Espiritualidade/Religiosidade como Recurso de Enfrentamento do Diagnóstico da Deficiência Auditiva Adquirida

Spirituality/Religiosity as a Coping Strategy After the Diagnosis of Acquired Hearing Loss

Espiritualidad/Religiosidad como Estrategia de Afrontamiento del Diagnóstico de Pérdida Auditiva Adquirida

Giovana Orru Tiengo

Midori Otake Yamada

Armando dos Santos Trettene

Universidade de São Paulo (USP)

Resumo

Introdução: Objetivou-se desvelar a espiritualidade/religiosidade como recurso de enfrentamento situacional do diagnóstico em pacientes adultos com surdez adquirida. Método: Estudo observacional, de delineamento qualitativo. Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, norteadas pelo questionário FICA, em que: F = fé/crença; I = importância/influência; C = comunidade; A = abordagem no tratamento. As perguntas foram adaptadas para focar na experiência do diagnóstico da deficiência auditiva e suas consequências. Foram entrevistados cinco pacientes adultos em processo de avaliação para implante coclear, abordados durante atendimentos de rotina ambulatorial. Utilizou-se a análise de conteúdo na modalidade Temática. Resultados e Discussão: A partir da análise, foram delimitadas três categorias: enfrentando o diagnóstico a partir da vivência da fé; vivenciando o apoio comunitário; dificuldades vivenciadas na abordagem espiritual/religiosa. Conclusão: Desvelou-se que a espiritualidade/religiosidade, traduzidas em suas práticas, crenças, valores e suporte social, são utilizadas como recurso de enfrentamento efetivo pelos participantes, bem como oferecem base para a construção de novos sentidos e direcionamentos diante das mudanças decorrentes do diagnóstico. 

Palavras-chave: perda auditiva, adaptação psicológica, espiritualidade, religião

Abstract

Introduction: It was aimed reveal spirituality/religiosity as situational coping strategies after the diagnosis in adult patients with acquired deafness. Method: Observational study with qualitative design. For data collection semi-structured interviews were used, guided by the FICA questionnaire, which means: F = faith/belief; I =importance/influence; C = community; A = treatment approach. The questions were adjusted to focus on the experience regarding the diagnosis of hearing loss and the consequences of it. There were interviewed 5 adult patients in preoperative assessment of cochlear implant. They were approached during routine care in the hospital. The data collected was analyzed using the Content Analysis technique, in the Thematic modality. Results and Discussion: Based on the analysis, three categories were delimited: facing the diagnosis based on the experience of faith; experiencing community support; difficulties experienced in the spiritual approach. Conclusion: It was revealed that spirituality/religiosity, its practices, beliefs, values and social support, are used as an effective coping strategy by participants, and offer a basis for the construction of meanings and directions in face of changes due to the diagnosis. 

Keywords: hearing loss, psychological adaptation, spirituality, religion

Resumen

Introducción: Se dirigió a revelar la espiritualidad/religiosidad como estrategias de afrontamiento situacional frente al diagnóstico de pérdida auditiva en pacientes adultos con sordera adquirida. Método: Estudio observacional, de enfoque cualitativo. Para la recolección de datos se realizaron entrevistas semiestructuradas, guiadas por el cuestionario FICA, en que: F = fe/creencia; I =importancia/influencia; C = comunidad; A = abordaje en el tratamiento. Las preguntas fueron adaptadas para centrarse en la experiencia del diagnóstico de pérdida auditiva y sus consecuencias. Se entrevistó a 5 pacientes adultos sometidos a evaluación para Implante Coclear, abordados durante el cuidado ambulatorio rutinario. Los datos fueron analizados mediante Análisis de Contenido en la modalidad Temática. Resultados y Discusión: A partir del análisis se identificaron tres categorías: afrontar el diagnóstico a partir de la experiencia de fe; experimentando el apoyo de la comunidad; dificultades experimentadas en el enfoque espiritual/religioso. Conclusión: Se reveló que la religiosidad, traducida en sus prácticas, creencias, valores y apoyo social, son utilizadas como estrategias eficaces de afrontamiento por los participantes y también ofrecen base para la construcción de nuevos sentidos y orientaciones frente a los cambios resultantes del diagnóstico.

Palabras clave: pérdida auditiva, adaptación psicológica, espiritualidad, religión

Introdução

A surdez interrompe a principal via de acesso ao mundo sonoro, a comunicação do indivíduo sofre bloqueios, e isto traz especificidade nas percepções e características das pessoas com deficiência auditiva (Santos & Carvalho-Freitas, 2019). Partindo do pressuposto de que todos os sujeitos têm sua subjetividade forjada na significação das relações sociais, isto é, o contexto cultural dos indivíduos é parte constituinte do seu processo de personalização (Marin & Góes, 2006), as formas de vínculo com a realidade e a maneira do sujeito ser no mundo são impactadas pela surdez. Tratando-se do público adulto com deficiência auditiva adquirida, as consequências de um diagnóstico precisam levar em conta que muitos indivíduos se desenvolveram física e psicologicamente até a fase adulta com a audição normal ou com perda progressiva, o que também traz particularidades importantes. De acordo com Melo e Yamada (2022), pessoas que perderam a audição na vida adulta compreendem o diagnóstico da deficiência auditiva como um processo de luto, ou seja, vivem o impacto da perda da audição e várias outras perdas que estão interligadas, tais como a perda da comunicação, da vida social, do trabalho, da rotina e de toda a realidade construída anteriormente, o que pode trazer diversos prejuízos emocionais e afetivos para o indivíduo e seu entorno. Tais sentimentos e sensações negativas, quando experimentados de maneira prolongada, podem evoluir para quadros de sofrimento mais graves e persistentes. 

É importante observar que, após o diagnóstico, decisões precisam ser tomadas pelos pacientes para iniciar ou não o tratamento em saúde auditiva. Um dos possíveis caminhos é a cirurgia de implante coclear, um recurso indicado para pessoas com deficiência auditiva severa/profunda que não possuam benefícios com aparelho de amplificação sonora individual. O processo de avaliação no programa de implante coclear e a tomada de decisão de realizar ou não a cirurgia podem impactar emocionalmente a pessoa, especialmente quando as expectativas são altas e fantasiosas, nas quais as pessoas acreditam ser possível ouvir como antes (Yamada & Bevilacqua, 2012). 

Diante do diagnóstico da deficiência auditiva e suas consequências, surge a necessidade de ampliar novos sentidos para o indivíduo, bem como auxiliar no desenvolvimento de seus recursos de enfrentamento. O termo enfrentamento, utilizado neste estudo, condiz com o conceito de coping, definido por Panzini e Bandeira (2007) como “o conjunto de estratégias utilizadas pelo indivíduo no manejo de situações estressantes, que podem ser da ordem predominantemente cognitiva ou comportamental”. As autoras descrevem que os recursos podem se traduzir na tentativa de autorregulação emocional e/ou em ações concretas para resolver, minimizar ou esquivar-se das situações e dos danos que se apresentam à pessoa em sofrimento. Estes recursos também são aprendidos e internalizados nas diversas mediações culturais em que o indivíduo se insere no decorrer da vida, e estas estão ligadas, portanto, a valores, crenças, pessoas e grupos que permeiam o contexto de cada um. 

Pacientes acometidos por doenças severas geralmente utilizam crenças religiosas como fonte de enfrentamento, e estas costumam apresentar impactos positivos na recuperação da saúde (Saad et al. 2001). Koenig (2007), autor de referência na área da espiritualidade em saúde, comenta que em vastas pesquisas aparece uma estreita relação entre populações saudáveis e práticas religiosas, associando estas com um maior bem-estar, além do enfrentamento exitoso já citado. Omais e Santos (2022) apresentam a relação entre parte destes resultados positivos justamente a sentidos construídos durante a vivência de eventos desafiadores, pois tais crenças e valores conseguem fortalecer o propósito de vida dos indivíduos. Os mesmos autores ainda apontam que as crenças e os valores espirituais/religiosos influenciam diretamente sobre hábitos, comportamentos, e ainda podem favorecer o apoio social da própria comunidade ao paciente, formando um conjunto de recursos que se tornam importantes para o bem-estar e a qualidade de vida de indivíduos.

 A revisão de Foch et al. (2017) aponta um aumento de publicações sobre o coping espiritual/religioso no contexto de saúde, especialmente a partir de 2010, demonstrando mais uma vez a importância do tema. Oliveira et al. (2013) também denotam um aumento na importância do papel das crenças espirituais/religiosas na assistência à saúde e evidenciam o respeito aos valores do paciente como aspecto fundamental nos cuidados, embasados pelos princípios da bioética e pela importância da criação do vínculo entre profissional e paciente. Os mesmos autores indicam diversos estudos que demonstram um número expressivo de pacientes que gostariam de ter sua dimensão espiritual considerada no processo de sua recuperação de saúde. 

A maioria das produções científicas investigam os efeitos da espiritualidade/religiosidade conjuntamente, no entanto, tais termos se diferenciam quanto ao seu conceito. Os conceitos utilizados neste trabalho convergem com a visão trazida por Saad et al. (2001), que definem a religiosidade como prática que envolve necessariamente a existência de um grupo com cultos próprios, e a espiritualidade como prática que pode ou não incluir doutrinas compartilhadas, com valores, comportamentos e uma participação religiosa, por tratar-se da disposição do indivíduo para encontrar significado à sua vida e experiências de maneira mais ampla. Neste trabalho, optou-se por utilizar os termos simultaneamente, a fim de seguir a tendência dos estudos sobre a temática, diferenciando-os apenas quando necessário. 

Também é relevante apontar que, na experiência das autoras deste trabalho que atuam na área da saúde auditiva, a temática da espiritualidade/religiosidade aparece nos atendimentos com frequência, quando é requisitada a expressão de dificuldades sociais e psicológicas vividas pelo paciente. De maneira geral, os pacientes trazem a utilização do coping espiritual/religioso como eficaz em suas vivências, verbalizando recursos que contemplam, majoritariamente, uma conexão de sentido direto entre seu comportamento e decisões no tratamento e a exaltação do poder de um ser superior para controlar as adversidades do diagnóstico da deficiência auditiva. A área da audiologia, portanto, beneficia-se do suporte de uma abordagem orientada à visão integral das pessoas com deficiência auditiva, e os fatores espirituais, dentre outros, estão relacionados à adesão dos pacientes nas mais diversas fases do tratamento (Pillay & Moonsamy, 2018).

Pargament et al. (2011) mostraram em seu estudo que a religião está inserida em todas as facetas do processo de enfrentamento de pessoas religiosas em sofrimento, desde os métodos adotados pelos sujeitos até seus resultados. Para os autores, é importante não apenas mensurar a espiritualidade/religiosidade no coping, mas explorar de quais formas se expressa e se insere em tais recursos. Nessa direção, Pargament et al. (2000) descreveram 21 métodos de coping espiritual/religioso. Tais classificações expressam estratégias internas e comportamentos ligados à espiritualidade/religiosidade utilizados como base para enfrentar eventos estressores. Segundo os autores, tais recursos têm a finalidade de busca por novos sentidos e transformação de valores diante da situação complicada, em que os sujeitos tentam dispor de métodos de controle, de aproximações ao conforto e aos cuidados de um ser superior ou de uma comunidade que ofereça suporte, podendo envolver comportamentos passivos ou ativos diante da situação, atividades interacionais entre membros de comunidade religiosa e estratégias de autorregulação emocional. 

Apesar de a literatura correlacionar a espiritualidade/religiosidade a comportamentos mais saudáveis e melhor percepção da qualidade de vida, nem todos os efeitos das práticas espirituais/religiosas são positivos. De acordo com Panzini e Bandeira (2007), as comunidades religiosas podem proporcionar aos fiéis sentimentos negativos, como a culpa; também podem determinar restrições comportamentais e até favorecer o isolamento do indivíduo que destoa dos padrões estabelecidos nos valores e crenças compartilhados, podendo aumentar o sofrimento psíquico de praticantes que estejam em momento de fragilidade emocional. Dentre os métodos de coping descritos por Pargament et al. (2000), também são evidenciados recursos internos que desfavorecem o enfrentamento exitoso a situações desafiadoras, tais como: descontentamento espiritual, sensação de punição divina e reavaliação da dimensão dos poderes de Deus. Considerando-se, ainda, o panorama histórico-social brasileiro, faz-se relevante citar a necessidade de atenção especial aos grupos religiosos não dominantes no Brasil, por serem alvo constante de preconceito e estereótipos (Lee et al., 2022), comportamentos que podem ser prejudiciais ao enfrentamento situacional, relacionados a diagnósticos e outros problemas de saúde.

Uma vez que o papel profissional do psicólogo atuante em serviços de saúde auditiva perpassa por avaliações clínicas relacionadas à apreensão das experiências de sofrimento psicológico de pessoas que perderam a audição e estão em processo diagnóstico, observa-se a relevância em não apenas conhecer valores e crenças espirituais/religiosas do paciente, mas também relacioná-los à vivência da surdez e aos sentidos construídos neste processo, explorando de quais formas o enfrentamento espiritual/religioso se apresenta. Fica explícito, portanto, a importância de desvelar a relação entre espiritualidade/religiosidade e saúde auditiva de forma a compreender a pessoa na sua integralidade e refletir sobre as intervenções. Para que isto seja possível, é necessário compreender se a espiritualidade/religiosidade é de fato utilizada como recurso de enfrentamento no diagnóstico da deficiência auditiva, e se suas crenças e práticas, quando acionadas, favorecem ou desfavorecem a promoção de saúde dos pacientes. Faz-se importante verificar também quais os impactos que este modo de enfrentamento tem no momento do diagnóstico, se há mobilização de suporte social comunitário, e como as decisões no processo de reabilitação podem ser afetadas pelas vivências que o paciente traz. Diante do exposto, buscou-se responder ao seguinte questionamento: como se apresenta a espiritualidade/religiosidade como recurso de enfrentamento situacional ao diagnóstico da surdez adquirida?

Método

Delineamento do Estudo

Realizou-se um estudo observacional, de delineamento qualitativo, cujo relato norteou-se pela diretriz Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ) (Souza et al., 2021). 

Participantes

Para a coleta de dados, foram incluídos pacientes adultos diagnosticados com perda auditiva adquirida de grau severo/profundo que estavam em processo de avaliação pela equipe interdisciplinar para a cirurgia de implante coclear, no período de coleta estipulado, atendidos ao menos uma vez na Seção de Implante Coclear da instituição cenário da pesquisa. Foram excluídos pacientes que não possuem linguagem oral/escrita inteligível. A amostra foi intencional e de conveniência, ferramenta amplamente utilizada em pesquisas qualitativas da área da saúde. Durante o período de coleta, foram considerados elegíveis seis pacientes, dos quais cinco aceitaram participar da pesquisa. Assim, a amostra se constituiu de cinco participantes.

Cenário da Pesquisa

A pesquisa foi realizada em um hospital público e terciário, situado no interior de São Paulo, Brasil, que oferece atendimentos interdisciplinares às pessoas com deficiência auditiva, candidatas à cirurgia de implante coclear.

Procedimento de Coleta de Dados

Os participantes elegíveis foram convidados a participar do estudo durante o atendimento psicológico de retorno, oferecido no processo de avaliação pela equipe da Seção de Implante Coclear. Nesse momento, foram esclarecidos o objetivo da pesquisa e o método de coleta de dados. Em acréscimo, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para formalizar a participação. A coleta de dados foi realizada entre janeiro e abril de 2023, por meio de entrevista semiestruturada, em ambiente privativo, cujo conteúdo foi gravado em áudio. Para tal, foi utilizado o questionário de História Espiritual – FICA, em que: F = fé/crença; I = importância/influência; C = comunidade; A = abordagem no tratamento; em sua versão traduzida para o português brasileiro (Lucchetti et al., 2010). Este material é composto por doze perguntas abertas, categorizadas a partir dos subtemas explicitados, sendo capaz de captar a história espiritual do paciente, necessária para a compreensão do papel da espiritualidade/religiosidade em seu enfrentamento diante de dificuldades (Lucchetti et al., 2010). Em acréscimo, para maior aprofundamento nos aspectos relacionados à saúde auditiva, a pesquisadora principal foi adaptando as perguntas de maneira a direcionar o foco das respostas dos participantes para o tema de interesse do estudo, ou seja, as perguntas que abordavam a utilização da espiritualidade/religiosidade de maneira abrangente ou cotidiana foram direcionadas especificamente ao diagnóstico da perda auditiva e seus desdobramentos. Para Esporcatte et al. (2022), a utilização desse instrumento favorece a anamnese espiritual, ao promover maior desenvoltura e abrangência, possibilitando ampliar a capacidade de atender às demandas do paciente, e, para isso, adaptações podem ser realizadas visando ampliar as possibilidades de apreensão dos fenômenos envolvidos a partir das diferentes realidades/situações.

O tempo médio de duração das entrevistas foi de 25 minutos. Ao final de cada entrevista, a gravação foi apresentada aos participantes, sendo eles questionados se gostariam de rever ou modificar algo, e não houve mudanças. Ainda, ocorreu a transcrição na íntegra, assim como a análise de cada uma, visando categorizar os resultados. Ao término da pesquisa, os participantes foram informados dos resultados presencialmente.

Em acréscimo, os participantes foram caracterizados segundo as variáveis: idade, gênero, escolaridade, estado civil, presença de vínculo empregatício atual e denominação da religião que professa, se houver. 

Aspectos Éticos

A realização da pesquisa recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, cenário da pesquisa, por meio do CAAE: 65812522.3.0000.5441. Como forma de preservar o sigilo da identidade dos participantes, utilizou-se a letra “P” seguida de números arábicos sequenciais para diferenciá-los. 

Análise dos Resultados

Os depoimentos foram submetidos à Análise de Conteúdo na modalidade Temática, metodologia que engloba técnicas sistemáticas para descrever comunicações, na qual se percorrem etapas fundamentais: pré-análise, exploração do material e inferência/interpretação dos resultados (Bardin, 2016/1977). Nessa direção, buscou-se inicialmente realizar a leitura flutuante dos textos, observando os princípios de pertinência, exaustividade, homogeneidade, exclusividade e representatividade. Sequencialmente, buscou-se apreender o significado central do conceito, por meio do qual emergiram as categorias de codificação, assim como os recortes das unidades que representaram um real significado para alcançar os objetivos deste estudo. Para a categorização, utilizou-se o critério semântico das palavras visando trazer o significado real das unidades de registro. Ao final, o tratamento dos resultados foi realizado pela inferência e interpretação dos conteúdos, retomando a fundamentação do estudo, alicerçado no correto sentido da análise (Bardin, 2016/1977).

Resultados e Discussão

A amostra de cinco participantes foi composta por três mulheres e dois homens, e apresentou faixa etária de 43 a 61 anos. Todos se denominaram casados e apenas um deles não possui vínculo empregatício. Quanto à escolaridade declarada, dois deles possuem ensino superior completo, um possui ensino médio completo, e outros dois possuem ensino fundamental incompleto. Todos eles se intitulavam pessoas religiosas cristãs. 

A partir da análise das entrevistas, foram elencadas três categorias de análise: (1) enfrentando o diagnóstico a partir da vivência da fé; (2) vivenciando o apoio comunitário; (3) dificuldades vivenciadas na abordagem espiritual/religiosa. 

Enfrentando o Diagnóstico a Partir da Vivência da Fé

A perda auditiva adquirida traz mudanças significativas ao indivíduo, visto que os vínculos com as pessoas e com o mundo não serão mais os mesmos construídos como ser ouvinte. A dor da perda e o desejo da cura são marcos comuns em momentos após o diagnóstico, especialmente na população que adquire a deficiência auditiva na adultez (Melo & Yamada, 2022). Observa-se, nos depoimentos, a importância das crenças espirituais/religiosas como modalidade de enfrentamento diante deste panorama de sofrimento e incerteza. Evidenciou-se a afirmação da fé como aspecto norteador no processo de aceitação e na decisão quanto à realização da cirurgia de implante coclear, bem como a crença na cura a partir da intervenção divina. Também aparece a influência da fé na construção e manutenção da resiliência dos sujeitos diante do diagnóstico.

“As crenças me ajudam muito, pois, para Deus, nada é impossível; no meu caso, com a perda da audição, eu tenho pedido a cura e a direção a respeito da cirurgia; se for da vontade do senhor, que tudo dê certo . . .” (P1)

“A fé tem muita ligação com a resiliência; como um tanque de combustível que vai se enchendo . . . a hora que você precisa, se você tem bastante, vai poder usar bastante
. . . se você está com bastante fé, ou está perto de pessoas que alimentam essa fé, ajuda muito. É o que eu tenho vivenciado com a perda da minha audição.”
(P2)

Os entrevistados demonstram, a partir da crença, um modelo de enfrentamento no qual a fé espiritual/religiosa parece movimentá-los em direção a uma elaboração de sentidos para alcançar a autorregulação emocional abalada após o diagnóstico, realizando, portanto, esforços de ordem cognitiva direcionados à superação do sofrimento. Observam-se alguns dos métodos de coping descritos por Pargament et al. (2000): os sujeitos procuram em suas crenças o suporte para ressignificar uma experiência de sofrimento e tomar um novo rumo, pedem um milagre como forma de tentar controlar a situação estressora. Há, portanto, um elemento em comum nos depoimentos: a experiência de ruptura causada pelo diagnóstico suscita uma reorientação quanto à continuidade da vida, e a presença da crença espiritual/religiosa parece servir de costura, de readaptação a partir do acreditar ser acolhido, cuidado e fortalecido por um ser superior, pois, desta maneira, será alcançado o alívio, o restabelecimento do bem-estar psicológico. A literatura, de fato, aponta que indivíduos com crenças espirituais/religiosas apresentam uma tendência maior à resiliência e aceitação diante de situações difíceis (Lopes Júnior et al., 2023). O sentido amparado na crença espiritual/religiosa construído diante das vivências do diagnóstico e consequências parecem ter impactos positivos, algo que está condizente com a revisão encontrada neste trabalho (Omais & Santos, 2022). 

Além do mais, é importante salientar que, dada a dificuldade de acesso a serviços de saúde mental para a população brasileira, as pessoas tendem a valer-se de recursos próprios para o enfrentamento de seus problemas emocionais (Mahmood et al., 2021). Diante de momentos importantes de fragilidade emocional, especificamente após um diagnóstico de perda auditiva, é compreensível que a prática da espiritualidade/religiosidade, com seus valores e visões de mundo, construa-se como uma fonte interna de suporte aos pacientes acometidos, considerando ainda a grande quantidade de pessoas religiosas no Brasil (Ipsos Institute, 2023). 

Também é importante destacar que não houve menção a sentidos construídos de maneira potencialmente negativa ao enfrentamento situacional (Pargament et al., 2000; Panzini & Bandeira, 2007). Nessa direção, é importante avaliar a presença de crenças que aumentam o sofrimento emocional dos pacientes para organizar intervenções que favoreçam o conforto, o processo de aceitação e de autorreflexão na tomada de decisões. Por exemplo, se o paciente acredita que o poder divino pode restabelecer sua audição completamente sem nenhum tratamento ou acompanhamento, tal crença fantasiosa em longo prazo pode favorecer o adoecimento psíquico (Yamada & Bevilacqua, 2012), bem como fragilizar o vínculo do paciente com os profissionais de saúde. Também é possível que as crenças espirituais/religiosas antes bem estabelecidas em seu sistema de valores sejam abaladas, isto é, que o paciente redimensione o poder do divino ou sinta-se abandonado por ele (Pargament et al., 2000), o que também pode potencializar modelos de enfrentamento direcionados ao adoecimento.

Vivenciando o Apoio Comunitário

A importância do suporte da comunidade religiosa diante dos momentos difíceis do diagnóstico e consequências da deficiência auditiva adquirida foi explicitada em diversas falas. Apreende-se, além da presença do apoio comunitário, a maneira como os participantes o vivenciaram diante da perda da audição e comorbidades simultâneas. 

“. . . quando tive o diagnóstico eu vivia afastada da igreja . . . tinha fé, mas não frequentava nada . . . Bastante tempo sem ficar perto de pessoas da comunidade, da igreja e tal. Acho que, talvez por isso, precisei tomar remédio para enfrentar esse problema. Agora que participo da comunidade, a gente ora uns pelos outros . . . Conversa como se fosse um atendimento psicológico. Damos testemunho de vida, de força, do que acontece em nossas vidas . . . e assim a gente se fortalece.” (P2) 

“As pessoas da minha igreja, sempre que me encontram, me falam para não perder a fé em Deus. Porque, de vez em quando, por conta de todas as dificuldades que já passei e estou passando, a gente desanima. E essa força deles ajuda bastante na recuperação, para não desanimar.” (P3)

“O maior suporte que recebi foi o carinho da comunidade . . . como tenho cada membro como um filho, todos eles têm o maior respeito e me consideram como um pai na fé. Me ligam, perguntam se estou bem ou precisando de alguma coisa. Quando percebem que estou cansado, passam em casa para saber o que está acontecendo.” (P4)

“Recebi muitas visitas de pessoas da minha igreja quando eu fiquei doente . . . foi muito gratificante. . . . Eu não ficava sozinha um dia sequer . . . Fiquei muito debilitada, então esse apoio foi essencial para mim.” (P5)

São diversos os elementos colocados pelos participantes a respeito do apoio social recebido. Destaca-se, primeiramente, um suporte verbalizado, a partir de palavras de apoio e de acolhimento, de aceitação da deficiência e suas dificuldades decorrentes, de testemunhos que possibilitam a identificação de histórias semelhantes de sofrimento e a proximidade dos fiéis, de torcida e desejo pela recuperação e pelo fortalecimento após o diagnóstico, que serviram como aspecto motivador aos olhos dos participantes. Os trechos expressam também a importância de as pessoas da mesma comunidade religiosa afirmarem a fé como potencial de recuperação diante do desânimo após diagnóstico e demais comprometimentos. Ao considerar-se o contexto social e suas relações como parte essencial na construção da subjetividade humana (Marin & Góes, 2006), tais elementos elencados possuem o potencial de desenvolver novos recursos internos, cognitivos, e incentivar comportamentos que facilitem o enfrentamento situacional. Ademais, pode-se observar diversas ações concretizadas diante das dificuldades que aparecem na convivência com o diagnóstico- visitas, abraços, ligações telefônicas, momentos de socialização, escuta acolhedora, que também são classificados como recursos utilizados para o enfrentamento dos entrevistados. Essas expressões de carinho e preocupação são observadas inclusive como semelhantes à de membros familiares. 

Também é apontado que a distância dos laços comunitários é algo ruim experienciado no momento do diagnóstico. Isto demonstra que o afastamento da comunidade, para o participante, resultou em uma falta de recursos de enfrentamento próprios, e isto o levou a necessitar de medicação psiquiátrica. Esta afirmação demonstra que a inserção do sujeito em uma comunidade solidária pode prevenir o isolamento social, já que é comum em pacientes com deficiência auditiva adquirida o comportamento de afastar-se de sua rede de apoio mais próxima, principalmente pela dificuldade de comunicação com os ouvintes (Melo & Yamada, 2022). Fica explícito que um dos aspectos principais do auxílio comunitário é a identificação e criação de laços empáticos pelas vivências em comunidade. Há apontamentos na literatura sobre a vitalidade da mediação entre o sujeito com deficiência auditiva e uma comunidade à qual ele se sinta pertencente, devido à quantidade de recursos sociais que podem estar disponíveis para vivências e construção de sua identidade (Pillay & Moonsamy, 2018). Buscar conexões profundas com outras pessoas também pode ser compreendido como um método de enfrentamento diante de situações desafiadoras (Pargament et al. 2000), o que é possível observar no relato a seguir.   

“Por essa convivência na comunidade religiosa, talvez as pessoas se tornam até mais importantes do que a própria família, porque eles estão perto. Eles estão vivendo tudo aquilo com você no dia a dia. E você se relacionando com bastante pessoas, você se identifica com determinadas pessoas que te entendem; você se apega a essas pessoas, porque a impressão é de que os membros da comunidade são parecidos psicologicamente. Então, nessas reuniões religiosas, a gente se identifica umas com as outras.” (P2).

Apenas uma das participantes relatou não receber suporte da comunidade diante do diagnóstico da deficiência auditiva. Mesmo assim, ela evidencia que tal apoio é importante. Fica evidente que justifica essa falta de apoio como uma “falha”, ou seja, como algo que deveria ter sido realizado em sua visão. 

“O pessoal da igreja da minha mãe a visitou quando ela esteve doente, por causa da situação dela, que era mais grave. Mas o lugar onde eu frequentava, para falar a verdade, não tive apoio após o meu diagnóstico. Mas isso, para mim, não interferiu em nada porque as pessoas são falhas. Mas, ainda assim, acredito ser importante essa parte.” (P1)

Ainda foi exposto por um dos participantes sua percepção quanto à necessidade de continuar exercendo um papel social em sua comunidade, mesmo com as dificuldades auditivas. Tal necessidade de oferecer suporte para seus semelhantes, que também é descrita como um método de coping espiritual/religioso (Pargament et al. 2000), funcionou como motivo mobilizador ao seu comportamento de busca por aceitar sua condição e enfrentar ativamente o tratamento. 

“. . . sou líder religioso, e preciso de minha audição para ouvir as pessoas e poder atendê-las, para também servir de suporte a elas. Não posso viver isolado. Graças a Deus existe o implante coclear. Vejo como uma luz no fim do túnel, para quem já não está ouvindo mais nada. É uma esperança de voltar a ouvir de novo.” (P4).  

Não foram detectados nos depoimentos aspectos negativos na vivência em comunidade e, tampouco, elencadas situações de preconceito ou incentivadas práticas potencialmente danosas embasadas em crenças espirituais/religiosas. A relevância de avaliar tais contextos é nítida, já que os padrões religiosos impostos pela comunidade também podem ser potencialmente adoecedores, além de desfavorecer o enfrentamento situacional exitoso, como já descrito (Pargament et al., 2000; Panzini & Bandeira, 2007).

Desvela-se, portanto, que as experiências nas comunidades religiosas são componente relevante no processo do diagnóstico da perda auditiva para os participantes, que são pertencentes a elas. Observa-se nas falas que as vivências do suporte se traduzem em recursos de enfrentamento cognitivos e comportamentais facilitadores, que dão ânimo, que fortalecem os indivíduos em momentos de dificuldade, mas também que os impulsiona a agir diante da necessidade de buscar uma recuperação da saúde após o abalo emocional do diagnóstico e a continuidade da vida em comunidade. Foi verbalizada a importância deste suporte psicológico quando presente, descritos impactos de diminuição do sofrimento, aumento do conforto, de sensações e sentimentos positivos, e também da dificuldade acentuada em sua ausência, isto é, quando o suporte não estava presente ou “falhou”. 

Dificuldades Vivenciadas na Abordagem Espiritual/Religiosa

Durante as entrevistas, os participantes tiveram a oportunidade de verbalizar suas percepções referentes à abordagem da espiritualidade/religiosidade nos atendimentos realizados por profissionais de saúde. Nessa direção, foi possível apreender dificuldades na inserção da abordagem espiritual/religiosa nos atendimentos. A primeira dificuldade está relacionada à não consideração da espiritualidade/religiosidade por parte dos profissionais da saúde, o que é visto com descontentamento pelos participantes.  

. . . a gente quando vai no médico e fala, ele só dá o diagnóstico e tchau, vai embora, não comenta mais nada. A maioria das vezes ele mal fala “ó, é isso, tchau”. Nem fala mais nada. Ah não, daí não dá certo.” (P3)

Apenas um deles comenta que recebe, em outra localidade, o atendimento de um médico que aborda questões relacionadas à religiosidade, no entanto, por professar a mesma fé. 

“Tem um médico que eu me consulto, ele é cristão. E me ajuda bastante também, porque, além da medicação, ele sempre pergunta como é que eu estou. Se estou me relacionando bem com a minha família. Ele fala também que é importante a igreja, e tal” (P1).

Apreendeu-se outra dificuldade na prática da abordagem: a maneira como os participantes percebem e descrevem o enfoque espiritual/religioso. Desvelou-se que a abordagem espiritual/religiosa se limita a mediações empáticas dos profissionais ou a perguntas que realizam sobre particularidades de suas vidas. Em resumo, os participantes limitam a abordagem espiritual/religiosa ao acolhimento.  

“. . . É por isso que a maioria do povo não procura o médico, é por causa disso. Ele é curto e grosso com as informações dele sobre o paciente. Se comentasse alguma coisa além disso seria bom. Porque daí a pessoa fica mais à vontade, né?” (P3). 

“Seria importante conversar com os pacientes internados, para chegar perto e dar ouvidos, para deixar a pessoa desabafar” (P4).

“. . . tem certas palavras que levantam o astral da gente, sabe? Às vezes o fato de saber falar uma palavra, você ganha o dia” (P5).

Também foi apontada uma relação entre a abordagem pouco acolhedora e a menor adesão ao tratamento de saúde, o que mostra a influência desta prática no comportamento do paciente e em suas decisões quanto à reabilitação, fato que também é observado na literatura (Pillay & Moonsamy, 2018). Este aspecto é relevante ao considerarmos que pode impactar diretamente no modelo de enfrentamento adotado.  

Os participantes trouxeram nos depoimentos o desejo de incluir a espiritualidade/religiosidade no contexto do tratamento, como é possível observar no seguinte relato: “Eu gosto quando me perguntam sobre minhas crenças. Eu me sinto bem, principalmente nestes momentos em que a gente está mais para baixo . . .” (P5). Há a compreensão de que a abordagem pode ser uma fonte de apoio em um momento conflitante, como o diagnóstico da deficiência auditiva e as decisões que precisam ser tomadas referentes às modalidades de tratamento, corroborando a literatura (Oliveira et al., 2013). Tal fato demonstra a importância de o profissional da área da saúde reconhecer suas limitações relacionadas à temática e buscar novos conhecimentos, principalmente ao considerar o ser humano como um ser biopsicossocial e espiritual.

Contudo, as limitações observadas na visão dos participantes precisam ser exploradas. Por não entenderem a maneira como a abordagem espiritual/religiosa inserida nos atendimentos pode influenciar no tratamento, há evidência de um possível desconhecimento sobre as diversas técnicas e instrumentos possíveis de serem utilizados na área da saúde, que de fato insiram e considerem a espiritualidade/religiosidade do paciente na assistência. Nesse sentido, a literatura apresenta inúmeras possibilidades (Lucchetti et al., 2010; Contreras et al. 2023; Bezerra et al. 2022), algumas inclusive contemplam especificamente a abordagem do psicólogo (Henning-Geronasso & Moré, 2015; Vieten & Lukoff, 2022), que pode auxiliar na inserção e produção de conhecimento prático focado na abordagem da espiritualidade/religiosidade específica ao atendimento em saúde auditiva.   

Instrumentos como o utilizado na coleta de dados da presente investigação são apenas uma possibilidade de intervenção. Existem outras práticas que podem ser utilizadas no cotidiano de diversos profissionais de saúde. Inserir na rotina de atendimentos perguntas para investigar como o paciente convive com sua deficiência, qual é o seu propósito de vida e quais crenças culturais interferem em seu tratamento são maneiras abrangentes da abordagem, pois inserem também pessoas que não se consideram espiritualizadas/religiosas (Lucchetti, et al., 2010). Pode-se orientar durante a rotina ambulatorial e de internação sobre a possível existência de ambientes e eventos espirituais/religiosos dentro do hospital, bem como incentivar que o paciente adote práticas fortalecedoras que mobilizam seus recursos de enfrentamento verbalizados como eficientes, como realizar orações, meditações e reflexões que auxiliem em sua autorregulação emocional, por exemplo, ou portar objetos/amuletos/símbolos importantes que sejam cabíveis no ambiente ambulatorial/hospitalar. Também é possível incentivar a realização de contato com membros da comunidade religiosa para acolhimento e aconselhamento situacional. Ademais, é interessante investigar e, se possível e necessário, contar com a rede de apoio religiosa do paciente. Ao verificar se há uma comunidade que sirva de suporte, pode-se averiguar possíveis atitudes preconceituosas com relação à deficiência auditiva que o paciente esteja sofrendo, ou se os membros desta possuem opiniões que interfiram nas decisões referentes ao tratamento em saúde auditiva (Lucchetti et al., 2010; Contreras et al. 2023; Bezerra et al. 2022; Henning-Geronasso & Moré, 2015; Vieten & Lukoff, 2022).

Referente ao atendimento do psicólogo propriamente dito, inicialmente é necessário desvelar como o paciente vivencia os aspectos espirituais/religiosos em relação ao processo saúde-doença e, principalmente, diante do diagnóstico da perda auditiva. É importante compreender como os fundamentos dessa prática estão sendo utilizados pelo paciente, se servem como construtores de sentido à experiência do diagnóstico e se norteiam os processos decisórios quanto ao tratamento, para então investigar se a crença está favorecendo que seus recursos de enfrentamento sejam eficazes em amenizar as adversidades ou se existem dificuldades que potencializam o sofrimento. A partir disto, é possível refletir se há ou não relação entre suas queixas emocionais e seus valores espirituais/religiosos, sempre oferecendo apoio e favorecendo a ressignificação da experiência do diagnóstico e suas consequências. É relevante, ainda, favorecer o autoconhecimento do sujeito em tratamento, desenvolvendo reflexões quanto ao uso que ele realiza de seus valores e crenças em momentos de fragilidade emocional. De maneira geral, é crucial possibilitar a escuta qualificada de forma a ser capaz de apreender o que está sendo dito a partir da perspectiva do paciente, sempre levando em consideração a ética profissional e os aspectos possíveis de contratransferência, a fim de reconhecer possíveis limitações do profissional (Henning-Geronasso & Moré, 2015). De fato, Vieten e Lukoff (2022) descrevem competências espirituais/religiosas necessárias ao psicólogo em seu exercício profissional, que incluem atitudes, habilidades e conhecimentos a respeito dessa abordagem.

Portanto, os benefícios desta investigação são evidentes, pois foi possível desvelar a maneira como pacientes com perda auditiva severa/profunda significam o diagnóstico por meio da vivência dos aspectos espirituais/religiosos. Espera-se que os conhecimentos aqui estabelecidos permitam aos profissionais de saúde auditiva refletirem sobre os métodos de abordagem espiritual/religiosa na prática clínica, a partir das percepções dos pacientes. Em acréscimo, deseja-se fomentar intervenções que possam favorecer o enfrentamento situacional, com foco na abordagem espiritual/religiosa.

Conclusão

A partir das categorias delimitadas neste estudo, apreendeu-se o enfrentamento espiritual/religioso sendo utilizado em duas principais frentes: a primeira, relacionada à fé, sugere a existência de recursos intrapessoais, que favorecem a autorregulação emocional e que também auxiliam na aceitação e nos processos decisórios referentes ao diagnóstico e prognóstico da perda auditiva; a segunda diz respeito a um recurso externo, que é a comunidade religiosa, que também funciona como fonte fortalecedora em suas diversas nuances, a partir dos vínculos afetivos essenciais ao paciente após sua perda. Ainda, delimitou-se uma terceira categoria para explicitar a compreensão da abordagem espiritual/religiosa nos depoimentos, que não abrange a totalidade das técnicas e ferramentas que podem ser utilizadas para investigar, avaliar e validar os recursos de enfrentamento espiritual/religioso utilizados pelos pacientes atendidos.

Desvelou-se, então, no presente estudo, que a espiritualidade/religiosidade se traduziu em práticas, crenças, valores e suporte social, sendo utilizada por pacientes com surdez adquirida como modalidade de coping. Em consonância à literatura, os depoimentos apontaram que tais crenças e práticas ofereceram, de fato, o embasamento para a construção de sentidos diante desta vivência da perda da audição, bem como de modelos efetivos de enfrentamento diante da situação estressora apresentada e suas consequências, potencializando recursos internos que favorecem a qualidade de vida ao amenizar o sofrimento psíquico. Tais recursos, portanto, traduzem-se como extremamente importantes em tais pacientes, uma vez que o diagnóstico traz consigo o impacto da relação do sujeito com o mundo ao seu redor, evidenciando uma fragilidade emocional importante que é causada pela perda auditiva.

Considera-se relevante apresentar algumas limitações deste estudo, que inclui a impossibilidade de desvelar a vivência da espiritualidade/religiosidade de pessoas não cristãs ou mesmo daquelas que não se consideram espiritualizadas e/ou religiosas. Ressalta-se, no entanto, que a população brasileira é predominantemente cristã, ou seja, a amostra desta investigação reflete a realidade nacional. 

Em acréscimo, deve-se considerar o fato de que uma única abordagem pode ter sido insuficiente para apreender todas as nuances referentes à influência da espiritualidade/religiosidade no enfrentamento do diagnóstico da perda auditiva. Assim, são necessárias novas investigações que busquem compreender esses aspectos em diferentes momentos do tratamento, possibilitando compreender a visão do ser humano em sua integralidade, considerando-o em seus aspectos biopsicossociais e espirituais, a fim de potencializar a qualidade de vida dos pacientes que buscam os serviços de saúde auditiva.

Fica explícito, por fim, que o estudo contribui para corroborar a literatura, ao evidenciar a importância da ampliação de conhecimentos na área da espiritualidade em saúde, especificamente no ramo da saúde auditiva, para que a dimensão espiritual do paciente seja considerada no momento do diagnóstico e no tratamento, não apenas para minimizar o sofrimento e potencializar o bem-estar, mas também para garantir maior adesão à assistência em saúde. Reforça-se a relevância em construir e disseminar o conhecimento nesta área aos profissionais de saúde e, em especial, aos profissionais psicólogos, que lidam diretamente com os aspectos favoráveis e desfavoráveis relacionados ao enfrentamento situacional, para que possam inserir de maneira adequada intervenções com enfoque espiritual/religioso.

Referências

Bardin, L. (2016). Análise de conteúdo (1ª ed.). Edições 70. (Trabalho original publicado em 1977). 

Bezerra, G. A. F., Silva, J. P. X., Nóbrega, R. J. N., Siebra, I. R., Bezerra, A. de M., Brito, N.S., Machado, L. D. S., Souza, N. K. M. de, & Santana, K. F. S. (2022). Espiritualidade e religiosidade na atenção primária à saúde: Uma revisão integrativa da literatura. Revista Eletrônica Acervo Saúde, 15(5), e10080. https://doi.org/10.25248/reas.e10080.2022

Contreras, C. C. T., Escobar, L. M. V., Rodríguez, J. Y. T., & Cañon-Montañez, W. (2023). Competencia en cuidado espiritual en enfermería: Revisión integrativa de literatura. Revista Cuidarte, 14(2), 1-15. https://doi.org/10.15649/cuidarte.2635

Esporcatte, R., Avezum, Á., Jr, Moreira-Almeida, A., Pinto, I. F. M., & Moriguchi, E. H. (2020). Espiritualidade: Do conceito à anamnese espiritual e escalas para avaliação. Revista da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, 30(3), 306–314. http://dx.doi.org/10.29381/0103-8559/20203003306-14 

Foch, G. F. L., Silva, A. M. B., & Enumo, S. R. F. (2017). Coping religioso/espiritual: Uma revisão sistemática de literatura (2003–2013). Arquivos Brasileiros de Psicologia, 69(2), 53–71. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=229053873005

Henning-Geronasso, M. C., & Moré, C. L. O. O. (2015). Influência da Religiosidade/Espiritualidade no Contexto Psicoterapêutico. Psicologia: Ciência e Profissão, 35(3), 711–725. https://doi.org/10.1590/1982-3703000942014

Ipsos Institute. (2023). Global Religion 2023. Religious Beliefs Across the World. A 26-country Global Advisor survey. https://www.ipsos.com/en/two-global-religious-divides-geographic-and-generational

Lopes Júnior, W., Paiva, E. M. das C., Cardoso, A. B. dos A., Costa, I. C. P., Ferreira, E. B., Bressan, V. R., & Rezende, E. G. (2023). Religiosidade/espiritualidade entre a população brasileira diante da pandemia COVID-19 e a correlação com a qualidade de vida. Arquivos de Ciências da Saúde da UNIPAR, 27(2), 948–966. https://revistas.unipar.br/index.php/saude/article/view/9407/4586

Koenig, H. G. (2007). Religião, espiritualidade e psiquiatria: Uma nova era na atenção à saúde mental. Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo), 34, 5–7. https://doi.org/10.1590/S0101-60832007000700002

Lee, M., Lim, H., Xavier, M. S., & Lee, E.-Y. (2022). “A Divine Infection”: A systematic review on the roles of religious communities during the early stage of COVID-19. Journal of Religion and Health, 61(1), 866–919. https://link.springer.com/article/10.1007/s10943-021-01364-w

Lucchetti, G., Granero, A. L., Bassi, R. M., Latorraca, R., & Nacif, S. A. da P. (2010). Espiritualidade na prática clínica: O que o clínico deve saber. Revista da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, 8(2), 154–158. https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/lil-544002

Mahmood, Q. K., Jafree, S. R., Sohail, M. M., & Akram, M. B. (2021). A cross-sectional survey of pakistani muslims coping with health anxiety through religiosity during the COVID-19 pandemic. Journal of Religion and Health, 60(3), 1462–1474. https://link.springer.com/article/10.1007/s10943-021-01218-5

Marin, C. R., & Góes, M. C. R. de. (2006). A experiência de pessoas surdas em esferas de atividade do cotidiano. Cadernos CEDES, 26(69), 231–249. https://doi.org/10.1590/S0101-32622006000200007

Melo, L., & Yamada, M. (2022). Aconselhamento e orientação familiar. In E. Schochat, A. G. Samelli, C.M. Couto, A. R. Teixeira, A. S. Durante, & S. Zanchetta (Eds.), Tratado de Audiologia (3ª ed., pp. 586–594). Manole. 

Oliveira, G. R., Fittipaldi Neto, J., Salvi, M. C., Camargo, S. M., Evangelista, J. L., Espinha, D. C. M., & Lucchetti, G. (2013). Saúde, espiritualidade e ética: A percepção dos pacientes e a integralidade do cuidado. Revista da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, 11(2), 140–144. http://files.bvs.br/upload/S/1679-1010/2013/v11n2/a3566.pdf

Omais, S., & Santos, M. A. dos. (2022). Religiosidade/Espiritualidade: Interrelações com o bem-estar e saúde mental à luz da Psicologia Positiva. Memorandum: Memória e História em Psicologia, 39, 1–24. https://doi.org/10.35699/1676-1669.2022.37598

Panzini, R. G., & Bandeira, D. R. (2007). Coping (enfrentamento) religioso/espiritual. Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo), 34, 126–135. https://doi.org/10.1590/S0101-60832007000700016

Pargament, K. I., Koenig, H. G., & Perez, L. M. (2000). The many methods of religious coping: Development and initial validation of the RCOPE. Journal of Clinical Psychology, 56(4), 519–543. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/(SICI)1097-4679(200004)56:4%3C519::AID-JCLP6%3E3.0.CO;2-1

Pargament, K., Feuille, M., & Burdzy, D. (2011). The brief RCOPE: Current psychometric status of a short measure of religious coping. Religions, 2(1), 51–76. https://doi.org/10.3390/rel2010051

Pillay, D., & Moonsamy, S. (2018). A pilot study: Considering spirituality in an inclusive model of practice in clinical audiology. South African Journal of Communication Disorders, 65(1), a552. https://doi.org/10.4102/sajcd.v65i1.552

Saad, M., Masiero, D., & Battistella, L. R. (2001). Espiritualidade baseada em evidências. Acta Fisiátrica, 8(3), 107–112. https://www.revistas.usp.br/actafisiatrica/article/view/102355

Santos, J. C., & Carvalho-Freitas, M. N. (2019). Processos psicossociais da aquisição de uma deficiência. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, e175434. https://doi.org/10.1590/1982-3703003175434

Souza, V. R. S., Marziale, M. H. P., Silva, G. T. R., & Nascimento, P. L. (2021). Translation and validation into Brazilian Portuguese and assessment of the COREQ checklist. Acta Paulista Enfermagem, 34, eAPE02631. https://doi.org/10.37689/acta-ape/2021AO02631

Vieten, C., & Lukoff, D. (2022). Spiritual and religious competencies in psychology. American Psychologist, 77(1), 26–38.

Yamada, M. O., & Bevilacqua, M. C. (2012). Dimensão afetiva da pessoa com surdez adquirida, antes e após o implante coclear. Estudos de Psicologia (Campinas), 29(1), 63–69. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2012000100007

Recebido em: 10/05/2024

Última revisão: 12/09/2024

Aceite final: 16/09/2024

Sobre os autores:

Giovana Orru Tiengo: [Autora para contato]. Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (UNESP). Psicóloga residente no programa de Residência Multiprofissional em Saúde Auditiva do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC) da Universidade de São Paulo (USP), Bauru, SP. E-mail: giorrut21@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4677-8654

Midori Otake Yamada: Doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Distúrbios da Comunicação Humana pelo Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/USP), Bauru. Graduada em Psicologia pela Fundação Educacional de Bauru. Tutora e preceptora do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Auditiva do HRAC/USP, Bauru, na área da Psicologia. E-mail: miotake@usp.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4199-9829

Armando dos Santos Trettene: Possui Pós-doutorado pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Doutor e Mestre em Ciências pelo Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/USP). Tutor e Preceptor da Residência Multiprofissional em Saúde: Síndromes e Anomalias Relacionadas. Área da Enfermagem, no HRAC-USP. Enfermeiro da Faculdade de Medicina de Bauru (FMBRU-USP). E-mail: armandotrettene@usp.brOrcid: https://orcid.org/0000-0002-9772-857X

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v1i1.2870

Artigos