Saneamento Básico em Prol de Humanos? A Psicologia da Saúde sob “Virada Ontológica”
Basic Sanitation in Favor of Humans? Health Psychology under the “Ontological Turn”
¿Saneamiento Básico a Favor de Humanos? La Psicología de la Salud bajo el “Giro Ontológico”
Otavio Ribeiro Lago Netto
Paulo Rogers Ferreira
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Resumo
A Psicologia da Saúde sob “virada ontológica” é o que propomos aqui. A partir de estudo de caso, mais precisamente das alianças afetivas negligenciadas nas políticas públicas em saneamento básico em áreas rurais na Bahia, Brasil, buscaremos instigar a imaginação de psicólogos/as/gues da saúde para uma nova Psicologia da Saúde. Conceitos como “desenvolvimento humano”, “progresso social humano”, “saúde para todos/as/es”, “qualidade de vida humana” e “bem-estar humano”, e que marcam as políticas públicas de saneamento básico, serão revisados em seu aspecto antropocêntrico. A intenção é trazer para o campo Psicologia e Saúde uma outra diretriz. Como recorte metodológico, foi feita uma pesquisa exploratória com 8 (oito) entrevistados/as/es, sendo 5 (cinco) gestores/as/es e 3 (três) operadores/as/es, todos/as/es moradores/as/es da área e inseridos/as/es em um programa de saneamento básico, em um município do sudoeste baiano. As entrevistas ocorreram em 30 de março de 2023. Como resultado, uma crítica a uma visão centralizada no bem-estar do cidadão em detrimento do ambiente físico/ecológico/cosmológico do município investigado. Constatamos a necessidade de uma alteridade radical entre humanos e não humanos naquele ambiente, o que reverbera em laços sociais e contratos naturais (psicoafetivos) na inflexão de projetos, produtos e novas diretrizes a partir desta nova sensibilidade/sociabilidade.
Palavras-chave: Psicologia da Saúde, virada ontológica, Políticas Públicas em Saneamento Básico
Abstract
The Health Psychology under “ontological turn” is what we propose here. Based on a case study, more precisely on the affective alliances broken in public sanitation policies in the interior of Bahia, Brazil, we will seek to instigate the imagination of health psychologists towards a new psychology of health. Concepts such as “human development”, “human social progress”, “health for all”, “quality of life” and “human well-being”, which define the basic sanitation public policies, will be reviewed in their anthropocentric aspect. The intention is to outline another guideline for the field of Psychology and Health. As a methodological approach, we conducted exploratory research with 8 (eight) interviewees, 5 (five) managers, and 3 (three) operators, all residents of the area, and inserted into a basic sanitation program, in a municipality in the southwest of Bahia. The interviews took place on March 30, 2023. Therefore, we will start from a criticism centered on the well-being of the citizen to the detriment of the physical/ecological/cosmological environment. Thus, we evaluated ourselves the need for a radical alterity between humans, and non-humans and that reverberates in social ties and natural (psychoaffective) contracts in the inflection of projects, products, and new guidelines based on this new sensitivity/sociability.
Keywords: Health Psychology, ontological turn, Public Policies in Basic Sanitation
Resumen
La Psicología de la Salud bajo “giro ontológico” es lo que proponemos aquí. Con base en estudio de caso, más precisamente en las alianzas afectivas rotas en las políticas públicas de saneamiento en el interior de Bahia, Brasil, buscaremos instigar la imaginación de los psicólogos de la salud hacia una nueva psicología de la salud. Conceptos como “desarrollo humano”, “progreso social humano”, “salud para todos”, “calidad de vida” y “bienestar humano”, que marcan las políticas públicas de saneamiento básico, serán revisados en su vertiente antropocéntrica. La intención es esbozar otra directriz para el campo de la Psicología y la Salud. Como abordaje metodológico, se realizó una investigación exploratoria con 8 (ocho) entrevistados, 5 (cinco) gestores y 3 (tres) operadores, todos residentes de la zona e insertados en un programa de saneamiento básico, en un municipio del suroeste de Bahía. Las entrevistas tuvieron lugar el 30 de marzo de 2023. Por lo tanto, partiremos de una crítica centralizada en el bienestar del ciudadano en detrimento del entorno físico/ecológico/cosmológico. Finalmente, constatamos la necesidad de una alteridad radical entre humanos y no humanos y que reverbera en los lazos sociales y contratos naturales (psicoafectivos) en la inflexión de proyectos, productos y nuevas pautas a partir de esta nueva sensibilidad/sociabilidad.
Palabras clave: Psicología de la Salud, giro ontológico, Políticas Públicas en Saneamiento Básico
Introdução
Este artigo é um desdobramento parcelar de dissertação de mestrado em Psicologia da Saúde. Trata-se de um estudo empírico em área rural de um munícipio do sudeste baiano, no semiárido, com população de 12 mil habitantes. Destes, 9.246 residem em área rural, o que corresponde a 71,34% (IBGE, 2017; 2010). Seu pertencimento ao chamado polígono das secas e população majoritária rural são questões de interesse para esta pesquisa, que se detém na implementação de tecnologia social empregada pelo Programa Água Doce (PAD), do Ministério do Meio Ambiente (2012), política pública que promove acesso à água de qualidade para o consumo humano por meio de sistema de dessalinização de águas subterrâneas, não apropriada para tal consumo. Partindo da questão que é o título deste artigo, busca-se introduzir a emergência da “virada ontológica” como nova orientação e consolidação às pesquisas em Psicologia da Saúde.
A “virada ontológica” é um movimento surgido nos anos 1990, sobretudo no campo da Antropologia (Sá Júnior, 2014), que questiona o método empregado em toda a ciência moderna, das ciências naturais às humanas, o que inclui a Psicologia (Belo, 2018). A “virada ontológica” aponta a limitação de divisões conceituais, em ciência moderna, tais como: natureza x cultura, sujeito x objeto, sociedade x indivíduo, sociedade x meio ambiente, ciências humanas x ciências biológicas x tecnologia. Essas divisões conceituais estariam em uma perspectiva antropocêntrica em que o sujeito Homem é o único que pensa e age, enquanto plantas, animais, ambientes e máquinas seriam compreendidos como manipuláveis, passivos, cobaias, frios e sem intencionalidade pelo primeiro. A “virada ontológica” busca, portanto, evidenciar a intencionalidade/ação, a ontologia negligenciada dos não humanos (animais, plantas, ambientes e máquinas) em ciência moderna, demonstrando também as influências dos não humanos sobre os humanos. E, no campo da Psicologia da Saúde sob “virada ontológica”, mais especificamente na implementação de política pública em saneamento básico em áreas rurais, como não humanos (solos, esgotos, bactérias, água, sal, entre inúmeros outros) manipulam, influenciam, fazem política, são pontos de inflexão e/ou fomentam desejos e realizações de coletivos humanos.
Os caminhos do reconhecimento institucional da Psicologia da Saúde estão atrelados à dinâmica do campo da Saúde, que, a partir da Conferência de Alma-Ata, organizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), no Cazaquistão, em 1978, procurava ampliar o conceito de saúde para todos os países associados, a partir do slogan “Saúde para todos no ano 2000”, necessitando, portanto, de uma maior interdisciplinaridade entre várias áreas do conhecimento, o que incluía a Psicologia. A Atenção Primária era o foco da conferência, como estratégia a ser ofertada a toda população e articulada por meio de sistemas de saúde, associando noções de integralidade da assistência, articulações intersetoriais, participação comunitária popular, cidadania e esforços de educação (Facchini, 2018).
O campo da Psicologia da Saúde surgiu formalmente em 1973, a partir da American Psychological Association (APA), e ele está vinculado inicialmente à colaboração entre Psicologia e Medicina (Ribeiro, 2011). Psicólogos/as/gues passaram a colaborar com médicos/as/es, nos Estados Unidos, recobrando processos psíquicos de pacientes, após a Segunda Guerra Mundial, em que reabilitação de doenças físicas era uma constante. Na mesma década, a Conferência de Arden House, realizada em Nova York, teve como pauta a proposição de recomendações para formação em Psicologia da Saúde, em que foi afirmada sua distinção pelo próprio corpo teórico e científico: Stone et al. (1979), ao redirecionarem as análises psicológicas a partir do conceito ampliado de saúde, abrem o diálogo entre Psicologia e Saúde; Matarazzo (1980) dá ênfase à aplicação da Psicologia aos processos de saúde\doença. Diante da trama da constituição da Psicologia da Saúde, Machado e Kind (2019) afirmam que “esses embates indicam que ainda não se conseguiu estabelecer uma definição muito clara que permeia os debates acerca da Psicologia da Saúde” (Machado & Kind, 2019, p. 3); porém, os autores sinalizam que a expansão do campo está diretamente relacionada ao amadurecimento de outro campo, o da Saúde.
Quanto à Psicologia da Saúde no contexto brasileiro, segundo Machado e Kind (2019), são nos programas de pós-graduação, com suas linhas de pesquisa, na estruturação de periódicos e conferências, que se averigua o campo da Psicologia da Saúde, construindo o percurso na demarcação dentro da área de Psicologia. Machado e Kind (2019) apresentam dois movimentos no campo da Psicologia da Saúde no Brasil. O primeiro diz respeito ao movimento de se constituir, como projeto de ciência, por meio da criação da Associação Brasileira de Psicologia da Saúde (ABPS), na qual tem sua primeira diretoria executiva composta, exclusivamente, por docentes de programas de pós-graduação, com envolvimento em projetos de pesquisa, editoração de revistas científicas, atuação em eventos científicos, dentre outros. Quanto ao segundo movimento, a Psicologia da Saúde como prática profissional, possibilidade de intervenção no campo da saúde, deste modo, correspondendo a um subcampo especializado. Porém, e ainda com Machado e Kind (2019), o campo da Psicologia da Saúde necessita de maior consolidação no meio acadêmico, marcado por produzir consensos, bem como sanar dificuldade de uma entrada mais consolidada na própria prática profissional.
Nesses dois aspectos, este artigo busca alinhar esse novo campo emergente, o da Psicologia da Saúde, com a “virada ontológica” em Psicologia, movimento também emergente no âmbito das ciências humanas em geral. Partindo de estudo de caso com referência ao Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), do Ministério do Desenvolvimento Regional (2019), principal instrumento das políticas públicas de saneamento básico, que se desdobra no Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR), articulado em um município do sudoeste baiano, busca-se avançar em técnicas de pesquisa em Psicologia da Saúde sob “virada ontológica” à consolidação e efetivação do papel do/a/e psicólogo/a/gue da saúde nas políticas públicas em Saúde, voltadas para populações rurais no Brasil, com base na Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e Águas (Ministério da Saúde, 2013).
Tendo em vista que o abastecimento de água potável compreende um dos quatro eixos integrados no PLANSAB, com formulação iniciada em 2008, com o Pacto pelo Saneamento Básico: mais saúde, qualidade de vida e cidadania, cujo processo consiste em macrodiretrizes e estratégias direcionadas a um futuro de 20 anos (2014-2033), a produção de elementos conceituais para o saneamento básico é o adensamento das reflexões sobre direitos humanos; promoção da saúde e erradicação da extrema pobreza. Posição afirmada no pacto pelo saneamento e formulada por panorama extenso do saneamento no país (Heller & Gomes, 2014; Rezende, 2014). O saneamento básico, por fim, compreende a seguinte organização de serviços públicos: abastecimento de água potável; esgotamento sanitário; limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; drenagem e manejo de águas pluviais urbanas, previstos na Lei nº 14.026 (2020). Ou seja, serviços que agenciam a possibilidade da vida humana no ambiente, condições básicas cuja garantia associa-se à cidadania.
Dentre as ações de saneamento básico, levar água potável a uma comunidade deve ser a primeira ação sanitária social que um programa de saneamento deve implementar, segundo o Ministério da Saúde (2019). O conjunto de infraestrutura para o abastecimento de água varia de acordo com aspectos ambientais (disponibilidade dos chamados recursos hídricos), territoriais (ocupação e uso do espaço) e sociais (hábitos, cultura). Os serviços multidimensionais que levam em conta condições sociais, ambientais, culturais e econômicas compõem o eixo norteador das atuais políticas de saneamento rural, o qual busca uma composição sustentável de “promoção da saúde humana” e “equilíbrio ambiental”, em prol do exclusivo bem-estar humano. E é nesse sentido que as tecnologias sociais figuram com importância à sustentabilidade do saneamento. Para Dagnino: “[As tecnologias sociais] partem da consideração do processo de trabalho em que se envolvem os seres humanos, no ambiente da produção de bens e serviços” (Dagnino, 2014, p. 139). Elas enquadram, sobretudo, a sustentabilidade nos termos em que as características dessa produção “deve assumir a forma de produzir para tornar-se funcional a um contexto socioeconômico particular e ao acordo social que ele engendra” (Dagnino, 2014, p. 140). Em síntese, Dagnino (2014) conceitua tecnologia social enquanto “resultado da ação de um coletivo de produtores sobre um processo de trabalho em função de um contexto socioeconômico” (Dagnino, 2014, p. 144).
No mais, a apropriação da terminologia tecnologia social perpassa grupos latino-americanos, composta pela interface da academia, movimentos sociais, empreendimentos solidários, órgãos do Governo e comunidades locais, todos empenhados na sistematização científica e tecnológica para proposição de soluções ao problema da exclusão social em áreas como a agricultura familiar, habitação popular, energias alternativas, reciclagem de resíduos, produção e conservação de alimentos, entre muitas outras, objetivando a inclusão social (Dagnino, 2010). E é aqui que a colaboração de uma Psicologia da Saúde sob “virada ontológica” surge para questionar (i) a centralidade exclusiva no bem-estar de humanos nesta política pública e (ii) solo, água e plantas como “recursos naturais”, isto é, prontos para serem explorados em política de investimento estatal.
Para tanto, e como ponto de partida à “virada ontológica” em Psicologia da Saúde, recobramos aqui o conceito de aliança afetiva em Krenak (2022), o qual diz respeito a afetos entre mundos não iguais de humanos e não humanos:
Esse movimento não reclama por igualdade, ao contrário, reconhece uma intrínseca alteridade em cada pessoa, em cada ser, introduz uma desigualdade radical diante da qual a gente se obriga a uma pausa antes de entrar: tem que tirar as sandálias, não se pode entrar calçado. Assim eu escapei das parábolas do sindicato e do partido (quando um pacto começar a cobrar tributo, já perdeu o sentido) e fui experimentar a dança das alianças afetivas, que envolve a mim e uma constelação de pessoas e seres na qual eu desapareço: não preciso mais ser uma entidade política, posso ser só uma pessoa dentro de um fluxo capaz de produzir afetos e sentidos. Só assim é possível conjugar o mundizar (Krenak, 2022, p. 82–83).
Partimos da crítica ao conceito de tecnologia social em seu caráter antropocêntrico. Propomos, por conseguinte, a disrupção de não humanos em políticas de saneamento básico por meio da evidência das interdependências psíquicas de vários seres (humanos e não humanos) em alianças afetivas (Krenak, 2022; Stengers, 2023), demonstrando que a proposta desta política pública é a de uma aliança demoníaca, no sentido proposto por Deleuze e Guattari: “uma aliança demoníaca que se impõe do fora e que impõe sua lei a todas as filiações” (Deleuze & Guattari, 2012, p. 32). Este artigo, portanto, busca descentralizar o humano, colocando-o como interdependente de todos os outros não humanos, na qual a “virada ontológica”, em sua busca da paridade/simetria entre humano e não humano (crítica ao antropocentrismo), enseja o/a/e psicólogo/a/gue da saúde na constatação de processos psicológicos no ato de mundizar, tal qual proposto por Krenak (2022).
Método
O método adotado foi o descritivo exploratório, com abordagem qualitativa, na compreensão sensível das alianças afetivas (de humanos e não humanos) na constituição da elaboração e execução da pretendida tecnologia social, empregada no PAD e aplicada em um município do sudoeste baiano. Política pública que promove acesso à água de qualidade para o consumo humano, por meio do aproveitamento sustentável de águas subterrâneas em sistemas de dessalinização. As entrevistas foram semiestruturadas e executadas em 30 de março de 2023. Os critérios de inclusão para a entrevista foram: os/as/es signatários/as/es do acordo de gestão compartilhada e os/as/es operadores/as/es do sistema de dessalinização do PAD, que residem nas localidades atendidas pelo Programa. No total de 8 (oito) entrevistados/as/es, 5 (cinco) eram gestores/as/es e 3 (três) operadores/as/es, todos/as/es moradores/as/es da área. Como método, a observação nas falas dos participantes sobre a influência dos não humanos (água, sal, máquinas, solo, animais, entre outros) e que não constam na compreensão do conceito de tecnologia social do Programa. Os critérios de exclusão foram: moradores/as/es das localidades que não compõem o grupo gestor e os que não são operadores/as/es do sistema de dessalinização. Os instrumentos de coleta de dados foram a observação e a escuta, na busca de: 1) informações sobre as ausências das ações do solo, da água, das máquinas, entre outros não humanos, na configuração do conceito de tecnologia social empregado; 2) verificar se havia execução efetiva do conceito de tecnologia social; e 3) investigar qual era o conceito de qualidade de vida em saneamento básico pretendido. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal da Bahia (IMS/UFBA), via Plataforma Brasil, sob parecer número 5.826.940.
Resultados e Discussão
O município investigado é um dos 417 municípios do Estado da Bahia, situado na região nordeste do Brasil. Possui em torno de 12 mil habitantes, sendo 28,66% localizados em área urbana e 71,34% em área rural. Sua área é de 1.489,80 km² e a densidade populacional é de 8,70 hab./km², enquanto o Estado tem, em média, 26,54 hab./km². O município está inserido no bioma caatinga e na Região Hidrográfica Atlântico Leste. O Instituto de Água e Saneamento (IAS) apresenta que 59,2% da população do município é atendida com drenagem de águas pluviais, porcentagem elevada diante da média de 16,32% do Estado e 25,96% do país – dado que pode revelar a utilização de água de chuva como recurso hídrico por meio de sistemas de captação dessa água em domicílio. Trata-se de investimento massivo em cisternas, perceptível ao adentrar a paisagem do rural, o qual se confirma com a narrativa dos moradores. O Programa Água para Todos (PAT), criado pelo Governo do Estado da Bahia, em 2007, como também o PAD, apresentam como objetivo o acesso à água em qualidade e quantidade, propiciando o “direito universal humano”. Visa diversas formas de utilização, ofertando serviço por meio de uma gestão integrada, sustentável e dita “participativa”, articulada e integrada a componentes de “sustentabilidade ambiental”. Engloba um conjunto de ações ambientais e de saneamento por meio das linhas de ação e serviços: abastecimento de água, esgotamento sanitário, meio ambiente e projetos socioeconômicos, saneamento integrado e estudos estratégicos.
Em âmbito nacional, desde 2013, o Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e Outras Tecnologias Sociais de Acesso à Água (Programa Cisternas) tem focado na terminologia tecnologia social de acesso à água. A tecnologia social é a contratualização com um conjunto de técnicas e de métodos aplicados para a captação, o armazenamento, o uso e a gestão da água, desenvolvida a partir da interação entre o conhecimento técnico apropriado e implementado com a participação da comunidade (moradores locais).
No que se refere ao PAD, a utilização da terminologia predominante é a mobilização social, o que contempla a mobilização de humanos e manutenção destes em suas necessidades de consumo. Centrado no bem-estar exclusivo de humanos, procura gerar modelos de planejamento para mobilização social humana à “boa execução” do sanear (Bahia, 2022). Como apontam Henriques, Braga e Mafra (2002), o significado do verbo mobilizar corresponde a dar movimento ou pôr em movimento e circulação humanos; acresce a conceituação ao se equiparar mobilização à convocação de vontade para determinado propósito que leve à mudança da realidade compartilhada socialmente por humanos. O conceito de mobilização social, por fim, parte de bases sociais humanas e sistema político dito democrático e do enfoque aos problemas que compõem o meio social humano, conforme pontuado por Toro e Werneck (2007). De outro modo: “é preciso colocar estes problemas reais [que prejudicam o exclusivo bem-estar humano] em movimento e circulação na sociedade, para o que é essencial estabelecer estratégias comunicativas” (Henriques, Braga e Mafra, 2002, p. 3). O horizonte ético da mobilização social é o projeto de nação expresso, no caso do Brasil, pela Constituição Federal, que opta pela soberania nacional, cidadania, dignidade da pessoa humana, pelos valores do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político.
Desde 2012, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA) coordena, na Bahia, o PAD, ação fomentada pelo Governo Federal nos dez estados do semiárido brasileiro, que visa ao estabelecimento de uma política pública. Em 2022, nos 10 anos de PAD no Estado da Bahia, e em vias de finalização das implantações e da manutenção de 291 sistemas de dessalinização em 55 municípios, Estado com maior número de sistemas instalados, os critérios para atendimento são, prioritariamente: os municípios com menores Índices de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M); altos percentuais de mortalidade infantil; baixos índices pluviométricos e com dificuldade de acesso aos recursos hídricos. Para isso, foi desenvolvido, pelo Governo Federal, o Índice de Condição de Acesso à Água do Semiárido (ICAA), a partir do cruzamento dos indicadores acima citados (Bahia, 2022).
Conforme o Relatório Executivo do Programa Água Doce Bahia (Bahia, 2022), objeto de nossa pesquisa, são definidas três sequências. Observa-se que o ICCA compreende critérios muito específicos que não levam em consideração demais determinantes socioambientais em saúde, largamente utilizados em pesquisas no campo da Saúde Coletiva (Buss, 2000). Na primeira fase, o diagnóstico inclui as análises físico-químicas da água dos poços e a caracterização socioambiental das comunidades, testes de vazão e elaboração dos projetos executivos dos sistemas de dessalinização. Na segunda fase, a implantação do sistema por meio das obras civis e instalação dos dessalinizadores, da elaboração dos Acordos de Gestão Compartilhada e das Palestras/Oficinas do componente sustentabilidade ambiental. Finalmente, na última fase, o monitoramento e a manutenção dos sistemas de dessalinização/obras civis, da mobilização social e das análises das águas que compõem o sistema. Para essa fase, a SEMA e a Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), instituição vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Rural do Estado da Bahia (SDR), assinaram um contrato para prestação de serviço técnico e social nos sistemas implantados pelo PAD (Bahia, 2022).
Na realidade do município investigado, temos os/as/es operadores/as/es e gestores/as/es com vínculos com a prefeitura municipal, o que representa uma alternativa diante da falta de mobilização social, já que o PAD não entra em cadeia produtiva com mudança social e qualidade de vida, na perceptiva da comunidade, e já que é complementar a outras formas de abastecimento de água, como, por exemplo, carros-pipa e cisterna, ficando em evidência, discretamente, o impacto nos serviços de saúde. Nesta perspectiva, há a necessidade de processos de implementação com ditas tecnologias sociais adequadas para cada localidade, isto é, com o maquinário de dessalinização beneficiando a população humana, em que o Diagnóstico Rural Participativo (DRP) passa a ser visto como expressivo (Verdejo, 2010).
Cabe, portanto, a questão: no que toca a tais definições sobre mobilização social e tecnologia social, o que o/a/e psicólogo/a/gue da saúde sob “virada ontológica” pode reparar no trato do papel que o Programa Água Doce incube aos não humanos (solo, água e máquinas)? Observamos que os não humanos citados nessa política de tecnologia e mobilização social são meros “recursos” disponíveis a serem explorados/investidos (sejam naturais, sejam tecnológicos), isto é, “recursos” passivos, manipuláveis e sem influência no chamado “poder de decisão”. E é nesse sentido que a perspectiva da “virada ontológica” exige uma nova analítica no campo da Psicologia da Saúde, no que recobra Krenak: “Recurso natural para quem? Desenvolvimento sustentável para quê? O que é preciso sustentar?” (Krenak, 2020, p. 22). E continua: “Essa ideia suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo” (Krenak, 2020, p. 23).
Capacitação de água subterrânea como “recurso” (pior ainda, finito) em benefício de uma espécie, a humana, transformada em “o cidadão de direitos”, tudo isso sob o discurso de “igualdade de condições” e que tem negligenciado o papel das alianças afetivas com os não humanos (solo, água, plantas e animais nativos) na construção de um habitat para “todos/as/es” em áreas rurais, haja vista que os únicos que merecem ter qualidade de vida com o saneamento básico são os cidadãos humanos que ali chegaram e por direito. A “virada ontológica” que abarca todas as ciências humanas e para além delas, em que a Psicologia da Saúde também se aplica, busca, portanto, descentralizar essa necessidade de beneficiar apenas uma espécie, como se esse beneficiamento fosse a solução para todas as outras. Ora, saneamento básico em áreas rurais beneficia humanos em vulnerabilidade social, mas amplia a devastação de uma área, canalizando águas subterrâneas, abrindo valas, desmatando a caatinga, abrindo novas estradas. Dito de outro modo, é uma ideia de “desenvolvimento sustentável” associada a “progresso social humano”, traduzida por política de saneamento básico, em prol de um bem-estar para humanos. A “virada ontológica” exige, portanto, que o campo da Psicologia da Saúde rompa com essa ideia de “progresso civilizatório” que se tornou uma espécie de “mantra” entre sanitaristas no campo da Saúde Pública/Saúde Coletiva, por mais que a pauta do saneamento básico em áreas rurais seja criar estratégias novas para interferir nos ciclos de vetores de doenças para humanos, mantendo o chamado “processo natural o mais intocado possível”, por meio de sanitários secos, compostagem, observação dos níveis de fossa e de poços, entre outros. Ora, é justamente no “interferir” que o papel do/a/e psicólogo/a/gue da saúde sob “virada ontológica” pode se inserir, fazendo perceber se tal interferência contempla um “comum” para todos (humanos e não humanos que habitam em áreas rurais), traduzido por alianças afetivas (Krenak, 2022). Por exemplo, o que pensa o solo, os passarinhos, as cobras, as minhocas, os peixes, as onças, o ar sobre a construção de cisternas, qualidade de vida e mobilidade social (humana) em seu território?
E é assim que esta pesquisa buscou, em entrevistas com gestores/as/es, operadores/as/es e moradores/as/es, contemplados pela tecnologia social ofertada pelo Programa Água Doce, os elementos para uma aliança afetiva entre humanos e não humanos na produção da “virada ontológica” em Psicologia da Saúde, rompendo, portanto, com o ideário das políticas de saneamento básico traduzido por “desenvolvimento humano” e “progresso social/tecnologia social humano”.
Neste sentido, seis categorias de análises foram formuladas:
E, para romper com o ideário de saneamento básico sinônimo de “desenvolvimento humano” e “progresso social humano”, recobramos o que nos ensina Belo (2018) sobre a “virada ontológica” em Psicologia:
Trata-se . . . de defender que muitos mundos e existentes [humanos e não humanos] são possíveis e são compostos de diferentes maneiras e que para se ter acesso a eles é necessário ultrapassar os critérios exclusivos de nossa própria ontologia naturalista e modernista. Para a psicologia . . ., o primeiro passo seria de sair da ideia de cosmovisão dos outros e entrar de vera [sic] na cosmopraxis dos outros. Não sairemos imunes, mas talvez assim evitemos novas guerras, não só entre disciplinas – isto não é muito grave, mas – isto sim é grave – entre mundos distintos (Belo, 2018, p. 5).
Para adentrar na cosmopraxis dos outros (humanos e não humanos em alteridade radical, isto é, em aliança afetiva), recuperamos trechos das entrevistas com gestores/as/es e operadores/as/es. Apesar de apontarem as influências e interações (alteridade) que os não humanos (solo, água e máquinas) também exercem na construção de políticas públicas, reservam a estes últimos a uma espécie de pano de fundo, à posição de meros “recursos” naturais e tecnológicos para o bem-estar/consumo humano.
O que melhorou nossa localidade foi a energia elétrica, implantada há cerca de 22 anos na época do PT, Programa Luz para Todos; isso aqui era um deserto total, aí começou-se a plantar com irrigação, começou a informatizar, chegou internet, muitas facilidades, começou a furar bastante poços artesianos, fazer plantio. Hoje aqui quase toda semana sobem de três a quatro caminhões de verdura para a cidade vizinha, de melancia foi retirado 12 caminhões, plantou 5 hectares (Gestor 1, entrevista realizada em 02/04/23).
Há uns oito anos o pessoal da CERB apareceu aí, não foi indicação nossa nem nada, eu sei que o município foi sorteado e eles procuraram poços que eles já haviam furado, esse mesmo foi a SERB há 40 anos, que não era para consumo humano por ser salobra, só para consumo animal. Aí eles começaram a aparecer ali, passaram em nossa cidade, fizeram o levantamento de quantos poços da CERB que já tinham instalados, aqui, por ser um poço antigo que nunca havia dado nenhum problema de falta de água, eles chegaram um dia para ver como estava, se estava funcionando, aí marcaram, foram na casa de . . . dono da terra, conversou com ele se poderia fazer um teste com a vazão do poço para ver se aguentava o sistema, então tudo ok com o poço. Outra questão, foi procurar uma terra para instalar o dessalinizador, essas terras são de doação, porque a CERB não compra, doa o pedaço de terra e eles fazem a instalação, fez um levantamento de quantas casas tem na localidade, que precisava de um valor mínimo de casa, fez, deu certo, abrangeu. Aí vieram aí, fez uma reunião com o povo da localidade, explicou direitinho como funcionava o Programa, quem poderia ser beneficiário, que não poderia cadastrar muita família e que talvez o sistema não daria conta, porque mesmo que a vazão seja boa, os maquinários não conseguem fazer uma vazão muito alta de tratamento. Aí fez a reunião, fez o acordo, todo mundo assinou, todo mundo achou bonito (Operador 1, entrevista realizada em 02/04/2023).
Aí esse termo de acordo todo mundo assinou, precisava de um grupo para gerenciar isso, outros para fiscalizar, outros para distribuição dessa água como recurso (Operador 1, entrevista realizada em 02/04/2023).
Chegada da luz elétrica, aumento de cisternas, terras herdadas, recursos naturais e tecnológicos à disposição do bem-estar humano, participação social, ou melhor, “desenvolvimento humano” e “progresso social humano” são o marco desse saneamento básico. Porém, recobra Serres: “Estranhamente mudo sobre o mundo, esse contrato [social], dizem, nos fez deixar o estado de natureza para formar a sociedade. A partir do pacto, tudo se passa como se o grupo que o assinou, ao despedir-se do mundo, não mais se enraizasse senão em sua história” (Serres, 1991 p. 47). Observamos que o PAD, por expressão dos ciclos naturais, mantém uma dinâmica específica com os/as/es moradores/as/es (humanos). Vejamos mais alguns trechos de entrevista:
Mesmo com um tempo desse, como você está vendo, com um tanto de água [como recurso] desse aí, as comunidades mais afastadas não vêm buscar essa água, muita água em casa, né, pro povo a facilidade, mas mesmo assim, em tempo de seca, no mês de julho, até finalzinho de outubro e novembro, que é a época que mais chuvosa, muita água, muito consumo de água aí, idoso, recém-nascido o povo busca de longe por ser água potável (Morador 1, entrevista realizada em 02/04/2023).
Nossa região melhorou mesmo, teve uma evolução muito grande depois da energia elétrica! Depois da energia elétrica, tudo mudou em nossa vida (Morador 2, entrevista realizada em 02/04/2023).
Lembro de cinco maquinários do PAD na região. O pessoal da CERB comparece de dois em dois meses para ver o maquinário, se está funcionando ou se tem algum problema, vêm e fazem a manutenção, aí eles passam em cinco localidades no município. Esse maquinário está instalado, mas deram dois anos de garantia pela CERB, se queimar uma bomba dessa, a verba que arrecada não dá para . . . eles até hoje estão dando uma força, mas se queimar uma bomba dessas eu não sei se vão arcar com a despesa. Dependeria da boa vontade do poder público, mas isso não é obrigação deles, vêm se quiser. Retirar o sal de uma água é uma tecnologia muito avançada (Dois moradores, entrevista realizada em 02/04/23).
Nos três recortes de entrevista, o consumo das águas subterrâneas é sinônimo de “desenvolvimento humano” e “progresso social humano”. Elementos, tais como finitude do lençol freático, maquinária que necessita de reparo regularmente, plantas que precisam ser regadas, energia elétrica que beneficia apenas os humanos, tudo isso e muito mais, são transformados em “cenário” ou “contexto” de fundo, reservando aos humanos o palco central de beneficiamento, compreendidos como cidadãos de direito. Ainda, com Serres: “Alguns organismos desapareceram da superfície da Terra em razão de seu imenso tamanho, dizem. Isso nos espanta ainda que as coisas maiores sejam as mais frágeis, como a Terra inteira, o Homem na megalópole ou Ser-em-toda-parte, Deus, enfim. Há muito fruindo da morte dessas grandezas tão frágeis” (Serres, 1991, p. 61). A “virada ontológica” exige do campo da Psicologia da Saúde a centralidade na influência das alianças afetivas (Krenak, 2022) de grandezas tão frágeis, dos não humanos como ponto de inflexão desta política. É preciso expor à crítica a pretensão de um saneamento básico centralizado em um conceito de “saúde para todos/as/es”.
Eles vieram aí, vieram engenheiro, arquiteto, se tivesse algo errado condenava a obra e começava tudo de novo, tudo bem orientado, fiscalizado. Tem a fossa do banheiro, tudo bem feito, essa cerca por conta deles também e o reservatório de água potável (Morador 1, entrevista realizada em 02/04/2023).
A assistente social só veio no início, na época mesmo das reuniões . . . O ideal seria fazer reunião a cada três meses para fazer um balanço dos recursos que entra, porque essa água é distribuída, mas tem uma taxa mínima, para fazer manutenção (Morador 2, entrevista realizada em 02/04/2023).
Aí vieram aí, fez uma reunião com o povo da localidade, explicou direitinho como funcionava o Programa, quem poderia ser beneficiário (Morador 3, entrevista realizada em 02/04/2023).
Nos trechos acima, toda problemática do saneamento é centrada em direito à cidadania, à água potável, à qualidade de vida para humanos. Ou, como diria Serres: “A natureza se reduz à natureza humana, que se reduz seja à história, seja à razão. O mundo desapareceu. O direito natural moderno se distingue do clássico por esta anulação. Resta aos homens vaidosos sua história e sua razão” (Serres, 1991, p. 47).
Propomos, portanto, a Psicologia da Saúde sob “virada ontológica”, que se desloca da centralidade do humano. Entretanto, como contratualizar com os não humanos, como criar alteridade? Como tirar as sandálias antes de entrar (Krenak, 2022)? A Psicologia da Saúde, como outras ciências humanas sob “virada ontológica”, por via institucional e dentro de processos de trabalho, teria a capacidade de criar estratégias para tanto? E é aqui que recobramos o conceito de cosmopolítica, proposto por Stengers:
O cosmos, aqui, deve, portanto, ser distinguido de todo cosmos particular, ou de todo mundo particular, tal como pode pensar uma tradição particular. E ele não designa um projeto que visaria a englobá-los todos, pois é sempre uma má ideia designar um englobante para aqueles que se recusam a ser englobados por qualquer outra coisa. O cosmos, tal qual ele figura nesse termo, cosmopolítico, designa o desconhecido que constitui esses mundos múltiplos, divergentes, articulações das quais eles poderiam se tornar capazes, contra a tentação de uma paz que se pretenderia final, ecumênica, no sentido de que uma transcendência teria o poder de requerer daquele que é divergente que se reconheça como uma expressão apenas particular do que constitui o ponto de convergência de todos (Stengers, 2018, p. 446–447).
Este novo olhar sobre a mesma questão traz um redirecionamento do papel do/a/e psicólogo/a/e da saúde na elaboração ou refutação de projetos em políticas públicas no campo da Saúde. Ou melhor, sob “virada ontológica” em ciências humanas, no que a Psicologia da Saúde pode contribuir? Este artigo não tem a resposta, mas ele tem algumas pistas: 1) a própria concepção de tecnologia social é antropocêntrica por não fazer enxergar que os não humanos estão em alianças afetivas (Krenak, 2022) nas áreas rurais; 2) as políticas de saneamento básico para “todos/as/es” estão privilegiando os humanos e como dentro desse privilégio vai se criando uma tecnologia e mobilização social de humanos, em que a natureza aparece sem intenções, passiva, pronta a ser explorada/investida; 3) a “virada ontológica” em ciências humanas conduz o campo da Psicologia da Saúde ao reconhecimento das alianças afetivas entre vários existentes (humanos e não humanos); 4) os não humanos não podem ser compreendidos como meros recursos naturais ou tecnológicos; 5) a “virada ontológica” exige que a Psicologia da Saúde rompa com qualquer abordagem “centralizada na pessoa” para, finalmente, centralizar-se no mundo (interações entre humanos e não humanos, uns influenciando os outros).
A Psicologia da Saúde, com o arcabouço teórico e prático da “virada ontológica”, estaria preparada? Este artigo é um primeiro passo.
Nossa sensibilidade tem que ser repensada para além dos seres humanos, tem que incluir abelhas, tatus, baleias, golfinhos. Meus grandes mestres da vida são uma constelação de seres – humanos e não humanos . . . . Foi uma revelação que me veio como um mantra: “sim, nós podemos muito, mas nem tudo”. Um aprendizado que recebi em fricção com a natureza (Krenak, 2022, p. 101–102).
Considerações Finais
Ao pontuarmos o advento e a importância da “virada ontológica” em Antropologia para o campo da Psicologia da Saúde, recobramos um novo olhar do/a/e psicólogo/a/gue da saúde sobre a constituição das alianças afetivas (Krenak, 2022) entre humanos e não humanos. A partir de estudo de caso, isto é, de políticas de saneamento básico como um excepcionalismo humano, centralizado no conceito de tecnologia e mobilização social na implementação e manutenção do Programa Água Doce em um município do sudoeste baiano, buscou-se explicitar uma política egoísta, beneficiária de uma única espécie.
A “virada ontológica” em Antropologia, que começa a repercutir no campo da Psicologia da Saúde, é um movimento recente, ainda em andamento e consolidação, que busca, sobretudo, descolonizar o método científico, centralizado no humano, ou, se preferirem, na pessoa, pois, e recobrando Serres: “Amar somente os próximos ou semelhantes só leva à equipe” (Serres, 1991, p. 62).
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Recebido em: 12/05/2023
Última revisão: 03/11/2023
Aceite final: 20/11/2023
Sobre os autores:
Otavio Ribeiro Lago Netto: Mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista com Residência Multiprofissional em Saúde da Família com Ênfase em Saúde da População do Campo, pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ/ EGF). Psicólogo, com bacharelado e licenciatura pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: otaviolago1@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0009-0007-1228-5006
Paulo Rogers Ferreira: Doutor em Antropologia pela Université Laval, Canadá. Professor adjunto 2 no Instituto Multidisciplinar em Saúde e professor permanente no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde do Instituto Multidisciplinar em Saúde da Universidade Federal da Bahia (PPGPS/UFBA). Fundador e coordenador do Centro Baiano de Pesquisa em Antropologia Médica (CBPAM/UFBA). E-mail: paulo.rogers@ufba.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3686-2449
doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v15i1.2369