual protection and denial of fear. As an individual defense, sublimation was identified. The factor that most generated suffering was the death of patients, in contrast to the sublimation and desires of these professionals to save lives. The need to expand ways of recognizing the difficult work of caring for patients in the face of death was evidenced.
Keywords: Workers' Health, Nursing, COVID-19, Psychodynamics of Work
Resumen
La pandemia de COVID-19 involucró elementos como el contagio, la enfermedad y las muertes, que impactaron en el trabajo y la psique de los profesionales de enfermería. Este estudio, desde la perspectiva de la Psicodinámica del Trabajo, tuvo como objetivo comprender el sufrimiento y las defensas en el trabajo de los técnicos y auxiliares de enfermería de primera línea en la lucha contra la COVID-19. Se realizó un estudio descriptivo con enfoque cualitativo. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas semiestructuradas y analizados por el método de Análisis de Núcleos de los Sentidos. Los temas categorizados por el criterio de similitud de significado semántico, lógico y psicológico. Se identificó que, en la lucha por la salud mental, estos profesionales enfrentaron el sufrimiento en el trabajo a través de estrategias de defensa colectiva, como la protección mutua y una estrategia defensiva de negación del miedo. Como defensa individual, se identificó la sublimación. El factor que más sufrimiento generó fue la muerte de los pacientes, en contraste con la sublimación y los deseos de estos profesionales de salvar vidas. Se evidenció la necesidad de ampliar formas de reconocer el difícil trabajo de cuidar a los pacientes frente a la muerte.
Palabras clave: Salud del Trabajador, Enfermería, COVID-19, Psicodinámica del Trabajo
Introdução
Entre os fatores constituintes da condição humana, encontra-se a suscetibilidade a doenças transmissíveis, que podem evoluir para pandemias ou epidemias. Estes fenômenos ocasionam grandes desafios para a saúde pública. De modo particular, representam um desafio à saúde mental dos profissionais de saúde que atuam na assistência direta ao paciente.
A mais recente pandemia, na história da humanidade, foi a pandemia causada pelo novo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, causador da doença covid-19. A vacina contra covid-19 foi desenvolvida e aprovada em tempo hábil, após a identificação desta doença. Contudo, a pandemia de covid-19 alcançou a marca mundial de 768.237.788 casos confirmados de covid-19, incluindo 6.951.677 mortes notificadas até o dia 17 de julho de 2023. No Brasil, desde o início da pandemia até esta mesma data, foram confirmados 37.693.506 casos de covid-19 e 704.320 mortes (Organização Mundial da Saúde, 2023).
O relatório da Internacional de Serviços Públicos (ISP) aponta que, devido à covid-19, mais de 4,5 mil profissionais de saúde morreram no Brasil, entre março de 2020 e dezembro de 2021. Destes, 70% eram auxiliares ou técnicos de enfermagem e 24% enfermeiros (Internacional de Serviços Públicos, 2022).
Em situações pandêmicas, o tratamento dos doentes e as pesquisas para encontrar medicações, vacinas e métodos que combatam as doenças requerem o trabalho de profissionais de saúde, entre os quais encontra-se a equipe de enfermagem. A covid-19 produziu um cenário complexo e desafiador para os profissionais de enfermagem da linha de frente.
O processo de trabalho desses profissionais foi marcado por rápidas e constantes mudanças dos fluxos, protocolos assistenciais e dimensionamento do quantitativo de profissionais. Eles enfrentaram sobrecarga de trabalho e equipes insuficientes, devido aos afastamentos de profissionais com covid-19 ou de licença médica por desenvolverem depressão ou outro distúrbio psicológico. Além disso, foram levados em consideração fatores como isolamento social, distanciamento dos familiares, número de mortes diárias e medo de contaminação (Herculano et al., 2021).
Estudos recentes apontam que a pandemia da covid-19 trouxe sérios impactos à saúde mental dos profissionais de enfermagem da linha de frente, provocando sofrimento psíquico e transtornos mentais. Entre os vários agravos à saúde, destacaram-se os sintomas de ansiedade, depressão e insônia. Também, identificou-se o esgotamento físico e mental como fator significativo, com implicações de curto e médio prazo para a saúde mental (Herculano et al., 2021; Pires et al., 2022; Oliveira et al., 2022; Silva et al., 2023).
Considerando-se tal contexto crítico, a questão norteadora deste estudo foi: diante do sofrimento no trabalho, quais mecanismos de defesa a organização do trabalho possibilitou que fossem elaborados, para preservar a saúde mental dos profissionais de enfermagem da linha de frente de combate à covid-19? Buscando responder a este questionamento, o presente artigo objetivou compreender, a partir da perspectiva Psicodinâmica do Trabalho (PDT), o sofrimento e as defesas psíquicas no trabalho dos técnicos e auxiliares de enfermagem da linha de frente.
Referencial Teórico
A teoria Psicodinâmica do Trabalho analisa os processos mentais e emocionais envolvidos na luta dos trabalhadores para se manterem na normalidade, mesmo diante de fatores patogênicos da organização do trabalho (Monteiro et al., 2017). A PDT possibilita desvendar o sofrimento psíquico antes de tornar-se patológico e identificar os efeitos da organização do trabalho sobre a saúde mental (Merlo & Mendes, 2009).
Nesta perspectiva, a organização do trabalho é constituída pelo trabalho prescrito que antecede a execução da tarefa, referindo-se à orientação, burocratização e fiscalização, enquanto o trabalho real corresponde ao próprio momento da execução trabalho, em que a prescrição não consegue prever tudo que acontecerá (Mendes & Facas, 2014).
Portanto, existe uma distância entre o trabalho prescrito e as vivências concretas de trabalho real, caracterizada pela presença de obstáculos, imprevistos e dificuldades comuns da rotina. Diante dessa discrepância, o trabalhador precisa mobilizar sua subjetividade, para inventar soluções e ajustar a distância entre o prescrito o real, e realizar suas tarefas; como resultado, são gerados sentimentos de prazer e sofrimento (Martins, 2015; Dejours, 2007b).
Desta forma, trabalhar demanda o engajamento afetivo de toda a subjetividade, pois implica o envolvimento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de sentir, pensar, interpretar e reagir para solucionar as situações imprevistas no trabalho (Dejours, 2007b).
Algumas organizações do trabalho favorecem o equilíbrio psíquico, enquanto outras, ao destruir o desejo dos trabalhadores, prejudicam este equilíbrio, causando adoecimento mental. A fim de evitar esse adoecimento, os trabalhadores desenvolvem estratégias defensivas para se manterem na normalidade (Dejours, 1993; 2011). Caracterizada pela presença do sofrimento, essa normalidade representa o resultado da luta individual ou coletiva contra a desestabilização psíquica provocada pelas pressões no trabalho (Dejours, 2007a, 2007b).
Para a PDT, o sofrimento é uma vivência subjetiva intermediária entre a doença mental descompensada e o bem-estar psíquico. Consiste num estado de luta do sujeito contra as forças da organização do trabalho que o impulsionam à doença mental, distinguindo-se em criativo ou patogênico. Quando a organização possibilita que o sofrimento possa ser transformado em criatividade, beneficia a identidade do sujeito e fortalece a saúde mental. O sofrimento patogênico surge quando a organização do trabalho não oferece margem para liberdade e extingue as possibilidades de ajustamento do sujeito à organização do trabalho, podendo levá-lo à descompensação mental ou psicossomática (Dejours & Abdoucheli, 2012; Mendes, 2003).
Para Dejours (1999a), a saúde definida a partir de conceitos negativos, como ausência de doença, é uma concepção equivocada, pois a saúde do corpo resulta de uma intensa luta por meio de regulações internas ou meios artificias que conferem um aprendizado para manter a normalidade. Existem inúmeros tipos dessas regulações, como a glicorregulação, que estabiliza nível de açúcar no sangue; e as defesas imunológicas internas, que combatem as doenças ou as defesas artificiais adquiridas pelas vacinas, as quais conferem um aprendizado para o organismo lutar, combater vírus/bactérias e impedir o desenvolvimento de doenças.
Análogo processo também acontece com a saúde mental. Existem sofisticadas regulações que mobilizam dinâmicas intersubjetivas, tanto no campo afetivo quanto no campo das relações sociais e dos vínculos civis (Dejours, 2017). Assim, a saúde ou a normalidade não se caracterizam por estados passivos, as doenças só se manifestam no corpo ou no psiquismo quando as lutas ou as defesas enfraquecem (Dejours,1999a).
No trabalho, essa construção das estratégias defensivas coletivas para lutar e resistir aos efeitos desestabilizadores do sofrimento, bem como proteger a saúde, passa por condutas que não são naturais, mas dependem de uma elaboração simbólica (Dejours, 2017). Tais estratégias de defesas não dependem apenas da estrutura psíquica individual, mas coletiva; são produzidas, estabilizadas e mantidas coletivamente pelos trabalhadores (Dejours, 2017; Martins, 2015).
As estratégias coletivas de defesas consistem numa forma de cooperação entre os trabalhadores, que, juntos, enfrentam os sofrimentos produzidos pelo real do trabalho. Há distintas formas de estratégias coletivas de defesa, as quais apresentam especificidades das situações de trabalho e buscam, por meio de uma operação mental, controlar o sofrimento relacionado às exigências organizacionais do trabalho (Dejours, 1992, 1999a, 2017).
Os trabalhadores desenvolvem estratégias defensivas no trabalho, as quais podem ser coletivas ou individuais (Mendes et al., 2003). Como defesa individual, a sublimação oferece uma saída pulsional diferente das outras defesas que limitam o jogo pulsional pela repressão. A sublimação mantém uma relação de continuidade com o desejo e a espera do reconhecimento, e possibilita ressignificar o sofrimento e alcançar o prazer no trabalho (Martins, 2015).
O sofrimento advém da relação com o trabalho, em que o sujeito se coloca diante do real, depara-se com o imprevisível e o inusitado, de forma que surjam diversos sentimentos. É de forma afetiva que o real do trabalho se apresenta. É vivenciado inicialmente pela experiência do fracasso, mas essa não é a única maneira, existem diversas formas pelas quais o real se apresenta (Dejours, 2022).
Trajetória Metodológica
Foi realizada uma pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa. Conforme Gil (2008), a pesquisa descritiva objetiva a descrição das características de determinada população ou fenômeno, com o uso de técnicas padronizadas de coleta de dados. Neste sentido, utilizou-se a entrevista, que, de acordo com PDT, consiste numa técnica de coleta de dados com foco na fala-escuta dos conteúdos manifestos e latentes sobre a organização do trabalho e as vivências de prazer e sofrimento, saúde/adoecimento relacionados ao trabalho (Mendes, 2007).
A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista individual semiestruturada, em maio de 2021. A amostra foi composta por 12 técnicos e 01 auxiliar de enfermagem, da linha de frente de combate à covid-19, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC-UFPE). Foram incluídos, neste estudo, os técnicos e auxiliares de enfermagem que trabalharam na linha de frente, lotados na enfermaria de Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP) e UTI-Covid, entre os meses de abril de 2020 e maio de 2021. Como critério de exclusão, não foram incluídos, nesta pesquisa, os profissionais que eram de outros setores do HC-UFPE, mas que, eventualmente, foram remanejados para atuar em algum plantão na linha de frente.
O número de participantes foi definido pelo critério de saturação. Conforme Minayo (2017), o ponto de saturação não é numericamente estabelecido a priori, este ponto é obtido quando o pesquisador, atento ao aprofundamento e à diversidade no processo de compreensão, coloca esses aspectos à luz das teorias que fundamentaram suas indagações e chega à convicção de que encontrou a lógica do seu objeto de estudo.
No intuito de assegurar o anonimato dos participantes, os relatos foram referenciados com letras e numerais, elencados de forma aleatória. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do HC-UFPE/Ebserh, por meio do Parecer consubstanciado do CEP n. 4.690.887.
Para analisar os dados, utilizou-se a Análise dos Núcleos de Sentidos. Neste método, conforme Mendes (2007), após a leitura das entrevistas e a marcação das falas que representam os temas psicológicos/semânticos, classificam-se os temas em núcleos de sentido. A categorização dos temas é realizada pelo critério de semelhança de significado semântico, lógico e psicológico. Após os registros das transcrições das falas e os temas categorizados, estes foram organizados conforme o método Análise da Psicodinâmica do Trabalho (APDT) de Mendes e Araújo (2012), no que se refere à estruturação dos eixos de análise, construídos pelas transcrições das falas organizadas e seguindo a classificação nos eixos e seus temas.
Neste estudo, abordaram-se como eixos as defesas e os sofrimentos, com os seguintes temas: estratégias de defesa coletiva, estratégias de defesa individual e o sofrimento no trabalho. Esses foram analisados e discutidos utilizando-se a teoria Psicodinâmica do Trabalho, os conceitos de Dejours e o aporte teórico psicanalítico, como apresentam os resultados a seguir.
Resultados e Discussões
Trabalho Como Risco e Construção das Estratégias Coletivas de Defesas
O trabalho dos técnicos e auxiliares de enfermagem na linha de frente de combate à covid-19 foi caracterizado pela presença de diversos riscos, entre os quais, destacamos: de contaminação, adoecimento físico e/ou mental e morte. Segundo Dejours (2012a, p. 183), “há muitas situações de trabalho nas quais o real faz-se conhecer em essência sob a forma do risco: o risco de incidente, o risco de acidente, o risco de doença, de mutilação, de morte”, entre outros.
Apresentamos, na Tabela 1, alguns dos relatos desses profissionais, os resultados referentes à identificação dos riscos como fatores geradores de sofrimento e as defesas construídas pelos técnicos e auxiliares para lidarem com o sofrimento no trabalho.
Tabela 1
Tema: Estratégias Coletivas de Defesas
Fatores de sofrimento |
Relatos |
Defesas construídas |
Trabalho caracterizado pelos riscos de contaminação e adoecimento |
O medo de levar o coronavírus para casa e contaminar outras pessoas, seus colegas . . . mas o medo de contaminar outras pessoas, não era nem de ser contaminada, era de contaminar outras pessoas (R5). Fiquei preocupado para não contaminar a minha mãe, fiquei evitando de ir na casa da minha mãe (R9). |
Estratégia defensiva coletiva de negação do medo dos riscos para si próprios. |
Risco de transmissão da covid-19 aos familiares, colegas e/ou outras pessoas |
Por conta da doença, né, que fica com ansiedade e medo de levar para casa, medo de levar para os filhos, para família, para os meus pais, que são idosos. Mas, assim, no momento se sente seguro por conta dos EPIs (R10). Mas quando a gente ver que tem todo um protocolo, tem como seguir e sair tranquilo, para que você não se contamine e não contamine ninguém da sua família, fica mais tranquilo (R7). Foi muito companheirismo, muita parceria, se não fosse assim a gente não tinha conseguido não, entendesse. É um ajudando o outro, um auxiliando o outro, um protegendo o outro (R5). |
Proteção mútua seguindo as normas de proteção, segurança laboral e uso dos EPIs. |
Nota. Elaborado pelos autores, com dados da pesquisa.
A partir dos relatos desses profissionais, pode ser percebido como o real do trabalho se apresentou sob a forma de riscos. Foi possível identificar que esses riscos não se restringiram ao ambiente laboral, pois, aos riscos de contaminação e adoecimento característicos deste trabalho, acrescentou-se a possibilidade de esses profissionais, devido à contaminação no trabalho, “levarem” a covid-19 para o espaço doméstico, pondo em risco a saúde ou a vida dos seus familiares.
Nos casos em que o real do trabalho se apresenta sob a forma de risco e suscita o medo, Dejours (2012b, p. 183) considera que para “suportar o trabalho, tolerar o sofrimento que toma a forma do medo e passa pela formação de estratégias de defesa contra o medo, estratégias que construídas pelos trabalhadores em coletividades são designadas sob o nome de estratégias coletivas de defesa”.
No trabalho dos técnicos e auxiliares de enfermagem da linha de frente, os riscos relacionados ao trabalho transpassaram a fronteira do espaço laboral, podendo chegar ao espaço familiar. Diante desse atravessamento dos consequentes riscos do trabalho, apenas um tipo de defesa não foi suficiente para lidar com o desdobramento do sofrimento relacionado ao trabalho.
Deste modo, a construção de estratégias defensivas coletivas se estruturou de duas formas: por meio da elaboração da estratégia defensiva de negação do medo com relação à própria contaminação pela covid-19 e da defesa por meio da proteção mútua, seguindo as normas de segurança e uso dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs).
Estratégia Coletiva de Defesa: Negação do Medo
Conforme a PDT, as estratégias coletivas de defesa no trabalho conseguem, por meio de um mecanismo simbólico, atenuar ou neutralizar o medo. Neste sentido, esses profissionais de enfermagem conseguiram atenuar ou neutralizar o medo através da elaboração da estratégia defensiva coletiva de negação. Esta estratégia de defesa tem como finalidade “lutar contra o sofrimento no trabalho, são específicas de cada local e produzidas, estabilizadas e mantidas coletivamente. Trata-se principalmente de lutar contra o medo gerado pelo trabalho, opondo a ele uma recusa coletiva de percepção” (Dejours, 2017, p. 94).
Neste sentido, toda a subjetividade é convocada nessa relação. Trata-se de uma dimensão invisível; como tudo que é afetivo e subjetivo, não pertence ao mundo visível (Dejours, 2022).
Essa dimensão invisível da organização do trabalho, a qual os técnicos e auxiliares de enfermagem mobilizaram subjetivamente para vencer o sofrimento, foi apreendida por meio das falas e do registro do não dito, pois esses profissionais relataram não ter medo de se contaminar ou não expressaram verbalmente o medo de adoecer de covid-19, evidenciando, assim, a estratégia coletiva de negação do medo. Para Mendes e Araújo (2012), a escuta do sofrimento no trabalho implica escutar o não dito, o silenciado, buscando, com o coletivo, ressignificar o sofrimento.
O sofrimento pode manifestar-se por meio de indicadores de mal-estar, como desgaste físico e mental, falta de reconhecimento, entre outros, que, dependendo das condições da organização do trabalho, são enfrentados mediante estratégias defensivas de negação e controle (Barros & Mendes, 2003).
A estratégia defensiva de negação do medo controla a vivência do medo, impedindo-o de vir à tona, possibilitando ao trabalhador enfrentar os riscos e continuar trabalhando. No entanto, é um processo estritamente mental, atua apenas sobre a percepção da realidade, produzindo um retorno eufemizado da realidade geradora de sofrimento, mas a realidade não é transformada (Dejours, 1992, 2012b,).
Assim como qualquer ser humano, quando expostos a perigos, os trabalhadores sentem medo de acidentes ou da morte. Portanto, sem a elaboração deste tipo de defesa de negação do medo, seria inviável a realização do trabalho em contextos em que a tarefa é carregada de riscos tanto para saúde física quanto mental, ou até mesmo risco de morte. Nesses casos, a consciência aguda dos riscos levaria o trabalhador a tomar tantas precauções, que isso o impediria de continuar trabalhando. Então, é graças a este sistema defensivo de controle do medo que o coletivo de trabalhadores consegue afastar da consciência a ameaça da morte, acidente ou doença (Dejours, 1992, 1999a). As estratégias defensivas são construídas individual ou coletivamente e variam dependendo do ambiente de trabalho (Dejours, 2017).
Estratégia Coletiva de Defesa: Proteção Mútua
Diante do sofrimento, o trabalhador constrói defesas individuais ou coletivas, devido aos conflitos e/ou sentimentos dolorosos gerados pela organização do trabalho. Essas defesas ajudam a manter o equilíbrio psíquico (Mendes, 1995).
Neste sentido, diante do sofrimento causado pelo risco de contaminar os familiares, devido ao trabalho na linha de frente, os técnicos e auxiliares se defenderam coletivamente, por meio da proteção mútua, seguindo as normas de segurança e proteção e de uso dos EPIs. Assim, alcançaram uma atenuação do sofrimento. E revelam, por meio de suas falas, que, ao aderirem às normas de proteção e uso dos EPIs, sentiram-se mais tranquilos e seguros para trabalhar, por diminuir os riscos de contaminar os familiares. Neste caso, embora a adesão às normas e o uso dos EPIs não tenham modificado o contexto de trabalho com relação à permanência dos riscos, houve uma atenuação do medo de contaminar pessoas próximas e/ou familiares.
Conforme Dejours (1992), nas diversas profissões, existem sistemas defensivos estruturados, conforme a natureza do risco em questão. Nesta perspectiva, foi possível observar como cada defesa é peculiar ao contexto de trabalho, apresentando as especificidades necessárias ao enfrentamento do sofrimento, visto que os profissionais de enfermagem se defenderam coletivamente contra os riscos físicos e psíquicos, através de modos distintos, por meio da negação do medo e da cooperação para proteção mútua. Para Dejours (1992) e Mendes (1995), não existem defesas padronizadas, algumas profissões apresentam semelhanças nos sistemas defensivos, enquanto outras são distintas, dependendo das peculiaridades do trabalho.
Como exemplo de estratégias defensivas diferentes, mas com trabalhos que oferecem risco à vida ou à saúde, Dejours (1999b, 1992) apresenta o caso dos trabalhadores da construção civil, que adotaram condutas paradoxais, não utilizaram os EPIs. Essa conduta representa um retorno simbólico para afastar o medo. Ao inverter a posição psíquica quanto ao perigo, saem da posição de vítima passiva de um acidente para uma conduta lúdica que representa o domínio do risco, como numa brincadeira infantil. Diferente caso, também em situações de risco, foi identificado por Dejours (1992) com a aviação de caça, em que os pilotos se esforçaram para aperfeiçoar a segurança e adquirir domínio sobre o risco, pela aprendizagem e pelo uso de medidas de segurança.
Tanto as defesas individuais quanto as defesas coletivas desenvolvem uma resistência psíquica a certas formas de organização do trabalho, possibilitando a eufemização e até certa anestesia do sofrimento. Todavia, podem evoluir para adaptação aos riscos e ao sofrimento, provocando o sofrimento patogênico (Martins, 2015).
O trabalho, contudo, também pode oferecer condições que neutralizam o sofrimento por meio de mecanismos de defesa que proporcionam o prazer, como ocorre no processo sublimatório, em que as exigências pulsionais correspondem aos desejos do sujeito (Mendes, 1995). A sublimação oferece uma saída pulsional diferente de outras defesas que funcionam de modo a limitar o jogo pulsional pela via da repressão, colocando em risco a transformação do sofrimento em prazer (Martins, 2015).
Sublimação no Trabalho: O Desejo de Salvar Vidas e Contradições no Contexto da Covid-19
A sublimação é um tipo de defesa psíquica que lida com o sofrimento, possibilitando novas aberturas para a dialética desejo-sofredor. Ela mantém uma relação de continuidade com o desejo. O contrário deste mecanismo ocorre em tarefas desqualificadas, em que as defesas suscitam a repressão, afastando o sujeito do seu desejo (Dejours, 2016).
No trabalho dos técnicos e auxiliares de enfermagem da linha de frente, foi identificada a sublimação como um tipo de defesa relacionada à profissão desses trabalhadores. Esta defesa não foi suscitada devido ao período pandêmico, contudo, foi afetada pelas contradições advindas do trabalho na linha de frente. A sublimação apresentou-se como uma característica que vem desde a formação até o exercício profissional desses trabalhadores, como mostra a Tabela 2.
Tabela 2
Tema: Estratégia de Defesa Individual
Escala social de valor |
Relatos |
Defesa construída |
Formação e identidade profissional ligada ao desejo de salvar vidas. |
E nós fizemos os nossos juramentos, nós estudamos tudinho para salvar vidas, então também a gente se sente orgulhosa de nós mesmos. Assim, porque, de qualquer forma, a gente está contribuindo, entendeu (R11). Esse sentimento de ter salvado aquela vida, era uma vida que tava quase que perdida, realmente é muito gratificante, ver o quanto você é importante, você da linha de frente (R6). |
Sublimação: defesa individual no trabalho. |
Nota. Elaborado pelos autores, com dados da pesquisa.
Os relatos demonstraram que o exercício desta profissão é sentido como uma escolha e está ligado ao juramento de salvar vidas. Este objetivo direcionou tanto os estudos na formação profissional quanto os esforços no trabalho. Desta forma, os técnicos e auxiliares de enfermagem sentiram-se contribuindo, e isso os deixa orgulhosos profissionalmente.
Evidenciou-se, assim, uma identidade profissional intrinsecamente relacionada ao desejo de salvar vidas, revelando o sentido simbólico da tarefa, manifestado pelo desejo do sujeito e direcionamento da pulsão para objetos socialmente valorizados. Desta forma, o objeto foi uma atividade socialmente valorizada, no sentido do trabalho para salvar vidas. De acordo com Laplanche e Pontalis (1991), a sublimação é um processo em que ocorre uma mudança no destino da pulsão. Acontece uma troca de objeto, a pulsão é sublimada à medida que é derivada para um novo alvo com objetivo não sexual, visando a objetos socialmente valorizados.
A partir do estudo da obra freudiana sobre a sublimação, Dejours (2013) buscou discutir e ampliar este conceito psicanalítico, apresentando como, no trabalho, a sublimação pode ser entendida em três níveis: o primeiro é a maneira pela qual o trabalho convoca a subjetividade do trabalhador exigindo um trabalho de si sobre si mesmo, Arbeit, este é intrassubjetivo, contribui para expansão da sensibilidade do corpo erógeno e da inteligência no trabalho. O segundo nível passa pelo reconhecimento no trabalho que provém do julgamento, implica a relação do sujeito com o outro. Esse reconhecimento é desvinculado de erotização e pode transformar o sofrimento em prazer. Há, portanto, uma mudança para o objetivo não sexual e o objeto vinculado à escala social de valores. O terceiro nível concerne à contribuição do trabalho à cultura e a relação do sujeito com a cultura e a civilização. Neste nível, a escala social de valor importa para o sujeito no sentido do julgamento ético, ou seja, o julgamento de si próprio.
O reconhecimento é um dos constituintes da vivência de prazer e da realização de si mesmo, bem como é um dos pilares da construção da identidade que constitui a base da saúde mental (Dejours, 2013; Martins, 2015). A maioria das pessoas apresenta falhas em sua identidade, a qual é construída não apenas a partir do eu, mas precisa do olhar do outro por meio do reconhecimento para se constituir e fortalecer. Considerando-se que toda descompensação psicopatológica é marcada por uma crise de identidade, o reconhecimento no trabalho é essencial para construção da identidade e saúde mental do sujeito (Dejours, 2007b).
As formas de julgamento que constituem o reconhecimento são o julgamento de utilidade, proferido por aqueles que, em relação ao ego, estão em posição hierárquica, como o chefe, o executivo e, também, os subordinados e os clientes. E o julgamento de beleza é proferido pelos pares, colegas, que conhecem tão bem quanto o ego as artes do ofício, é o julgamento sobre a beleza do trabalho realizado. Esses julgamentos se direcionam ao trabalho, ou seja, ao fazer e não ser do ego; só posteriormente o reconhecimento retornará ao ego para construção da identidade (Dejours, 1999b). Ambas as formas de reconhecimento, utilidade e beleza, contribuem para o registro da identidade do trabalhador. O reconhecimento possibilita uma mudança do objeto da pulsão conforme a teoria da sublimação (Dejours & Abdoucheli, 2012).
Quando a escolha da profissão está em consonância com as necessidades do sujeito e o trabalho possibilita o livre jogo do funcionamento mental e corporal, a tarefa carrega um sentido simbólico, e, mesmo com as limitações do real, o trabalho pode se tornar fonte de prazer e sublimação (Dejours, 2017). Os relatos dos técnicos e auxiliares de enfermagem da linha de frente revelaram a escolha da profissão como outro fator indicativo da sublimação no trabalho.
Apesar de não estar ligada ao período pandêmico, a sublimação − como modo de defesa − desses profissionais de enfermagem foi afetada por este período de trabalho na linha de frente, pois houve um contraste entre o trabalho com conteúdo simbólico, diretamente ligado ao desejo de salvar vidas, e a elevada taxa de mortalidade dos pacientes devido à covid-19. Isso demonstra um choque entre a organização do trabalho e o psiquismo do trabalhador.
Conforme Dejours (2016), o sofrimento no trabalho resulta de uma situação específica relacionada à organização do trabalho. Quando ocorre um choque entre a organização do trabalho e a organização da personalidade, esse sofrimento advém de uma ruptura com a história subjetiva, quando não há espaço para o jogo metaforizado do desejo na atividade laboral.
A sublimação está relacionada à criação, ao trabalho como obra, e implica a espera do reconhecimento do outro. A falta desse reconhecimento põe em risco a relação sofrimento-prazer pela via da sublimação. Assim, o fracasso da sublimação pode ser analisado pelos impasses do contexto de trabalho (Ferreira et al., 2015). O sofrimento inicia-se quando, apesar de trabalhar com zelo, o trabalhador não conseguir concluir a tarefa; isso implica a não espera de reconhecimento, o que intensifica o sofrimento no trabalho (Dejours, 2012b).
Neste sentido, foi possível compreender o sofrimento dos técnicos e auxiliares de enfermagem devido às mortes dos pacientes, pois a impossibilidade de esses profissionais não conseguirem concluir a tarefa de salvar vidas, mesmo com todo zelo e investimentos pulsionais no trabalho, produziu um conflito entre o desejo e a história subjetiva desses trabalhadores, evidenciando, assim, as contrariedades do contexto de trabalho que dificultam/impedem a sublimação pela via do reconhecimento do outro, gerando um intenso sofrimento psíquico no período pandêmico, como apresenta a seção a seguir.
O Que Há de Mais Sofrido no Seu Trabalho?
A morte dos pacientes foi considerada o fator que mais gerou sofrimento no trabalho na linha de frente, como pode ser identificado nas falas desses profissionais de enfermagem, ao responderem na entrevista a seguinte questão norteadora: o que há de mais sofrido no seu trabalho? Algumas das respostas compõem os relatos apresentados na Tabela 3:
Tema: Sofrimento no trabalho
Fatores de sofrimento |
Relatos |
Sentimentos vivenciados |
Morte dos pacientes |
E o mais triste é quando vai a óbito. A gente luta, luta, luta, mas. . . A gente queria ver todos saindo bem! (R11). Quando é óbito arrasa a equipe toda. A equipe toda sente, sente pela família. Você trabalhou, lutou, lutou e perdeu (R2). É um trabalho que está sendo um pouco doloroso, por todo esse tempo que a gente trabalhou na área de saúde, a gente não viu tantos óbitos num período tão curto (R13). São uns pacientes que têm complicações, se agrava. Então assim, fica um pouco difícil o nosso psicológico (R8). Foi uma experiência única, mas, quer queira, quer não, foi traumatizante também, porque até hoje eu lembro alguns casos de óbitos, eu fico sentida com isso (R1). |
Tristeza, dor, sofrimento, perda, trauma, cansaço, fracasso, abalo emocional/ psicológico, estresse, depressão. |
Mas aí o emocional da gente, de todos, viu, ficou muito abalado, de ver tantas pessoas morrerem (R5). Ver essas pessoas sem nenhuma comorbidade, sem ser idosos, pessoas jovens que tinham uma vida toda pela frente, chegar lá mesmo com todo o esforço feito, você não conseguir manter aquela pessoa viva (R6). Às vezes eu me vejo é muito estressada, aí eu começo a ver que é por conta do que a gente tá passando, de que é tudo muito novo. Muito dolorido, muito dolorido mesmo. Aí é essa conclusão que eu tiro. Eu tento trabalhar isso em mim. Eu vejo os colegas também, é deprimente. Assim, a gente vê muita depressão (R13). |
Nota. Elaborado pelos autores, com dados da pesquisa.
Compreendeu-se, a partir das percepções e dos sentimentos expressos nas falas dos técnicos e do auxiliar de enfermagem, que o fator que mais gerou sofrimento no trabalho da linha de frente foi a morte dos pacientes. Neste contexto, a covid-19 apresentou elevada taxa de mortalidade nos pacientes com a síndrome respiratória aguda grave (SRAG); os profissionais de enfermagem relataram que nunca presenciaram tantos óbitos num período tão curto.
As mortes dos pacientes afetaram emocionalmente esses profissionais e gerou o sofrimento no trabalho, que foi vivenciado por sentimentos como tristeza, dor, perda, trauma, sofrimento, fracasso, cansaço, abalo emocional/psicológico, estresse e depressão. A experiência deste sofrimento que foi suscitado durante o trabalho, no momento de ocorrência da morte dos pacientes, mas também se desdobra pelo restante do turno de trabalho e, posteriormente, retorna como lembrança dolorosa, é manifestado como o que houve de mais sofrido no trabalho.
Dejours (2007b, p. 18) esclarece que o sofrimento se materializa por meio de diversos sentimentos, como “surpresa, estupefação, decepção, irritação, contrariedade, ira, cólera, indo até às raias da depressão. Depois, o sofrimento que se condensa na subjetividade transmuta-se em exigência psíquica”.
A experiência do sofrimento pode ser compreendida como uma vivência, muitas vezes, inconsciente, de experiências dolorosas produzidas devido ao conflito entre as necessidades de gratificação do binômio corpo-mente e as restrições impostas pelas situações de trabalho (Mendes et al., 2003). Para Sznelwar et al. (2011, p. 14), “O sofrimento no trabalho torna-se evidente quando não é mais possível transformá-lo em prazer através das realizações do sujeito, reconhecidas pelos outros como úteis e belas”.
No trabalho dos técnicos e auxiliares de enfermagem, a principal fonte de reconhecimento veio dos pacientes, como revelam os relatos seguintes:
Sim, sim. Com os pacientes. Agradecimento, eles agradecem. Tudo o que a gente faz eles agradecem, comigo é assim (R4).
O cansaço é esquecido pelo agradecimento do paciente, por a gente escutar um muito obrigado, que bom que é você hoje que está aqui no plantão. Então isso é o que nos eleva, isso nos fortalece diante do nosso trabalho que é tão emocionante (R8).
Isso demonstra como o reconhecimento possibilita transformar o cansaço e o sofrimento em prazer no trabalho. Neste sentido, retornamos à segunda dimensão da sublimação, caracterizada pela mudança pulsional para um objetivo não sexual e um objeto vinculado à escala social de valores, implicando a relação do sujeito com o outro, que, ao proferir o julgamento, reconhecendo o trabalho, possibilita a transformação do sofrimento em prazer (Dejours, 2013).
Desta forma, torna-se evidente como a morte dos pacientes foi o fator que mais gerou sofrimento no trabalho, pois, nos relatos, os técnicos e auxiliares de enfermagem expressaram seus sofrimentos e, concomitantemente, manifestaram seus desejos de salvar vidas. No entanto, a morte dos pacientes contrariou esse desejo; logo, contrapôs-se também à esperança de reconhecimento, já que se espera esse reconhecimento pela ação de cuidar para manutenção da vida, como, também, quando os pacientes morrem cessa esta fonte de reconhecimento, que provém do julgamento de utilidade vindo dos clientes, dificultando/impedindo a sublimação pela via do reconhecimento do outro, intensifica-se o sofrimento no trabalho.
A morte do ponto de vista biológico é considerada natural e comum a todos os seres vivos. No entanto, para o ser humano, este fenômeno é carregado de aspectos simbólicos. Na sociedade ocidental contemporânea, a morte passou a ser sinônimo de fracasso, devendo ser vencida a qualquer custo, caso contrário, deve ser escondida, negada. Nesse contexto, a formação dos profissionais saúde é centrada nos aspectos teórico-técnicos, carente de capacitação sobre o processo de morte, em seus aspectos emocional e simbólico (Combinato & Queiroz, 2006).
Santos et al. (2022) consideram que a morte ainda provoca aversão em estudantes e profissionais da saúde, sendo enfrentada como fracasso, desde a formação acadêmica. Na pesquisa realizada com estudantes de medicina, psicologia, enfermagem e fisioterapia, identificaram que o medo da morte do outro é comum entre esses estudantes. Foi percebido que os alunos de enfermagem e medicina são preparados tecnicamente para salvar vidas. Para Kovács (2017), cursos, palestras e atividades que permitam abertura aos sentimentos em relação ao tema morte são formas de preparar e favorecer a reflexão sobre atitudes diante da morte, possibilitando que alunos e profissionais se sintam preparados para enfrentar situações relacionadas a este tema.
Atualmente, o hospital é o principal lugar de ocorrência de mortes e onde a prioridade é salvar o paciente. Quando a equipe se depara com o processo de morte, surgem sentimentos como frustração, desmotivação e perda de significado. Com a morte sendo vista como erro e fracasso, predomina-se o silêncio sobre ela. Sem espaço para elaboração do luto nem expressão do sofrimento, aumenta-se a possibilidade de adoecimento no trabalho. Portanto, é preciso oferecer espaços para falar sobre a morte, a fim de se promover uma elaboração psíquica (Kovacs, 2005). Nesta perspectiva, a Psicodinâmica do Trabalho ressalta a importância do espaço de fala e escuta dos trabalhadores sobre o sofrimento no trabalho, possibilitando ressignificar as vivências e dar novos sentidos ao sofrimento, contribuindo para o processo de saúde no trabalho (Mendes & Araújo, 2012).
Considerações Finais
A pandemia de covid-19 tornou-se um evento crítico, que envolveu diversos elementos, como contágio, doença e mortes, produzindo um cenário complexo e desafiador no trabalho dos profissionais de enfermagem da linha de frente de combate à covid-19.
Diante deste cenário, este estudo identificou que, na luta pela saúde mental, técnicos e auxiliares de enfermagem da linha de frente se defenderam contra o sofrimento no trabalho, por meio de estratégias coletivas de defesas elaboradas de duas formas. A primeira estratégia coletiva de defesa se refere à proteção mútua seguindo as normas de segurança e o uso dos EPIs, atenuando o medo de transmitir covid-19 a outras pessoas. Outra estratégia, com relação à própria contaminação pela covid-19, corresponde à negação do medo.
Como defesa individual, identificou-se a sublimação, revelada por meio da escolha profissional e atuação guiadas pelo desejo de realizar a tarefa de salvar vidas; no entanto, a morte dos pacientes impede a conclusão desta tarefa, da qual se espera o reconhecimento e o prazer no trabalho. Evidenciam-se, assim, as contrariedades do contexto de trabalho, que podem dificultar/impedir a sublimação pela via do reconhecimento.
A morte dos pacientes foi considerada o fator que mais gerou sofrimento no trabalho e se contrapôs à atividade sublimatória e aos desejos desses profissionais de salvar vidas. Diante disto, inferiram-se dois fatores. Primeiramente, como os pacientes foram uma fonte de reconhecimento, quando estes morreram, cessa esta fonte de reconhecimento no trabalho para esses profissionais, restringindo a possibilidade de transformar o sofrimento de forma criativa. Segundo, considerando-se que o reconhecimento, conforme a PDT, contribui para transformar o sofrimento em prazer e construir identidade, que constitui a base da saúde mental, evidenciou-se a necessidade de ampliar formas de reconhecer a árdua tarefa de cuidar dos pacientes diante da morte, pois a ausência de reconhecimento pode intensificar o sofrimento no trabalho.
Ressalta-se a importância de uma educação sobre o tema morte desde a formação profissional, ampliando os saberes para além do foco teórico/técnico de salvar vidas, e proporcionar espaços para fala-escuta dos trabalhadores sobre este tema e demais sofrimentos.
Espera-se que este estudo tenha contribuído para ampliar concepções acerca do reconhecimento no trabalho e por ter identificado o fator que mais gerou sofrimento no trabalho da linha de frente e as estratégias de defesa elaboradas. A compreensão desses fatores possibilita planejar medidas preventivas e promotoras da saúde mental no trabalho, seja no cotidiano, seja em eventos como epidemias e pandemias.
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Recebido em: 30/09/2022
Última revisão: 23/06/2023
Aceite final: 24/07/2023
Sobre os autores:
Maria Cristiane Pereira dos Santos: Mestra em Gestão Pública pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Técnico administrativo em educação, auxiliar de enfermagem do Hospital das Clínicas-UFPE. Psicóloga clínica. E-mail: mariacristiane.santos@ufpe.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9732-7004
Denilson Bezerra Marques: Doutor em Sociologia e psicanalista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor associado do Departamento de Ciências Administrativas da UFPE e do Mestrado em Gestão Pública (MGP/UFPE). E-mail: denilson.marques@ufpe.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3066-8242
1 Endereço de contato: Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Hospital das Clínicas – Av. Prof. Moraes Rego, s/n, Cidade Universitária, Recife, PE. CEP: 50670-901. Telefone: (81) 2126-3596
doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v15i1.2190