Efeitos da Pandemia da Covid-19 na Experiência de Profissionais e Usuários do CAPS AD III
Effects of the COVID-19 Pandemic on the Experience of CAPS AD III Professionals and Users
Efectos de la Pandemia de COVID-19 en la Experiencia de los Profesionales y Usuarios del CAPS AD III
Stéfhane Santana da Silva
Ladislau Ribeiro do Nascimento
Universidade Federal do Tocantins (UFT)
Resumo
Declarou-se o início da pandemia da covid-19 em março de 2020, configurando-se como uma crise sanitária internacional. Assim, a pesquisa objetivou analisar seus efeitos na experiência de profissionais e usuários de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas III (CAPS AD III). Realizou-se um estudo exploratório de abordagem qualitativa, apoiado em revisão bibliográfica e entrevistas narrativas. Recorreu-se à análise de conteúdo que resultou na produção de categorias e subcategorias temáticas, posteriormente articuladas com dados da revisão e com os pressupostos teóricos da pesquisa. As análises resultaram em quatro categorias temáticas que englobam efeitos da pandemia, riscos ao campo da saúde, movimentos de resistência e estratégias de enfrentamento aos efeitos gerados pela crise no cotidiano de trabalho na instituição. A pandemia provocou interrupção de práticas coletivas, reorganização do fluxo de atendimentos, redução do número de vagas para o acolhimento 24h, perda de espaços de convivência, e exigiu a utilização das chamadas Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs) para realização das atividades. Identificou-se a necessidade de investimentos em processos formativos por meio da educação permanente e da educação popular em saúde, com o objetivo de promover a produção coletiva das estratégias de enfrentamento à pandemia.
Palavras-chave: covid-19, reforma psiquiátrica, Centro de Atenção Psicossocial, Caps AD III
Abstract
The COVID-19 pandemic began in March 2020, constituting an international health crisis. Thus, the research aimed to analyze its effects on the experience of professionals and users of a Psychosocial Care Center for Alcohol and Other Drugs III (CAPS AD III). An exploratory study with a qualitative approach was carried out, supported by a bibliographic review and narrative interviews. Content analysis was used, which resulted in the production of thematic categories and subcategories, later articulated with review data and the theoretical assumptions of the research. The analyzes resulted in four thematic categories that encompass the effects of the pandemic, risks to the health field, resistance movements and strategies for coping with the effects generated by the crisis in the institution’s daily work. The pandemic caused interruption of collective practices, reorganization of the flow of services, reduction in the number of places for 24-hour reception, loss of living spaces, and required the use of so-called Digital Information and Communication Technologies (DICT) to carry out activities. The need for investment in training processes through continuing education and popular health education was identified, with the aim of promoting the collective production of strategies to combat the pandemic.
Keywords: COVID-19, psychiatric reform, Psychosocial Care Center, Caps AD III
Resumen
La pandemia de COVID-19 comenzó en marzo de 2020, constituyendo una crisis sanitaria internacional. Así, la investigación tuvo como objetivo analizar sus efectos en la experiencia de profesionales y usuarios de un Centro de Atención Psicosocial al Alcohol y Otras Drogas III (CAPS AD III). Se realizó un estudio exploratorio con enfoque cualitativo, apoyado en una revisión bibliográfica y entrevistas narrativas. Se utilizó el análisis de contenido, que resultó en la producción de categorías y subcategorías temáticas, posteriormente articuladas con los datos de revisión y los supuestos teóricos de la investigación. Los análisis resultaron en cuatro categorías temáticas que abarcan los efectos de la pandemia, riesgos para el campo de la salud, movimientos de resistencia y estrategias para afrontar los efectos generados por la crisis en el quehacer diario de la institución. La pandemia provocó la interrupción de las prácticas colectivas, la reorganización del flujo de servicios, la reducción del número de plazas de recepción 24 horas, la pérdida de espacios habitables y requirió el uso de las llamadas Tecnologías de la Información y la Comunicación Digital (TDIC) para llevar realizar actividades. Se identificó la necesidad de invertir en procesos de formación a través de la educación continua y la educación popular en salud, con el objetivo de promover la producción colectiva de estrategias para combatir la pandemia.
Palabras clave: COVID-19, reforma psiquiátrica, Centro de Atención Psicosocial, Caps AD III
Introdução
Em janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) apontava o surto de um novo coronavírus como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). Posteriormente, no Brasil, em fevereiro daquele ano, o Ministério da Saúde publicou a Portaria n. 188 e declarou a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em decorrência das infecções causadas pelo coronavírus (Ministério da Saúde, 2020a). No mês seguinte, a OMS apontava a ocorrência de uma pandemia de covid-19: doença manifestada em seres humanos em decorrência de infecção causada pelo vírus SARS-CoV-2.
No dia 18 junho de 2020, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 1.565, com orientações gerais para prevenção, controle e mitigação da transmissão da covid-19, além de diretrizes para a promoção da saúde física e mental da população brasileira (Ministério da Saúde, 2020b). Além disso, apontou a necessidade de elaboração de protocolos específicos, considerando o cenário epidemiológico de transmissão do vírus, com sinalização para a retomada do convívio social sob a proteção de medidas de biossegurança, incluindo uso de máscaras, higienização das mãos e distanciamento físico (Ministério da Saúde, 2020b). Porém, ressalta-se que ainda não havia a oferta de imunizantes neste período.
Cabe salientar que o Sistema Único de Saúde (SUS) ofereceu respostas em todos os seus níveis de complexidade durante a pandemia, além de ter mantido os demais atendimentos. Contudo, é interessante refletir sobre os efeitos provocados pela crise sanitária nos serviços de saúde, em especial nos dispositivos de promoção de saúde mental.
Durante situações de emergências e desastres, pode ocorrer um aumento significativo de enfermidades e mortes, com sobrecarga no sistema de saúde e fragilização das redes sociais, fatores que incidem sobre a saúde mental das populações (CFP, 2021). Nesse sentido, torna-se fundamental resgatar um documento de 2007, intitulado, Diretrizes do IASC sobre Saúde Mental e Apoio Psicossocial em Emergências Humanitárias, elaborado pelo Comitê Permanente Interagências (IASC), no qual se afirma a importância da integração de diferentes atores para a promoção de linhas de cuidados de Saúde Mental e Atenção Psicossocial (SMAPS) em situações humanitárias. As diretrizes propõem uma perspectiva internacional ampliada sobre as possibilidades de atuação de diferentes profissões, dentre elas, a Psicologia (IASC, 2007).
Os impactos psicológicos e sociais de emergências podem ser acentuados em curto prazo, com potencial para deteriorar a saúde mental e o bem-estar psicossocial da população afetada em longo prazo (IASC, 2007), fazendo-se necessário o planejamento e a coordenação de um conjunto de respostas multissetoriais para promover a saúde mental e o bem-estar psicossocial das pessoas em uma emergência (IASC, 2007).
A articulação de diversos pontos é necessária, pois contribui para fomentar ações de apoio para as esferas básicas do trabalho humanitário, como gestão em casos de desastres, direitos humanos, proteção, saúde, educação, água e saneamento, segurança alimentar e nutrição, abrigo, desenvolvimento comunitário, comunicação social, além das formas clínicas e especializadas de apoio psicológico ou psiquiátrico (IASC, 2007).
Nesse contexto, os chamados Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são estratégicos para a promoção da saúde mental, em consonância com os princípios do SUS. Tais centros foram pensados, desde a sua criação, dentro de um novo modelo de saúde mental preconizado a partir da reforma psiquiátrica brasileira, movimento ocorrido em paralelo com a reforma sanitária que resultou, inclusive, na construção do SUS (CFP, 2022).
As práticas e abordagens de intervenção presentes nos CAPS são fundamentais para o enfrentamento de situações emergenciais, pois abrangem trabalhos realizados por equipes multidisciplinares, com base em ações de acolhimento, educação e assistência, em articulação com a rede de cuidado territorializado (Santos et al., 2021).
No entanto, sabe-se que os CAPS enfrentam inúmeros desafios, sendo um dos principais a dificuldade para garantir a formação adequada de profissionais ao trabalho intersetorial e interdisciplinar, cruciais para a superação do paradigma da tutela e dos estigmas e preconceitos no campo da saúde mental (Scafuto et al., 2017). Neste cenário, vale ponderar, as políticas de educação permanente viabilizam a formação profissional em saúde mais adequada às necessidades de saúde individuais e coletivas, na perspectiva da equidade e da integralidade (Falkenberg et al., 2014). Além disso, a formação ocorre através da própria experiência dos encontros entre profissionais, usuários, familiares, e com a própria gestão dos serviços (Scafuto et al., 2017).
Em meio aos desafios e enfrentamentos no cotidiano dos CAPS, considera-se o fato de a pandemia ter ocorrido em um período de retirada de direitos e ataques às políticas públicas de saúde mental (Da Silva, 2022). Naquele mesmo período, houve o chamado “revogaço” – medida arbitrária que buscava revogar portarias de fomento à Reforma Psiquiátrica (Antunes, 2020). O intento visou extinguir medidas de fiscalização e estímulos para a redução dos hospitais psiquiátricos, e pretendeu acabar com o Programa de Volta para Casa (PVC), que presta auxílio para a reabilitação psicossocial de pessoas com histórico de longos períodos de internação em hospitais psiquiátricos (Ministério da Saúde, 2003).
Ademais, naquelas circunstâncias, observou-se piora nas condições de saúde dos profissionais responsáveis pela condução de práticas de promoção de saúde mental. Em estudo realizado com profissionais de um CAPS do interior do Ceará, Alves e Lavor Filho (2021) observaram a interferência de distintos fatores na saúde mental daqueles participantes da pesquisa. Destacou-se o medo de se contrair o vírus e transmitir aos familiares, a insegurança diante das incertezas, bem como a dificuldade de adaptação ao contexto pandêmico e a ausência de contato e interações fundamentais para a preservação da saúde. O estudo ainda revelou o adoecimento mental dos profissionais com a presença de sintomas como insônia, angústia, ansiedade e dores de cabeça.
Sendo assim, com o objetivo geral de analisar os efeitos da pandemia da covid-19 na experiência cotidiana de profissionais e usuários de um CAPS AD III, propusemos a realização da pesquisa aqui relatada, desenvolvida pela autora sob a orientação do coautor, no âmbito da pós-graduação stricto sensu, no decurso de um mestrado em Ensino em Ciências e Saúde.
A pesquisa apontou para quatro objetivos específicos, a saber: descrever a experiência dos profissionais do CAPS diante da pandemia; caracterizar a experiência dos usuários e a sua relação com os efeitos da pandemia; identificar a relação entre os efeitos da pandemia e o processo da reforma psiquiátrica; produzir material educativo para articular as experiências de usuários e profissionais do CAPS diante da pandemia.
Método
Realizou-se um estudo exploratório, de campo, de abordagem qualitativa (Minayo, 2001), com base no método indutivo. A pesquisa foi realizada em um CAPS AD III, localizado no Tocantins, tendo como participantes quatro profissionais e dois usuários dos serviços. A coleta de dados se deu através da aplicação de entrevistas narrativas (Muylaert et al., 2014). Esta etapa ocorreu entre os meses de agosto e outubro de 2022, em acordo com a Resolução n. 466/12, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Fundação Escola de Saúde Pública (FESP), situada na cidade em que a pesquisa foi realizada, conforme o Parecer nº 5.489.887.
A realização das entrevistas ocorreu após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Informado (TCLI) em duas vias, sendo que uma ficou com o sujeito da pesquisa e a outra com a pesquisadora. Todas as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra, preservando-se o sigilo das informações e da identidade dos participantes.
As entrevistas com os profissionais seguiram um roteiro com os seguintes itens: (1) “Gostaria que você falasse sobre a experiência profissional no CAPS antes e durante a pandemia nos anos de 2020 e 2021”; (2) “Conte-me um pouco sobre o que você sentia dentro e fora do trabalho”; (3) “Há algo que tenha mudado em sua maneira de lidar com o trabalho após o início do período pandêmico?”. As entrevistas com os usurários, por sua vez, basearam-se no seguinte roteiro: (1) “Gostaria que falasse um pouco sobre a experiência de ter feito acompanhamento no CAPS durante a pandemia, nos anos de 2020 e 2021”; (2) “Há algo que tenha mudado em sua maneira de vivenciar o tratamento durante esse período?”; (3) “Fale-me sobre como se sentia dentro e fora do CAPS”.
No que se refere aos critérios de inclusão dos profissionais, o participante deveria possuir formação em nível técnico e/ou superior e ter desenvolvido ações de assistência e cuidado ao público do CAPS AD III durante os anos de 2020 e/ou 2021. Foram excluídos os profissionais com menos de seis meses de vínculo com o trabalho e/ou sem formação técnica ou superior. Quanto à participação dos usuários, adotaram-se como critérios de inclusão o exercício de sua cidadania de forma plena e autônoma, sem a responsabilidade de terceiros pelos seus atos, e a disponibilidade para participar da entrevista. Foram excluídos aqueles em situação de curatela, tutela ou qualquer tipo de interdição judicial que impedisse o sujeito de responder por si mesmo.
Os dados foram submetidos a uma Análise de Conteúdo (Bardin, 1977), realizada em três etapas: pré-análise, análise do material e o tratamento dos dados por meio de inferência e interpretação dos resultados.
Resultados
O estudo atingiu ao todo seis participantes, sendo quatro profissionais e dois usuários, respectivamente representados pelas letras “P” e “U”. Participaram da pesquisa profissionais de psicologia, enfermagem e serviço social. Os usuários haviam iniciado o respectivo tratamento no CAPS AD III antes do surgimento do período pandêmico e mantiveram vínculo com os serviços nos anos de 2020 e 2021. Ambos participaram de atendimentos individuais e coletivos, realizados pela equipe multiprofissional. Além disso, fizeram uso do serviço de acolhimento noturno/24h e retiraram medicação na farmácia. Ao final, todas as entrevistas contabilizam o total de 64 páginas de transcrição.
A leitura e a análise dos resultados possibilitou a construção das seguintes categorias temáticas: (1) efeitos da pandemia na experiência de profissionais e usuários de um CAPS AD III; (2) a potência criativa do grupo em movimentos de (re)existência; (3) reflexos do contexto pandêmico no processo da Reforma Psiquiátrica; (4) estratégias de enfrentamento à pandemia da covid-19. A primeira categoria abrigou duas subcategorias: (a) o CAPS sempre foi um porto seguro e (b) entrelaçamento das práticas adotadas e as ameaças ao campo da saúde mental.
Discussão
Esta seção é dedicada para a análise e a discussão dos resultados, com base em conceitos teóricos, elementos da revisão de literatura e fragmentos das entrevistas. Com isso, explicita-se a compreensão sobre efeitos da pandemia da covid-19 na experiência dos profissionais e usuários participantes.
Efeitos da Pandemia na Experiência de Profissionais e Usuários de um CAPS AD III
Esta categoria apresenta um panorama geral acerca dos efeitos da pandemia nas experiências de profissionais e usuários do CAPS AD III, tais como: suspensão de atividades coletivas, incluindo os grupos terapêuticos, as oficinas e a assembleia com os usuários.
Os serviços foram reconfigurados. Profissionais e usuários apresentavam sentimentos de medo, insegurança e ansiedade. Houve o afastamento de parte do público assistido, considerando ainda as restrições na oferta do transporte coletivo e as recomendações das organizações de saúde para a preservação do distanciamento social.
No trecho a seguir, uma profissional relata: “Então, foi um sentimento de estar perdida e ao mesmo tempo de ter reações, de reagir, e tomar todas as precauções para a gente também não se contaminar, e pensar no usuário” (P 01, 2022). Um usuário, por sua vez, comentou:
Como que eu posso te dizer assim, não é preso, né? Mas eu me sentia mais . . . Mais medroso . . . Eu não rodava muito não, ficava mais em casa. Quando eu tinha oportunidade ou necessidade mesmo, urgência, eu saía, mas eu me senti muito só (U 05, 2022).
Com base em tragédias anteriores, Ornell et al. (2020) asseguram que os impactos psicossociais e econômicos de uma epidemia são incalculáveis, uma vez que as suas consequências para a saúde mental das populações afetadas podem superá-la, no tempo de duração e em importância. Nesses contextos de crise, o medo aumenta os níveis de estresse e de ansiedade, intensificando os sintomas daqueles sujeitos com algum tipo de sofrimento mental (Ornell et al., 2020).
Assim, compreende-se a singularidade das experiências vivenciadas no CAPS durante a pandemia, dada a complexidade dos fenômenos relacionados à loucura, bem como as metodologias de trabalho empregadas para o desenvolvimento das estratégias de cuidado.
A gente não sabia para onde ir, um puxava para um lado, outro puxava para outro, a gente não conseguiu dialogar legal, e foi uma situação de muito sofrimento. De muito sofrimento mesmo, sabe, em todos os sentidos, da questão de organização do serviço, de ter planejamento, de delinear o serviço (P 03, 2022).
Percebe-se a necessidade de fortalecer o diálogo institucional para favorecer o desenvolvimento dos processos de trabalho e a reconstrução dos fluxos de atendimento. Observa-se a importância de se investir na construção de um canal de comunicação entre o serviço e setores da gestão, uma vez que quatro participantes apontam fragilidades quanto a isso durante os anos de 2020 e 2021. Nesse sentido, o planejamento deve ser feito de acordo com as fases da pandemia, antes, durante e depois, com ações de cuidado para a população e de gestão para a reorganização da rede de atenção psicossocial; ademais, deve incluir investimentos para a formação e a capacitação dos profissionais, compondo uma coordenação interinstitucional e a criação de redes de trabalho (Noal et al., 2020).
Vale ressaltar que os usuários também sentiam os efeitos diretos. Além das dificuldades para acessar o serviço, tinham de lidar com um novo cotidiano no CAPS, com impactos para o acesso e a circulação dentro da unidade. Os atendimentos tornaram-se limitados, ocorrendo individualmente e/ou à distância, via telefone. O espaço de convivência foi perdido, com impactos diretos para a construção e a vivência do plano de cuidado ou do Projeto Terapêutico Singular (PTS).
O PTS é um instrumento construído com base nas preferências, necessidades e características do usuário. O plano engloba o diagnóstico, feito a partir de uma avaliação orgânica, psicológica e social; o estabelecimento de metas; a divisão das responsabilidades dentro da equipe; e, por último, a reavaliação do PTS (Cadore, 2012).
Os usuários também se referiram a episódios de recaída com o uso de álcool e outras drogas, bem como às dificuldades para acessar o CAPS, sentimento de medo e insegurança diante das ameaças do vírus. Manifestaram consciência acerca da necessidade de manterem o tratamento no CAPS e apontaram mudanças quanto às melhorias na qualidade de vida a partir da vinculação com o serviço.
Destaca-se que o acolhimento às pessoas com necessidade de tratamento em saúde mental, e aos seus familiares, é uma estratégia de atenção fundamental para o alívio do sofrimento, porque possibilita a identificação das necessidades assistenciais e o planejamento das intervenções (Machado et al., 2020). As pessoas com demandas em saúde anteriores à pandemia poderiam sofrer recidivas em seu estado mental, diante das dificuldades para o acesso e/ou a continuidade dos cuidados iniciados antes da pandemia (Machado et al., 2020).
Portanto, o isolamento social, o medo e as restrições impostas pela pandemia trouxeram riscos de exacerbação de transtornos mentais, uso e abuso de substâncias psicoativas, bem como dos processos de recaídas (Owens et al., 2021). Eis a relevância da articulação em rede intra e intersetorial, uma vez que esse contexto, quando atrelado a fatores como instabilidade econômica, habitacional, alimentar, e redução do acesso à saúde, coloca desafios adicionais às populações (Owens et al., 2021).
Em situações de emergências e desastres, estima-se um aumento de 30% a 50% de transtornos psíquicos na população, porém, nem todo sofrimento psicológico é caracterizado como doença, podendo ser nomeado apenas como reações normais diante de um evento anormal (OPAS, 2009). Em tais circunstâncias, observa-se o surgimento de diversos problemas nos níveis individual, familiar, comunitário e social. Conforme a proteção às pessoas é fragilizada, aumenta-se o risco de agravamento de problemas preexistentes, assim como de injustiça e desigualdade social (IASC, 2007).
Evidencia-se, portanto, a determinação biopsicossocial dos problemas de saúde mental em situações de emergência (IASC, 2007). Além disso, determinados grupos de pessoas têm maior risco de sofrerem problemas psicológicos e/ou sociais nesses contextos (IASC, 2007). Com isso, as estratégias de cuidado precisam ser articuladas intersetorialmente, com a presença de profissionais de Psicologia que podem contribuir nas fases de prevenção, preparação, resposta e recuperação, com diferentes instituições e propostas interligadas via Planos de Contingências para epidemias (CFP, 2021).
O CAPS sempre foi um porto seguro
A presente subcategoria temática aprofunda a reflexão sobre o lugar de referência ocupado pelo CAPS, na percepção de profissionais e usuários, e aponta para outras modificações importantes decorrentes da pandemia. Ao longo das seis narrativas, o CAPS emerge como um porto seguro, local de acolhimento e trocas de conhecimentos e experiências. Este dado corrobora a Portaria n. 130 do Ministério da Saúde, que prevê o CAPS AD III como lugar de referência, cuidado e proteção para usuários e familiares em situação de crise (Ministério da Saúde, 2012).
Contudo, durante os dois primeiros anos de pandemia, houve uma descaracterização do serviço, com a interrupção das atividades coletivas e de convivência, e a intensa restrição quanto ao acesso e à permanência dos usuários: “. . . ah! Antes da pandemia, a rotina . . . era mais arrochada, né? Eu percebi, tinha muito mais grupo . . . aos grupos, aos profissionais, acho que dava mais atenção” (U 05, 2022). “O CAPS sempre foi um porto seguro para muitos usuários, um espaço de convivência, de reconhecimento enquanto cidadão, não só enquanto paciente, mas enquanto cidadão” (P 01, 2022).
O CAPS AD III deve desenvolver ações para a promoção da autonomia e do protagonismo dos usuários, por meio de distintas ações, incluindo oficinas e grupos terapêuticos (Ministério da Saúde, 2012). Durante a pandemia, o coletivo se mobilizou para manter algumas atividades, utilizando-se das TDICs: “. . . a gente conseguiu assistir os usuários, primeiro individualmente, através da internet, com o telefone, mas, assim, muito mínimo, diante das nossas pretensões, porque sempre a gente pensou no coletivo, trabalhar em grupo” (P 01, 2022).
A equipe se engajou em um movimento de inventividade ao reorganizar estratégias para a continuidade dos atendimentos, apoiando-se na tecnologia disponível. Contudo, o trabalho em saúde mental demanda a construção de vínculos através das relações e dos encontros permeados por dores, vivências e acolhimento entre profissionais e usuários. Assim, por meio da troca de saberes e práticas se evidenciam os aspectos assistenciais, subjetivos e sociais (Jorge et al., 2011).
Entrelaçamento das Práticas Adotadas e Ameaças ao Campo da Saúde Mental
Esta subcategoria temática propõe reflexões sobre os prejuízos causados pelas medidas de segurança prudentemente implementadas no contexto pandêmico, no que tange aos pressupostos da Reforma Psiquiátrica. Dentre as práticas identificadas, destacam-se o reforço quanto ao uso das medicações e a redução do número de vagas para a modalidade de acolhimento 24h. Sobre este ponto, um profissional comentou:
Cada quarto tem três camas, só tá usando duas, a do meio é para ficar vazia, e eu acho que a pandemia hoje não precisa mais disso, porque já liberou para você andar sem máscara em todos os lugares. Então, qual a necessidade da gente ainda ter a cama do meio vazia? (P 04, 2022).
O trecho acima apresenta um retrato do local onde os usuários ficam acolhidos na modalidade 24h/noturno, configurando-se como um quarto no qual, inicialmente, admitia-se até três usuários. Porém, na pandemia, o número de vagas foi reduzido, inicialmente para uma e, posteriormente, para duas. Com base no exposto, refletimos sobre a necessária avaliação sobre as medidas adotadas à época, tendo em vista que, no período associado ao fragmento acima, ocorria o avanço da imunização. Os processos avaliativos desenvolvidos no âmbito do CAPS são complexos e englobam aspectos da saúde coletiva, mental e clínica, visando ao alcance dos objetivos, assim como a identificação de potencialidades e fragilidades (Silva & Lima, 2017). Ressalta-se que a pandemia impôs diversas mudanças, alterações de comportamentos, mobilidade e aspectos que estão para além dos dados epidemiológicos, constituindo-se como um fenômeno complexo, tendo sido compreendida como sindemia (Cardoso & Silva, 2022), palavra resultante da combinação dos termos sinergia e pandemia, dando a entender que, para além do vírus, a crise sanitária aglutina as sequelas produzidas por outras crises, desencadeadas em diferentes esferas da vida social.
Além de imprimir um caráter ambulatorial ao serviço, as mudanças implementadas a partir das medidas de biossegurança restringiram as práticas coletivas e de convivência, conforme apontado reiteradas vezes.
Para nós foi uma decomposição muito grande que a gente não conseguiu manter essa filosofia, e aí o nosso trabalho ficou numa perspectiva muito ambulatorial, a gente passou a atender de forma individualizada, medicamentosa, multiprofissional, mas numa lógica individualizada (P 03, 2022).
O trecho acima provoca reflexões sobre os modos de hierarquização e divisão social do trabalho na saúde, em que o poder-saber médico e as consultas psiquiátricas predominam ao ponto de secundarizar o papel dos demais saberes (Barbosa et al., 2016). Este retrocesso pode estar relacionado com o predomínio do poder disciplinar e das estratégias biopolíticas de disciplinarização dos corpos e do governo das vidas no campo das políticas públicas (Ferrazza, 2016). Lima e Yasui (2014) também nos alertavam sobre os desafios para rompermos com esta racionalidade, que opera sob a lógica do controle e insere na sociedade suas estratégias de vigilância e domesticação, sobretudo quando associa o lugar de cuidado da loucura ao isolamento e à exclusão.
A Potência Criativa do Grupo em Movimentos de (Re)Existência
A presente categoria temática lança luz sobre a importância da construção do trabalho coletivizado, em equipe, além de destacar o valor da autogestão e da organização dos trabalhadores e trabalhadoras do serviço que desenvolveram, ao longo da pandemia, processos de tomada de decisão para planejar, estudar e executar medidas de biossegurança sem prejudicar sobremaneira a continuidade dos atendimentos. Em nenhum momento o CAPS parou de funcionar.
Ao mesmo tempo, no entanto, a análise das narrativas aponta para uma sensação de fragilização nos processos de comunicação entre o serviço e alguns setores da gestão. Relatou-se a falta de espaços de formação e construção conjunta do planejamento para as estratégias aplicáveis para a continuidade do cuidado em saúde mental. Esta fragilidade indica a necessidade de se promover ações mantenedoras de laços, vínculos e de mobilização de afetos de modo coletivo diante do encontro com o desconhecido. Neste sentido, práticas de autogestão e de participação democrática nos espaços de decisão institucional são fundamentais.
Diante dos desafios que se colocavam, a equipe reorganizou o fluxo de atendimentos, criou um novo protocolo e propôs estratégias de acolhimento mútuo entre os profissionais, com um espaço para a troca e o compartilhamento de afetos, experiências, saberes e conhecimento, conforme ilustrado pelo fragmento a seguir:
Mas aí, teve uma reação, teve um protagonismo de nós, trabalhadores da saúde, precisamos tomar algumas decisões em cima do desconhecido, tomar algumas decisões e nos apoiar, nos fortalecer enquanto equipe e tentar fazer alguma coisa (P 01, 2022).
Assim, vale resgatar a compreensão acerca da relação entre grupos, organizações e instituições, partindo do pressuposto de que existe uma interdependência entre esses três elementos e a realidade social (Lapassade, 1977). E, na medida em que ocorre um processo grupal, pode haver a conscientização de seus membros, quando são conhecidos os determinantes de contradições e tensões sociais, bem como as possibilidades para a sua superação (Lane & Codo, 1988).
A mobilização dos profissionais provocou mudanças no âmbito institucional, trazendo à tona o conceito de autogestão empregado por Lapassade (1977), que o relaciona com a necessidade de encurtamento da distância entre quem governa e quem é governado. Observa-se que a pandemia provocou diversos efeitos no cotidiano dos participantes da pesquisa, tais como algumas experiências compartilhadas a partir de acolhimento mútuo entre profissional-usuário e profissional-profissional.
O acolhimento na atenção psicossocial configura-se como um dispositivo primordial, especialmente em contextos de crise, conforme exposto no trecho a seguir: “eu fui bem acolhido dessa vez, bem acolhido, já teve outras vezes também que eu tive a chance de melhoria, passei um tempo bom, recaí, mas durante essa pandemia agora foi difícil pra mim, foi muito difícil” (U 06, 2022).
Aspecto que nos remete ao uso e à definição dos tipos de tecnologias de cuidado utilizadas no contexto da saúde, sendo descritas como as tecnologias leves, tecnologias leve-duras e tecnologias duras (Lima Alves & Lavor Filho, 2021). O trecho da narrativa acima evidencia a importância que há na utilização das tecnologias leves, que envolvem escuta qualificada e ativa para proporcionar espaços de acolhimento aos usuários, tendo em vista suas demandas.
Denota-se que as tecnologias de cuidado leves não procuram alcançar a cura, mas a melhoria da qualidade de vida (Lima Alves & Lavor Filho, 2021). E buscam a produção de vida, sentido, convivência, reabilitação psicossocial e o fortalecimento da cidadania (Gonçales & Machado, 2013).
Torna-se primordial considerar a relevância dos aspectos culturais e das relações sociais em comunidades atingidas por desastres, pois os territórios vulneráveis a calamidades são propícios ao desenvolvimento de atitudes de solidariedade em situações de emergência. O sofrimento compartilhado pode produzir uma cultura mais coletivista, capaz de tornar as pessoas mais solidárias ao vivenciarem um sofrimento compartilhado (CFP, 2021).
É válido lembrar que as pessoas afetadas durante as situações emergenciais também apresentam recursos, tais como habilidades para a resolução de problemas, modos de comunicação, formas de negociação e maneiras de autossustento que podem oferecer apoio à saúde mental e bem-estar psicossocial (IASC, 2007). Portanto, em tais contextos, encontramos recursos econômicos, educacionais, de saúde, espirituais e culturais próprios. Daí a importância em conhecermos a natureza dos recursos locais em situações de emergência, para saber se podem ser úteis ou prejudiciais, e em que medida são acessíveis (IASC, 2007).
Reflexos do Contexto Pandêmico no Processo da Reforma Psiquiátrica
A pandemia não se restringe aos dados epidemiológicos. Relaciona-se de forma direta com a conjuntura política, econômica e social do país. Os seus efeitos se fizeram sentir na política de saúde mental e no processo da reforma psiquiátrica. Observou-se o fortalecimento das Comunidades Terapêuticas (CTs) e o desmonte dos atos de regulação desta política pública.
Em uma entrevista, comentou-se o seguinte: “. . . estamos desconstruindo a política de saúde mental que é justamente o contrário do que a gente precisa” (P 03, 2022). Naquele contexto de crise sanitária, vale salientar que ocorria o chamado “revogaço”, medida que visou revogar mais de 100 atos normativos que regulam a saúde mental desde os anos 1990 no Brasil, o que representou um duro ataque contra a Política Nacional de Saúde Mental (Antunes, 2020).
A proposta do “revogaço” seria pauta na reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), no dia 17 de dezembro de 2020. Porém, a informação foi divulgada e houve uma resposta de resistência dos movimentos sociais, por meio da articulação de ações junto aos poderes Legislativo e Judiciário (Da Silva, 2022). Com isso, a coordenação nacional de saúde mental retirou a proposta da pauta.
Essa trama foi iniciada em 2019, no início do governo de Jair Bolsonaro, com a publicação da Nota Técnica n. 11/2019, aprovada em 4 de fevereiro, que remodelou a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para distanciá-la do modelo de cuidado territorial, em uma tentativa de resgate ao modelo asilar (Passos et al., 2021): “Mas internação nessas casas de recuperação, não. Não, não adianta nada, passei 6 meses, 8 meses, um ano que seja, se for por força, ainda, é pior, porque a pessoa se revolta, até com a família mesmo” (U 06, 2022).
Nos dois primeiros anos de gestão, o governo bolsonarista despendeu um forte incentivo às CTs, reforçando-as enquanto via principal para o tratamento de pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas (Passos et al., 2021). “Tanto que as comunidades terapêuticas que já vinham ali na espreita, vinham ali devagarinho, e tal, durante esse período de pandemia elas tiveram um boom” (P 02, 2022).
Este movimento caminhou para a (re)manicomialização da política de saúde mental, com expansão das internações psiquiátricas, ampliação das CTs e de práticas outrora utilizadas para punir, torturar e domesticar os corpos, como a eletroconvulsoterapia (ECT) (Passos et al., 2021).
A conjuntura política pode exercer múltiplos efeitos no processo de construção da política pública de atenção à saúde mental e no funcionamento do serviço. Com isso, é válido considerar que as percepções acerca do CAPS se modificaram durante a pandemia, a partir das medidas adotadas em larga escala, dentro e fora dos dispositivos de saúde. “Até mercado, até comércio, tudo tinha horário, ficava muito restrito, e aqui percebi também que, assim, o atendimento deu uma diminuída” (U 05, 2022).
Cenário semelhante se viu em outras localidades. De acordo com um boletim informativo lançado no estado do Goiás, 62% dos CAPS mantiveram-se em funcionamento, 36,4% apresentavam funcionamento com equipes e horários reduzidos, e 1,3% afirmou ter interrompido os atendimentos presenciais por 30 dias, devido à determinação do gestor local (Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, 2020).
Dados das entrevistas sugerem que os usuários compreenderam a necessidade de se afastarem do CAPS, em razão das medidas de biossegurança. Constatou-se, no entanto, a necessidade de se investir no delineamento de reavaliações das medidas adotadas, tendo em vista que, legítimas ou não, as restrições provocaram retrocessos para a reforma psiquiátrica, sobretudo mediante as investidas políticas para fragilização das práticas de cuidado e de assistência durante o governo da época.
Em situações de emergência, vale ressaltar, deve-se garantir a promoção dos direitos humanos de todas as pessoas afetadas, com prioridade aos indivíduos e grupos com maior risco de violações de seus direitos (IASC, 2007). Deve-se promover a igualdade e a não discriminação, maximizando o acesso aos serviços de saúde mental e de apoio psicossocial em emergências humanitárias, a despeito de gênero, faixa etária, grupos étnicos ou linguísticos e localidades (IASC, 2007).
Estratégias de Enfrentamento à Pandemia da Covid-19 no Campo da Saúde Mental
A última categoria temática remete aos caminhos construídos e trilhados pelos profissionais e pelos usuários na oferta e na vivência dos tratamentos durante a pandemia. Além disso, sinaliza percursos possíveis para o enfrentamento de uma crise sanitária e o fortalecimento do campo da saúde mental.
Assim, identifica-se como uma das principais estratégias de enfrentamento a construção do protocolo que redirecionou atendimentos, fluxos de trabalho, oferta de atividades e encaminhamentos no âmbito da rede de saúde. A construção do referido documento ocorreu de forma multiprofissional e interdisciplinar, uma vez que diversos profissionais de múltiplas áreas contribuíram a partir de suas especificidades.
E depois foi o protocolo que a gente teve que criar para continuar trabalhando, a gente não podia parar . . . construiu um protocolo se não me engano à noite, e aí foi um momento também muito importante, onde a maioria dos trabalhadores participou efetivamente dessa construção, de noite, pelo WhatsApp (P 01, 2022).
O trecho acima demonstra a importância que há no fortalecimento do trabalho em equipe, e no esforço dos profissionais para manter as práticas de assistência em saúde mental em um período difícil. Do mesmo modo, expressa a importância dos processos avaliativos para a adequação de instrumentos técnicos em relação à realidade e à dinâmica institucional, mantendo o usuário no centro das ações. Assim, a organização do serviço substitutivo funciona de acordo com a lógica do território, com olhares e ouvidos atentos para os modos de vida dos usuários, por meio de tecnologias capazes de gerar reflexões sobre as relações entre a produção de cuidado e o espaço no qual estão inseridos os agentes envolvidos nos processos de cuidado (Lima & Yasui, 2014).
Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU) aponta a atenção psicossocial como parte essencial das respostas governamentais à pandemia, recomendando a expansão das ofertas de cuidado (Surjus, et al., 2020). Torna-se importante pontuar sobre o papel fundamental das políticas sociais e dos serviços públicos, considerando o alcance das práticas de gestão integrada do órgão da Defesa Civil e das Redes de Atenção Psicossocial e Socioassistencial, tendo em vista o reconhecimento das características da população atingida e da potência contida nos territórios (CFP, 2021).
Entende-se que o território também contempla as formas de subjetivação e as relações que ali são produzidas. Assim, compreendendo a transformação social pela ótica da Psicologia, em especial da Psicologia Social, valoriza-se a perspectiva da participação coletiva em processos de construção comunitária das políticas públicas, inclusive daquelas voltadas para a Gestão Integral de Riscos, Emergências e Desastres (CFP, 2021).
Além disso, sinaliza-se a necessidade de construção dos espaços formativos, de capacitação e de produção coletiva do conhecimento, para ampliação da compreensão sobre as possibilidades de intervenção. Neste sentido, destaca-se a importância dos investimentos em processos de educação permanente e educação popular em saúde.
Ao longo das análises, observou-se a incorporação do uso das TDICs para o delineamento e a reinvenção dos espaços de aprendizagem em um momento no qual existiam inúmeras restrições para a vivência presencial. Observou-se que a utilização de ferramentas digitais viabilizou reuniões de equipe, matriciamentos e atendimentos aos usuários e familiares. Conforme expresso no trecho abaixo:
E aí as reuniões de equipe começaram a acontecer numa modalidade remota para que esse espaço não fosse se perdendo, porque considero que esse espaço é um espaço muito importante, onde a gente consegue discutir processos de trabalho, onde a gente consegue discutir casos de usuários de uma forma mais ampla (P 02, 2022).
Em situações emergenciais, a utilização de modelos de educação híbrida pode ser uma prática exitosa no âmbito dos serviços de saúde, uma vez que possibilita a redução de riscos e otimiza a condução dos processos de trabalho (Silva et al., 2022). Durante a pandemia, instituições de saúde realizaram ações de educação permanente, com a execução de treinamentos sobre o processo de paramentação e desparamentação dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), visando à proteção dos trabalhadores (Santos et al., 2021). Observações sobre estas alternativas apoiadas nas tecnologias digitais estiveram presentes em quatro narrativas, tendo sido destacado o seu alcance para a efetivação dos atendimentos e para a realização de processos de trabalho em situações de distanciamento social, incluindo as práticas formativas entre as equipes.
A produção de estratégias educativas integradas ao campo da saúde deve considerar o contexto social, sanitário, e as particularidades do serviço, a partir de problemas encontrados na prática cotidiana, com o objetivo de construir soluções (Ministério da Saúde, 2009). A educação popular em saúde, por sua vez, mantém uma relação histórica com os processos de construção da política de saúde no Brasil, junto à luta antimanicomial, entendendo a saúde como uma prática social ancorada no compromisso ético-político assumido com as classes populares, em que o diálogo e os saberes prévios dos usuários são levados em consideração (Falkenberg et al., 2014).
Vale reforçar que a atenção psicossocial não se restringe aos serviços médico-psiquiátricos, pois se relaciona com outros campos do saber, como: filosofia, sociologia, educação, direito, ciências sociais, psicologia, dentre outros. As ações de cuidado fomentadas no campo da atenção psicossocial fortalecem os processos de resistência diante dos constantes ataques à democracia, aos direitos humanos e à vida (Amarantes & Nunes, 2018). Os pressupostos e princípios da Reforma Psiquiátrica atrelados às estratégias de cuidado promovidas nos CAPS propõem a construção de um outro lugar social para a loucura em nossa tradição cultural (Amarantes & Nunes, 2018).
Com isso, diante de situações emergenciais, devemos considerar a potência contida no protagonismo da população e, sobretudo, no exercício da cidadania que depende da criação de condições de pertencimento e de fortalecimento subjetivo (CFP, 2021). Contudo, levando em conta a singularidade de cada emergência, a diversidade de culturas e contextos sociais e históricos, torna-se inviável criar normas universais de boas práticas (IASC, 2007).
Mesmo assim, é possível pensar em estratégias, tais como estabelecer um grupo de coordenação geral para os serviços de saúde mental e apoio psicossocial; promover capacidades governamentais, integrando cuidados de saúde mental para sobreviventes de emergência em serviços gerais de saúde e nos serviços de saúde mental comunitários (IASC, 2007); apoiar uma resposta integrada; adaptar os instrumentos de diagnóstico ao contexto local; coletar e analisar informações para planejar as ações necessárias; e estimular as capacidades locais conforme os recursos disponíveis (IASC, 2007).
Conclusões
A pesquisa não visou à apreensão engessada da realidade, bem como não se propôs à descoberta de uma verdade absoluta, uma vez que os dados coletados remontam a um contexto social e histórico. Embora a pandemia tenha sido oficialmente encerrada em 5 de maio de 2023, por meio de um pronunciamento do diretor-geral da OMS, em Genebra, esta pesquisa fez um recorte do período entre 2020 e 2021.
Este estudo colocou em análise os efeitos da pandemia na experiência de profissionais e usuários do CAPS. Com isso, alcançou os objetivos propostos e compartilhou contribuições acadêmicas e sociais. Destacaram-se alterações no fluxo de atendimentos, com modificações na forma de acesso ao serviço, interrupção de atividades coletivas e redução na oferta do número de vagas para o acolhimento 24h. Os dados também apontaram a manifestação de sentimentos de ansiedade, medo e insegurança em profissionais e usuários do CAPS AD III, além da ocorrência de contaminação, pela covid-19, de membros da equipe multiprofissional.
Soma-se às mudanças o aumento do uso das TDICs, que viabilizou a realização de atendimentos, matriciamento e reuniões on-line ou por telefone. Além disso, em meio aos desafios, a equipe se mobilizou para construir um protocolo de atendimentos, em um movimento de enfrentamento coletivo diante de dificuldades, perdas e retrocessos em relação às conquistas da Reforma Psiquiátrica.
Destacam-se algumas limitações deste estudo, tais como: ausência de profissionais de outras especialidades que compõem a equipe multiprofissional e de um maior número de usuários entre os participantes. Por fim, projeta-se a realização de novos estudos sobre os impactos e as experiências de profissionais de saúde mental em contextos de emergências humanitárias.
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Recebido em: 29/06/2023
Última revisão: 11/11/2023
Aceite final: 11/12/2023
Sobre os autores:
Stéfhane Santana da Silva: [Autora para contato]. Mestra em Ensino em Ciências e Saúde pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Especialista em Saúde Mental pela Fundação Escola de Saúde Pública de Palmas (FESP). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). Professora no curso de Psicologia do Centro Universitário Católica do Tocantins (UniCatólica). Professora Substituta no curso de Psicologia da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Supervisora do Programa Acolhimento Institucional e Familiar para crianças e adolescentes do Tribunal de Justiça do Tocantins (TJ/TO). E-mail: stefhane.santana@mail.uft.edu.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7375-5314
Ladislau Ribeiro do Nascimento: Doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Graduado em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor no curso de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Ensino em Ciências e Saúde da Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: ladislaunascimento@mail.uft.edu.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6980-706X
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