Avaliação da Percepção Médica sobre o Cuidar/Curar para a Saúde Psicossomática

Evaluation of the Medical Perception of Care/Cure for Psychosomatic Health

Evaluación de la Percepción Médica del Cuidado/Cura para la Salud Psicosomática

Gabriela Garcia Ceron

Lazslo Antonio Ávila

Gláucio Silva Camargos

Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto

Resumo

A conexão entre a Psicanálise e a Medicina Psicossomática preconiza uma assistência médica de qualidade com vistas à saúde integral do indivíduo. Objetivos: Investigar a perspectiva de médicos quanto aos fatores que influenciam o conceito de saúde psicossomática e se a psicanálise contribui com a medicina. Método: Realizamos um estudo exploratório, descritivo e transversal, com análise qualitativa, por meio de questionários estruturados. Trinta e um médicos de diversas especialidades, do setor público e privado do Estado de São Paulo, participaram do estudo. Os questionários foram enviados e devolvidos por correio eletrônico no período de maio a novembro de 2017. Foram analisados com base na reunião dos dados, de modo a se ter uma descrição geral da amostra. Resultados: Dentre os 31 participantes, pudemos observar diversas especialidades, e a predominante foi a Psiquiatria, seguida de Clínica Médica e Cardiologia, representados em porcentagem. A maior parte dos entrevistados apresentou participação na disciplina de Psicologia Médica durante a sua formação e considera as premissas da psicossomática essenciais para compreender o ser humano de maneira biopsicossocial e desenvolver um elo médico-paciente adequado. Conclusão: Na perspectiva dos entrevistados, os fatores biopsicossociais são vistos como influenciadores na prática médica, independentemente da especialidade. A psicossomática foi considerada noção basal para exercício da medicina.

Palavras-chave: psicossomática, Psicanálise, Medicina

Abstract

The connection between Psychoanalysis and Psychosomatic Medicine advocates quality medical care with a view to the integral health of the individual. Aims: To investigate the perspective of psychosomatic health and whether psychoanalysis contributes to medicine. Method: We carried out an exploratory and descriptive study with qualitative analysis through alternative solutions. Thirty-one physician from different specialties, from the public and private sector of the State of São Paulo, participated in the study. Electronic submissions were described and delivered in the period from May to November of 2017. They were analyzed based on the collection of data in order to have a general description of the sample. Results: Among 31 participants, we observed many specialties, the predominant one being Psychiatry, followed by Internal Medicine and Cardiology, represented in percentage. Most of the interviewees participated in the Medical Psychology discipline during their training and consider the premises of psychosomatics essential to understanding the human being in a biopsychosocial way and developing an adequate doctor-patient bond. Conclusion: From the perspective of the interviewees, the biopsychosocial factors are seen as influencers in medical practice, regardless of the specialty. Psychosomatics was considered a baseline for the practice of medicine.

Keywords: psychosomatic, Psychoanalysis, Medicine

Resumen

La conexión entre el Psicoanálisis y la Medicina Psicosomática se hace esencial para una asistencia médica de calidad que busca la salud integral del individuo. Objetivos: Investigar las perspectivas de los médicos en cuanto a los factores que influencian el desarrollo y el mantenimiento de la salud psicosomática y si el psicoanálisis contribuye a la medicina. Método: Se realizó un estudio exploratorio, descriptivo, transversal, con análisis cualitativo, mediante cuestionarios estructurados. Participaron del estudio 31 médicos de diferentes especialidades, del sector público y privado del estado de São Paulo. Resultados: Entre los 31 participantes pudimos observar muchas especialidades, y la predominante fue la Psiquiatría, seguida de Clínica Médica y Cardiología, representados en porcentaje. Conclusión: Desde la perspectiva de los entrevistados, se considera que los factores biopsicosociales influyen en la práctica médica, independientemente de la especialidad. La psicosomática fue considerada una noción básica para el ejercicio de la medicina.

Palabras clave: psicosomática, Psicoanálisis, Medicina

Introdução

O termo “psicossomática” foi cunhado pelo psiquiatra alemão Heinroth, em 1818, para tentar explicar a insônia (Branco Vicente, 2005). Groddeck, em 1917, redimensionou o uso do termo na Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, publicando o “Condicionamento psíquico e tratamento de moléstias orgânicas pela psicanálise”, partindo do pressuposto de que as doenças são traduções orgânicas de interações psicofiosiológicas, e, portanto, são acompanhadas de uma significação. Este passa a ser considerado o marco inicial da Medicina Psicossomática. Essa atualização procura no significado da doença o valor simbólico dos sintomas, tendo como base a noção de que o ser humano apresenta predisposição inata à simbolização (Ávila, 2002; Cruz & Pereira, 2011).

Investigações posteriores de Alexander, no ano de 1932, indicaram distinções entre sintomas conversivos (expressões simbólicas de um conteúdo recalcado) e doenças psicossomáticas (respostas vegetativas a estados emocionais crônicos) (Branco Vicente, 2005). Nas duas situações, o paciente é compreendido pela escuta analítica, acreditando que o pensamento operatório, a precariedade onírica e a ausência de fantasia eram os elementos para compreender as doenças psicossomáticas em detrimento do sujeito que via órgão (Cruz & Pereira, 2011).

O termo psicossomático nos sistemas classificatórios CID-10 e DSM-IV trouxe algumas controvérsias. Os termos “psicogênico” e “psicossomático” foram admitidos nessas classificações pela gama de seus significados em diferentes línguas e tradições psiquiátricas. Desde então, novas categorias passaram a abranger os sintomas e quadros relativos a queixas, com e sem lesão, com fatores psicossociais em sua base etiológica (Zorzanelli, 2011). Esse redimensionamento baseia-se na ideia de que o adoecimento é um processo global e intrincado de fatores orgânicos e psicossomáticos. Dessa forma, classificar como psicossomático somente os casos em que o fator psicológico está evidente não seria coerente (Ávila, 2002, Zorzanelli, 2011).

Questões em Medicina Psicossomática

A concepção do processo saúde-doença abrange dois principais fatores: aqueles que podem estar associados com a manutenção e a promoção da saúde, e aqueles relacionados com os determinantes do processo de adoecimento (Ceron, 2020; Cruz, 2020). A busca para compreender os fenômenos psicossomáticos está associada à necessidade de uma melhor compreensão do ser humano e do processo de adoecimento (Cruz & Pereira, 2011). Tendo em vista que as relações entre doente, doença e medicina se instituem na trama histórica do existir humano, o desafio provocado pela psicossomática é uma tentativa de conciliar a psicanálise com a medicina (Teixeira, 2006; Queiroz, 2008).

Esse estado de coisas questiona a separação tradicionalmente feita entre doenças físicas e doenças psíquicas, como se fossem de essência distinta. Essa divisão é oriunda da tradição cartesiana que separa soma e psique (Castro et al., 2006). A atualização desses conceitos indica que o processo de adoecimento é global e acomete o organismo na sua universalidade, portanto não se deve classificar como processo psicossomático apenas aqueles que apresentam o fator psíquico evidente na etiologia da doença (Ceron, 2020; Zorzanelli, 2011).

A medicina se configura historicamente como prática social, regulada institucionalmente, cuja função é ajudar diante das circunstâncias de saúde e da doença. Assim, a terapêutica médica implica em fornecer ao paciente assistência em alguma forma de tratamento, anulando a dor, excluindo as expressões dos sintomas da doença e fazer o possível para evitar a morte (Ávila, 2002; Tavares, 2007; 2020). Nessa perspectiva, o tratamento médico vem evoluindo ao longo de sua história, consistindo em atuação médica com saber e técnicas próprias do médico, que são prescritos ao paciente, o qual se sujeita a elas para obter alívio em seus sofrimentos (Penteado et al., 2022).

Winnicott (2011) chama atenção para uma palavra simples existente em todas línguas vernáculas: CURA. Para o autor, se esta palavra pudesse falar, contaria uma história. As palavras possuem raízes etimológicas, possuem história. Analogicamente ao ser humano, às vezes, as palavras têm que batalhar para estabelecer e manter sua identidade. Numa esfera mais simples, o termo “cura” enfatizava um ponto de interseção entre a prática médica e a religiosa. Em suas origens, significa cuidado. O termo passou a adquirir outros significados no século XVIII e começou a conceituar determinados tratamentos médicos, por exemplo, a cura pela água. O século posterior adicionou-lhe característica do desfecho satisfatório. (Winicott, 2011; Ceron, 2020).

Embora essa classificação seja eficaz para a atuação médica, é necessário que a compreensão e o uso ampliado do conceito CURA esteja na base das práticas em saúde. A cura, na definição global, relaciona-se ao sucesso no ato de eliminar doenças ou suas causas e tende a se sobressair ao cuidado (Cruz, 2020; Winicott 2011).

Em sua prática, a especialidade de clínica médica possui uma habilidade excepcional de cuidar, porém necessita conhecer os tratamentos. Na outra extremidade, estão as outras especialidades médicas que se dedicam ao diagnóstico e à eliminação de patologias. Nessas, o cuidar é uma das várias dimensões da ação médica.

É necessário “descobrir que nosso trabalho se vincula a fenômenos inteiramente naturais e aos universais, algo que esperaríamos encontrar nas melhores poesias, filosofias e religiões” (Winnicott, 2011, p. 114; Lown, 2008). Assim, “a melhor cura será aquela que casar a arte com a ciência, quando corpo e espírito forem examinados juntos” (Ceron, 2020; Lown, 2008, p. 13).

A Psicologia Médica e a Psicossomática

Nas escolas de medicina, a disciplina de Psicologia Médica possui a função de preparar o médico para compreender o paciente (Aragaki & Spink, 2009; Marcolino & Cohen, 2008). Tem objetivo de transmitir conhecimentos a respeito de problemas biopsicossocioculturais presentes no exercício da medicina (Rios et al., 2008). Propõe mostrar ao futuro médico, de qualquer especialidade, as situações mais frequentes na clínica, os modelos de formulação de diagnóstico psicológico e os obstáculos comunicacionais à intervenção médica (Cruz, 2020). Este é um conhecimento curricular de base para aumentar a adesão do paciente ao tratamento e instrumentar o futuro médico a reconhecer os níveis de comunicação verbal e não verbal no trato com o paciente, a família e a sociedade.

Ao caracterizar a manutenção da saúde psicossomática, o médico que assiste um paciente deve ter em mente que está lidando com um humano de múltiplas dimensões e que sua relação com o paciente pode ser terapêutica ou iatrogênica (Ávila, 2002; Cruz, 2020; Groddeck, 2011; Winnicott, 2011). A formação médica deve, portanto, estar apoiada no modelo biopsicossocial e considerar as dimensões física, psicológica e social do paciente e do adoecer nesta perspectiva (Marco, 2006). Castro et al. (2006) indicam que corpo e a mente devem ser compreendidos como unidade inseparáveis. Esse contexto revela a necessidade de mais estudos na área.

Justificativa: O presente estudo observou a formação médica em termos de contribuição e estruturação da disciplina de Psicologia Médica, discutindo os processos de saúde e de adoecimento em sua integralidade, para o estabelecimento do vínculo médico-paciente e para uma assistência médica de qualidade. Isso pode auxiliar o profissional médico a refletir sobre a sua prática oferecendo um atendimento mais adequado.

Objetivos: Investigar a perspectiva de médicos quanto aos fatores que influenciam o conceito de saúde psicossomática e se a psicanálise contribui com a medicina.

Método

Realizamos estudo exploratório, descritivo e transversal com análise qualitativa.

Participantes: Participaram trinta e um médicos selecionados de diversas especialidades, tanto do setor público como do privado do Estado de São Paulo. Trata-se de uma amostra de conveniência formada por profissionais que têm contato com a pesquisadora ou com participantes e/ou com pessoas próximas da pesquisadora. A seleção ocorreu de maio a novembro de 2017. Como critério de inclusão, consideramos apenas médicos em atuação há mais de um ano. Excluímos aqueles profissionais que exercem a profissão há menos de um ano.

Instrumentos: Utilizamos um questionário aberto de 16 questões abertas e estruturadas sobre psicossomática. O questionário foi construído pela pesquisadora e aprovado pelo Comitê de Ética (Apêndice 1). Os formulários foram enviados por e-mail ou entregues em mãos aos entrevistados. Os participantes responderam individualmente e por escrito aos formulários por eles recebidos.

Aspectos éticos: 1. O estudo foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), parecer n. 2.344.974; respeitou e obedeceu às normas e diretrizes dos procedimentos éticos exigidos para a pesquisa com seres humanos da Resolução n. 466.

Análise dos dados: A pesquisa qualitativa tem a finalidade de entender como o objeto de estudo acontece ou se manifesta, buscando levantar os dados e fazer interpretações dos fenômenos por meio das significações que os indivíduos oferecem a esses. Não é o fenômeno em si que é importante, mas sim o sentido que o fenômeno específico adquire para os que o vivenciam. É uma ferramenta caracterizada como indutiva, holística, hermenêutica e subjetiva, que utiliza um aglomerado de referencial teórico. É realizada em um ambiente natural do sujeito, onde a observação acontecerá sem controle de variáveis, em que o pesquisador é o próprio instrumento para conhecer o objeto de estudo, fornecendo, assim, um maior vigor da validade dos dados, já que há a sua profundidade de escuta e a acurácia pode aproximar o pesquisador da questão do estudo (Turato, 2005).

Utilizou-se a técnica de análise do conteúdo, formando cinco fases: primeira etapa – leitura inicial; segunda etapa – análise estrutural; terceira etapa – categorização; quarta etapa – interpretação crítica; quinta etapa – literatura (Guerra, 2017).

Considerando as respostas dos 31 médicos acerca da contribuição da disciplina de psicologia médica nos cursos de medicina para a formação do profissional e sobre a importância da compreensão psicossomática do paciente para a assistência médica adequada, foram identificadas quatro categorias relacionadas à temática: I – Formação médica; II –Compreensão sobre os fenômenos psicossomáticos; III – Relação médico-paciente como mediadora do processo saúde-doença/tratamento; e IV – Contribuição da psicanálise para a medicina. A Figura 1 a seguir representa a análise do conteúdo das fases do processo de categorização (Figura1).

Figura 1

Etapas do Processo de Análise do Conteúdo

A primeira categoria, “formação médica”, teve como propósito avaliar a percepção dos profissionais em atuação médica sobre a necessidade da disciplina de Psicologia Médica para uma atenção médica de qualidade. Também analisa se os cursos de medicina buscam desenvolver ou não a habilidade de relacionamento com o indivíduo como um todo em seus discentes.

Na segunda categoria, “compreensão sobre os fenômenos psicossomáticos”, as finalidades foram compreender como os médicos participantes entendem os processos de saúde e de adoecimento; como esses profissionais percebem e acreditam que o soma e a psique interferem um no outro. Além disso, buscamos caracterizar quais as circunstâncias de vida que os médicos entrevistados percebem que exercem papel importante no desenvolvimento de afecções; se os participantes acreditam que a psique e o soma participam em pé de igualdade no desenvolvimento das patologias e como esses entrevistados entendem a influência dos sentimentos sobre os possíveis estados de saúde.

A terceira categoria, “relação médico-paciente como mediadora do processo saúde-doença/tratamento”, observa como as especialidades lidam com a pessoa do paciente; como os entrevistados médicos percebem que as suas atitudes e os seus sentimentos intervêm no relacionamento com os pacientes; como os participantes entendem a formação de um vínculo terapêutico ou iatrogênico; quais os atos necessários para uma atenção médica apropriada e qual o recurso mais útil e a importância da capacidade de escuta no atendimento médico.

A quarta categoria, “contribuição da psicanálise para a medicina”, avaliou como os participantes entendem o auxílio da psicanálise para a prática da medicina.

Resultados

Dentre os 31 participantes, pudemos observar diversas especialidades. A predominante foi a Psiquiatria, seguida de Clínica Médica e Cardiologia, representadas em porcentagem na Tabela 1.

Tabela 1

Especialidades Médicas Participantes do Estudo

Especialidades

%

Psiquiatria

19,3%

Clínica Médica

14,2%

Cardiologia

12,9%

Pediatria

12,9%

Cirurgia Geral

3,22%

Infectologia

3,22%

Dermatologia

3,22%

Endocrinologia + Metabologia

3,22%

Neurologia

3,22%

Oftalmologia

3,22%

Geriatria

3,22%

Ortopedia

3,22%

Alergologia

3,22%

Cardiologia + Hemodinâmica + Cardio intervencionista

3,22%

Categoria: Formação médica

A análise dos dados sugere que a disciplina de Psicologia Médica pode contribuir para o estabelecimento da relação médico-paciente adequada. Há evidências de uma eventual abordagem sobre psicossomática na formação médica.

Entrevistado 4: “Tive Psicologia, porém com carga horária restrita. A principal ajuda foi em melhor compreender e estabelecer um vínculo através da empatia.”

Entrevistado 5: “Tive e gostaria de ter tido por mais tempo. Com impacto fundamental, vínculo é o princípio do êxito.”

Entrevistado 20: “Que não existe separação entre o corpo e a mente.”

Há profissionais que, particularmente, não acreditam que a ministração da disciplina de Psicologia Médica auxilia no exercício da profissão.

Entrevistado 8: “Tive, mas acredito que não ajudou no exercício da profissão.”

Entrevistado 24: “Não houve formalmente transmissão deste conteúdo.”

Segundo Guedes (2003), a Psicologia Médica se introduz em um espaço no qual sua proposta teórica e prática se estabelece em oposição a um pensamento hegemônico – o modelo biomédico da medicina. Visa transformar a medicina utilizando como principal instrumento a formação do médico. Deve-se substituir o enfoque da doença orgânica pelo processo do adoecer com suas múltiplas causalidades. Isto deve ser viabilizado por meio da relação médico-paciente.

Winnicott (2011) aponta uma série de atitudes a ser conquistada pelo aprendizado da psicologia médica:

A. No papel de cuidadores-curadores, dizer a um paciente que ele é mau por estar doente não o ajuda. O paciente sabe que não estamos lá para julgá-lo.

B. Somos muito honestos, verdadeiros, dizendo que não sabemos quando realmente não sabemos. Uma pessoa doente não suporta nosso medo da verdade. Se temos medo da verdade, é melhor escolher outra profissão que não é a de médico.

C. Nós nos tornamos confiáveis num sentido que só podemos sustentar em nosso trabalho profissional. A questão é que, sendo pessoas (profissionalmente) confiáveis, protegemos nossos pacientes do imprevisto. Muitos deles sofrem precisamente disso; ficaram sujeitos ao imprevisto como parte do seu padrão de vida. Não podemos nos dar o luxo de encaixar-nos nesse padrão. Por meio da imprevisibilidade, está a confusão mental, e, atrás dela, pode-se encontrar o caos, em termos de funcionamento somático, isto é, uma ansiedade impensável que é física.

D. Aceitamos o amor e o ódio do paciente, somos por eles afetados, apesar de não provocarmos nenhum deles, nem esperarmos obter satisfações emocionais numa relação profissional. Essa deveria ser elaborada em nossa vida privada e nos domínios da vida pessoal, ou então na realidade psíquica interior, quando o sonhar se concretiza e adquire formas.

E. Todos concordam facilmente com o pressuposto de que o médico ou o enfermeiro não são cruéis com a finalidade de serem cruéis. A crueldade aparece inevitavelmente em nosso trabalho, mas, para tolerar a crueldade, precisamos olhar para a própria vida fora de nossas relações profissionais.

Categoria: Compreensão sobre os fenômenos psicossomáticos

Esta categoria demonstra que a maioria dos médicos entende que soma e psique são recíprocos. Como unidades indissolúveis, os médicos compreendem que soma e psique podem amplificar ou diminuir a extensão do curso das patologias, e que as situações existenciais desempenham papel preponderante no desencadeamento de patologias.

Entrevistado 1: “Somos um! O Tico reage com o Teco e o Teco reage com o Tico.”

Entrevistado 19: “A psique promove uma descarga de fatores emocionais no corpo, e o corpo por sua vez influencia a psique na produção de patologias.”

Entrevistado 17: “A mente [psique] e o corpo [soma] estão interligados em todos os sentidos, e não tem como tratar uma coisa sem a outra.”

Entrevistado 1: “Mudanças. O desconhecido aterroriza muitas pessoas. Crescer, mudar fisicamente o corpo, os hormônios que aumentam e depois diminuem, a família, a ausência da família, a formação da autoestima, ficar solteira ou casar, ou ter filhos ou não, assumir responsabilidades, violência doméstica, violência nas ruas, descrenças, ausência de metas.”

Também ficou evidente o duelo Cartesiano-Psicossomático presente na formação e na atuação médica.

Entrevistado 3: “Na minha especialidade não temos quadros psicossomáticos, muito raro.”

Assinalando as concepções de alguns autores que estão de comum acordo com esta compreensão de indivíduo totalizado, Freud (1910/1996) sinaliza que o psíquico se marca no orgânico. Também Groddeck (2011) indica que, para a instância inconsciente, não existe fronteira demarcando o físico e psíquico. Ambos são manifestações e formas de apresentação do inconsciente. McDougall (2013) denomina a junção da psique e do soma de matriz somatopsíquica. Em consonância com esse pensamento, Spitz (2013) assevera que é intrínseco do desenvolvimento humano a tendência à síntese; essa tendência integrativa produz uma estruturação somatopsique desde a embriogênese. Do mesmo modo, Ávila (2002) refere-se ao corpo e à mente como um todo único, indissolúvel. Alves (2013) afirma que o soma é sensível à psique e vice-versa. Segundo Branco Vicente (2005), as diversas definições de psicossomática, ainda não plenamente satisfatórias, indicam a integração física e psíquica como duas faces de uma realidade: o ser humano.

Groddeck (2011) enfatiza que o avanço da medicina ocorre por meio da compreensão de que qualquer estado humano pode ser observado como parte de um todo ou uma totalidade em si.

Lown (2008) faz a seguinte afirmação sobre a situação: “Os médicos já não se dedicam aos indivíduos de per si: ocupam-se de partes orgânicas, fragmentadas e disfuncionais. Frequentemente, o sofrido ser humano fica alheio ao trabalho” (p. 12).

Destarte, Winnicott (1990) assevera que, no processo de adoecimento, há duas propensões: a afecção somática e seus impactos sobre a psique, e a patologia psíquica e seus impactos sobre o soma.

É sugerido, pelo modelo psicossomático, que a doença é uma integração entre o psíquico e o somático, não sendo possível os diferenciar: toda doença humana é psicossomática, já que é provida do soma e da psique, inseparáveis física e psiquicamente (Guedes et al., 2023).

Categoria: Relação médico-paciente como mediadora do processo saúde-doença/tratamento.

Nossos resultados demonstram que a maioria dos médicos entrevistados compreende que: (1) os afetos são agentes ativos do desenvolvimento das patologias; (2) a relação médico-paciente é fundamental para o êxito ou o fracasso da cura do paciente; assim, a presença ou a ausência de gerência, prudência e perícia facilita para que o vínculo médico-paciente seja terapêutico ou iatrogênico; (3) na compreensão do ser humano como um todo, encontra-se a evolução das especialidades; (4) a empatia é a atitude soberana do profissional; (5) o conjunto de habilidades técnicas e humanísticas é imprescindível para uma atuação médica adequada; (6) saber ouvir é da maior magnitude; (7) a tecnologia é essencial, mas não substitui o sentir o ser humano.

Entrevistado 12: “As emoções são essenciais para ajudar a cura ou o agravamento da evolução da patologia. Uma mente saudável auxilia a cura do soma. Um soma íntegro ajuda a recuperação da psique adoecida”.

Entrevistado 18: “Talvez aí esteja o grande segredo dos meus pacientes na prática médica: relacionamento médico-paciente. É o segredo do sucesso!”.

Entrevistado 9: “Positivamente, se o médico acolher o paciente não visando entender apenas a doença, e sim a pessoa como um todo. Negativamente, se o profissional desprezar o ser humano como uma totalidade”.

Entrevistado 23: “Escuta, atenção, empatia, formulação diagnóstica, explicação de diagnóstico e conduta, tirar dúvidas”.

Entrevistado 22: “A escuta aberta. Deixar o paciente falar pelo menos um minuto sem ser interrompido. Após a escuta, a empatia, se eu consigo sentir o que o outro sente consigo, entender sua angústia”.

Entrevistado 31: “Magnitude de extrema importância”.

Entrevistado 20: “Cada vez mais a tecnologia torna-se importante para o diagnóstico na Medicina. Por outro lado, o médico se reserva a pedir mais exames e se esquece de realizar uma boa anamnese.”

A relação médico-paciente deve ser observada para um atendimento de qualidade que objetiva a saúde integral do indivíduo. Além do domínio de técnicas diagnósticas e de tratamento, a conduta médica apropriada fundamenta-se, sobretudo, em princípios éticos que dizem respeito ao encontro de duas pessoas independentemente da natureza desse contato. Esses princípios são: o conhecimento, por parte do médico, de que, embora seja uma relação profissional e assimétrica em que um indivíduo com uma demanda de ajuda procura o outro que tem competência para promover o auxílio, é um relacionamento sem hierarquias, (Winnicott, 2011).

A relação médico-paciente é ressaltada por Guedes et al. (2023) como central e é explicitada à luz da teoria psicanalítica, sobretudo por meio dos conceitos de “transferência” e de “contratransferência”; os autores afirmam que se forma entre médico e paciente uma sensação de dupla face transferencial; o paciente transfere para o médico sentimentos inconscientes relacionados a figuras significativas do seu passado. Por sua vez, o médico, a reação contratransferencial também acontece nessa relação. O desconhecimento desses paradigmas não conscientes podem se tornar problemas maiores para a medicina, uma vez que podem causar grandes prejuízos no curso de um tratamento médico.

Groddeck (2011, p. 259) acrescenta que “poucos se atrevem a trilhar o caminho que leva ao todo na parte e à parte no todo”.

Categoria: Contribuição da psicanálise para a medicina

Os entrevistados evidenciaram também que entendem a psicossomática como referencial de trabalho psíquico e somático para a construção egoica do indivíduo e como construção de saber e vinculação entre a medicina e a psicanálise.

Entrevistado 12: “Sim, acredito que sim. A aceitação do ser humano com suas angústias, expectativas, medos, a compreensão de que o relacionamento entre as pessoas se olhando nos olhos, se respeitando, tendo uma relação uniforme, sem subjugados, é assim, que construímos uma relação médico-paciente suficientemente sólida e forte.”

Entrevistado 18: “Fundamental. Infelizmente, não dispomos dessa tremenda ferramenta para os nossos pacientes do SUS.”

Entrevistado 23: “Sim, noções básicas de inconsciente, transferência, contratransferência e mecanismos de defesa são úteis para entender algumas dinâmicas de consulta.”

Entrevistado 31: “Muito. Acima de tudo preparando a mente do médico para a relação médico-paciente com afeto e empatia.”

Segundo Eksterman (1978), o vínculo da medicina com a psicanálise é frutífero na medida em que esta relação abre caminho para o desenvolvimento da psicossomática. Não somente como postura ético-filosófica, sobretudo como conduta médica oriunda de uma compreensão holística do ser humano enfermo (Cruz, 2020). Esse holismo é produzido pelos estudos psicanalíticos do fenômeno inconsciente, pois foi a psicanálise que inseriu o indivíduo no interior da atenção médica, ao apontar a influência da história pessoal no desenvolvimento da doença. A atenção individual não exclui a importância dos quadros nosológicos, pelo contrário, eles se complementam; assim, o médico não trata especificamente da enfermidade, mas do enfermo (Ceron, 2020).

Os resultados também sublinharam o livre-arbítrio dos profissionais participantes por meio de suas sugestões, opiniões, pensamentos, sentimentos ou críticas.

Tabela 2

Livre-arbítrio

O(A) doutor(a) gostaria de acrescentar alguma coisa?

Entrevistado 1

“A Medicina chinesa, a indígena e a homeopatia enxergam o Ser como um todo. Nós, os ocidentais, o separamos em partes.”

Entrevistado 3

“As escolas de medicina precisam trabalhar mais o lado humano e a relação médico-paciente.”

Entrevistado 10

“A psicanálise deveria ser mais abordada no curso de medicina e nas residências médicas. Os médicos formados são cada vez mais frios e mais voltados para tecnologia e pouco interessados no emocional dos pacientes.”

Entrevistado 11

“Trabalhos que conscientizem os médicos sobre a importância da relação médico-paciente são importantes.”

Entrevistado 12

“Salientar a importância da visão única e indissolúvel do ser humano. Enfatizar que a relação médico-paciente é de vital importância para o êxito ou fracasso da terapêutica. Enfim, lembrar que a empatia é nossa ferramenta mais importante e a nossa arma mais eficaz para estabelecermos relações humanas dignas.”

Entrevistado 13

“Acho importante esse trabalho, pois os profissionais da área da saúde nunca podem esquecer que a doença orgânica caminha com a mente.”

Entrevistado 16

“Ter saúde é ter corpo e mente saudáveis.”

Entrevistado 18

“Sim. No início da minha carreira, após exame clínico e laboratorial, fazia diagnóstico de que aquela dor nas costas que a paciente sentia era muito mais importante pelos problemas emocionais que ela estava vivendo do que somática. Imediatamente, encaminhava ao psiquiatra que atendia ao lado. Dois meses após, ela voltava no meu consultório dizendo ‘Doutor, ele me prescreveu Valium e nem conversou comigo. O senhor pelo menos me ouviu!’. Ela ficava sem atendimento e com sua dor lombar. E eu, frustrado, por ter feito diagnóstico, mas sem resolver o problema da paciente.”

Entrevistado 25

“Apesar das dificuldades e da falta de tempo dos dias de hoje, o profissional deve conhecer melhor seu paciente e olhá-lo de forma integral, evitando fragmentar seu problema de saúde para não visualizar apenas a morbidade. Estar atento à condição de fragilidade que o paciente se encontra. A relação médico-paciente deve ser estabelecida com interesses comuns das duas partes, com parcerias, aberto, com respeito e dignidade.”

Entrevistados 26 e 27

“Apesar das dificuldades e da falta de tempo dos dias de hoje, o profissional deve conhecer melhor seu paciente e olhá-lo de forma integral, evitando fragmentar seu problema de saúde para não visualizar apenas a morbidade.”

Entrevistado 29

“Tenho a impressão de que há uma carência muito grande desse campo no ensino médico, e isso dificulta o relacionamento médico-paciente.”

Entrevistado 30

“Questionários muito ‘abertos’ deverão ser interpretados por grupos de respostas (de acordo com a compreensão do pesquisador), o que pode ser um complicador (bias ou viés) da pesquisa.”

Entrevistado 31

“Só acho que a Psicologia deveria ser disciplina essencial em todos os cursos de Medicina.”

Discussão

Com base na compreensão dos dados obtidos neste estudo, conclui-se que a maior parte dos entrevistados cursou a disciplina de Psicologia Médica na sua formação. Considera os ensinamentos da matéria essenciais para compreender o ser humano como um todo e desenvolver um elo médico-paciente adequado, embora a estrutura da disciplina tenha sido insuficiente, pois, segundo eles, deveria ser mais aprofundada. Ávila (2002) observa que a educação médica atual incorpora a disciplina Psicologia Médica em sua grade curricular e valoriza o respeito à contribuição de um vínculo médico-paciente suficientemente bom para atendimento adequado.

Os resultados sugerem que os participantes possuem uma concepção de psicossomática como unidade entre soma e psique; um processo de saúde ou adoecimento do todo; um entendimento de que o médico contém uma gama de instrumentos humanísticos e técnicos; salienta que a competência de ouvir é de dimensão imensurável. Para Winnicott (1990, p. 46), “A medicina do corpo funde-se naturalmente à medicina psicossomática”. A visão holística de Groddeck (2011, p. 125) é coerente com os resultados indicados pelos entrevistados:

E como a vida sempre foi uma misteriosa coexistência do que se convencionou chamar de corpo e alma, devendo ser entendida como unidade de corpo e alma, logo se deduz que não há “organismo” e “psiquismo”, nem doenças físicas ou psíquicas e sim que são sempre os dois a enfermar ao mesmo tempo, em quaisquer circunstâncias.

Em consonância com essa filosofia, Lown (2008, p. 331) demonstra o quanto é imprescindível a psicologia médica: “O paciente deseja ser conhecido como ser humano, não apenas identificado como pacote de doenças. Somente o paciente é capaz de ampliar o foco do médico para incluir o domínio mais vasto da pessoa que sofre. É nisso que consiste a arte”.

Verificamos, com as respostas dos médicos que participaram deste estudo, que as especialidades estão caminhando para se relacionarem com a pessoa, além de tratarem suas doenças. A empatia faz-se imprescindível para obter êxito no tratamento, que a atuação médica de qualidade lança mão da intuição puramente humana (Groddeck, 2011). Questionamos o motivo de muitos médicos excluírem esse campo intencionalmente de sua prática.

Ressaltamos que “o ‘cuidar-curar’ é mais importante e eficiente do que a ‘cura-tratamento’ e que todo diagnóstico e prevenção geralmente se assemelha àquilo que chamamos de abordagem científica; e que o ‘cuidar-curar’ médico tem muita semelhança com o ‘cuidar-curar’ satisfatório-preventivo concedido por nossas mães e pais ‘satisfatórios’” (Winnicott, 2011, p. 113).

Além do saber teórico-prático-acadêmico indispensável para o profissional obter o título de médico e para a licença de atuação médica, é de valor basal que o profissional use sua aptidão de empatia que adquiriu ao longo de sua vida por meio do relacionamento com seus pais e desenvolva e utilize sua capacidade de ouvir intuitivamente além do relato objetivo e aparente; isto, muitas vezes, não é aprendido em livros e em treinamento médico como apontam (Ávila, 2002; Eksterman, 1978; Groddeck, 2011; Lown, 2008; Marco, 2006; Winnicott, 2011; Ceron, 2020; Reis & Godinho, 2018; Penteado et al., 2022).

Tanto a literatura como os entrevistados corroboram que a relação médico-paciente é uma situação sine qua non para uma assistência médica de qualidade. Para Caprara e Franco (1999), a relevância contemporânea desse debate encontra-se nas bases legais da atenção médica e da discussão envolvendo a formação médica.

Os entrevistados apontam ainda que a medicina é considerada um saber objetivo em que seu exercício consiste, especialmente, na aplicação de técnicas de exame, diagnóstico e tratamento, o vínculo médico-paciente continua sendo uma relação humana em que os atos e sentimentos de cada membro do par interfere no resultado do trabalho da dupla, isto significa que a medicina é também uma prática subjetiva em que o processo humano de criar e receber desejos, expectativas, de satisfazer e obter satisfação de propósitos, de significar e atribuir sentidos encontra-se presente numa atividade, antes de tudo, humana. Faz-se necessário recorrermos a uma das definições de transferência de Freud (1912/1996) para termos uma melhor compreensão.

Dois tipos de transferência são classificados nessa situação: I – uma constelação de sentimentos afetuosos direcionados a uma pessoa como “transferência positiva”; e II – um conjunto de afetos rudes como “transferência negativa” (Freud 1912/1996).

Nessa perspectiva, o paciente não é passivo no processo de restaurar ou melhorar a sua vida e evitar morte. A dupla médico-paciente é a protagonista de uma prática que pode promover a vida com bem-estar. O êxito do trabalho médico deriva não apenas das habilidades e competências médicas, mas também da volição própria da pessoa (Cruz, 2020; Winnicot, 2011).

Sobre a transferência nessa relação, as ações agressivas do sujeito para com o médico, em alguns casos, podem indicar a resistência em simbolizar e experimentar suas experiências pessoais de outra maneira que não através da patologia, sendo o médico simbolizado como inimigo dessa expressão (Grodedeck, 2011).

As técnicas de diagnóstico e tratamentos são importantes para a formação e a habilitação profissional do médico. Winnicott (2011, p. 114) destaca:

Sugiro que encontremos, no aspecto “cuidar-curar” de nosso trabalho profissional, um contexto para aplicar os princípios que aprendemos no início de nossas vidas, quando éramos pessoas imaturas e nos foi dado um “cuidar-curar” satisfatório e cura, por assim dizer, antecipado (o melhor tipo de medicina preventiva) por nossas mães “satisfatórias” e por nossos pais.

Para os participantes deste estudo, não é possível fornecer um bom serviço médico sem que o próprio profissional possua saber dos aspectos presentes na sua relação com o paciente. Assim, Schmidt et al. (2011) e Schimidt e Mata (2008), baseados na teoria winnicottiana, apontam que o enfermo, ao adoecer, retorna à fragilidade típica do bebê, direcionando-se, novamente, como na infância, a uma figura protetora para quem transfere suas fantasias de onipotência e de acessibilidade total.

Nossos resultados concordam com esses achados. Os médicos entrevistados apontam para a capacidade de os afetos serem agentes ativos no desencadeamento das doenças. Destacam o papel preponderante da relação médico-paciente no êxito ou fracasso da cura do paciente, ou seja, a presença ou a ausência de gerência, da prudência e da perícia faz com que o vínculo médico-paciente seja terapêutico ou iatrogênico.

A maior parte dos entrevistados situa-se no pensamento de Eksterman (1978), Nascimento e Macêdo Guimarães (2009): o trabalho médico de qualidade está em um conjunto de regras de conduta, ambiente acolhedor, paciência de ouvir o indivíduo e usar expressões de conforto, criar amizade e confiança para com este, compactando tudo isso na empatia. Lown (2008) acrescenta que a maneira mais precisa de determinar um diagnóstico é estar, por inteiro, na presença humana. Com relação a essa visão, Ávila (2002) assevera que os médicos são hábeis para o que é orgânico, porém, muitas vezes, não sabem dizer ou fazer nada em relação à maior dimensão da experiência da dor humana, ou seja, com o sofrimento como condição subjetiva e sensível.

A análise dos questionários aponta que esses profissionais partem da concepção de que a parceria entre médico e paciente é a melhor estratégia para o sucesso do processo de cura: “Então, o médico reconquista a coragem de encarar as incertezas, para as quais não bastaria a perícia técnica. Paciente e médico, assim, entram em parceria como iguais. À medida que o enfermo ganha forças, cresce o poder de cura do médico” Lown (2008, p. 14).

Essas análises destacam a necessidade de uma abordagem biopsicossocial para além do modelo biológico na formação e atuação médica para proporcionar ao paciente uma assistência à saúde mais adequada, satisfatória e benéfica.

Conclusão

Os profissionais entrevistados compreendem que fatores biopsicossociais interagem com traços psíquicos da relação médico-paciente e que a investigação psicossomática é uma ferramenta útil para uma abordagem de tratamento integral do paciente. Indicam a contribuição da disciplina de Psicologia Médica para o estabelecimento da relação médico-paciente adequado. A maioria dos médicos descreve soma e psique como unidades indissolúveis, que podem influenciar na extensão e no curso das patologias. Indicam que as situações da vida são fundamentais no desenvolvimento de doenças.

A categoria médica entrevistada aponta, ainda, para a capacidade dos afetos de serem agentes ativos no desencadeamento das doenças. Destaca o papel preponderante da relação médico-paciente no êxito ou fracasso da cura do paciente, ou seja, a presença ou a ausência de gerência, da prudência e da perícia faz com que o vínculo médico-paciente seja terapêutico ou iatrogênico.

Uma das principais limitações encontradas neste estudo se refere ao fato de que as especialidades estão evoluindo e modificando rapidamente seus currículos. São necessários novos estudos que caracterizem o conjunto de habilidades técnicas e humanísticas que deve estar presente para a boa prática da medicina e considerem o fato de que a tecnologia não substitui o que temos de mais poderoso: o sentir o ser humano.

Outro obstáculo encontrado foi a consideração de que saúde integral não é saúde psicossomática. Mas, se pensarmos na definição da Organização Mundial da Saúde de saúde integral como o bem-estar físico, mental e social, afirmaremos que está de acordo com o conceito de saúde psicossomática, pois esse engloba integração, que, por sua vez, significa psicossoma – soma e psique como uma unidade harmônica, intercomposta e interdependente, e esse precisa de alimentação saudável, atividade física, sono adequado, gerenciamento de estresse, relacionamentos saudáveis, equilíbrio emocional, prevenção de doenças e de algumas das práticas que podem ser adotadas para cuidar da saúde integral para obter o amadurecimento e a manutenção saúde psicossomática. Assim, um psiquiatra deve compreender que alimentação saudável, atividade física e sono adequado são ações que podem auxiliar na recuperação psíquica, e que uma doença mental pode ter raízes físicas. Ainda, um cardiologista deve compreender que equilíbrio emocional é necessário para a prevenção e o tratamento de patologias cardíacas, e que essas podem ter origem psicológica.

Dessa forma, uma dificuldade essencial desta pesquisa foi encontrar participantes para ela. Talvez, se futuros pesquisadores determinarem uma instituição para responder ao questionário e/ou fizerem o método snowball, consigam mais adeptos. Seria interessante analisar os dados de forma quantitativa também. A aplicação dos resultados em termos de políticas públicas e formação médica está em uma formação e um atendimento médico de qualidade em que se sobressaiam as técnicas humanas de empatia: respeito e escuta.

Este estudo sugere que futuras pesquisas avaliem critérios adequados de selecionar candidatos à formação médica; sobre a atuação desses profissionais, sugere a investigação do motivo de muitos médicos privilegiarem o saber teórico-prático-acadêmico em detrimento das técnicas humanas, embora o conhecimento da psicossomática seja de importância comprovada cientificamente, e, por fim, quais são as metodologias eficazes para uma formação médica de qualidade.

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Recebido em: 30/05/2023

Última revisão: 18/10/2023

Aceite final: 18/12/2023

Sobre os autores:

Gabriela Garcia Ceron: [Autora para contato]. Mestra em Psicologia e Saúde pela Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP). Especialista em Educação Especial e Inclusiva pelo Centro Universitário de Rio Preto (UNIRP); Psicopedagogia Institucional e Clínica, Neuropsicologia e Psicanálise pelo IBRA. Psicóloga pelo Centro Universitário do Norte Paulista (UNORP). Poeta, autora e coautora de livros. E-mail: ggarciaceron@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9013-7013f

Lazslo Antonio Ávila: Realizou pesquisa de pós-doutorado na University of Cambridge, Inglaterra. Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Psicologia Social pela USP. Especialista em Psicologia Clínica e em Psicologia Hospitalar pelo Conselho Federal de Psicologia. Psicólogo pela USP. Atualmente, é livre-docente do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto. E-mail: lazslo@famerp.br; lazslo@terra.com.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6392-1016

Gláucio Silva Camargos: Doutorando e mestre em Ciências da Saúde, e psicanalista pela Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP). E-mail: glaucio.camargos@hotmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0592-3376

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v15i1.2408

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