Estágio em Psicologia em um Centro de Saúde Pública de Salvador, Bahia1
Psychology Internship in a Public Health Center of Salvador, Bahia
Practicum de Psicología en un Centro de Salud de Salvador, Bahia
Monica Lima2
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Manuela Brito
Secretaria Municipal da Saúde (Salvador/BA)
Alice Firmino
Centro de Saúde São Francisco (SMS)
Resumo
Este artigo relata o estágio específico supervisionado para graduandos do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (IPS/UFBA), no Centro de Saúde São Francisco, em Salvador, Bahia. Trata-se de um estágio com carga horária de 20 horas/semanais, sendo cinco de supervisão, oferecido desde 2009. A diversidade de atividades e programas de saúde que compõem esse Estágio pode ser considerada o ponto forte na formação dos psicólogos. Lidar com as contradições e limites entre as abordagens teórico-metodológicas da psicologia e as normativas da saúde pública/coletiva é um dos desafios do Estágio. Esta experiência tem sido avaliada positivamente pelos envolvidos e tem despertado nos estudantes compromisso social e profissional com o Sistema Único de Saúde (SUS). Concluímos que experiências como esta podem superar o preconceito tecnológico e ampliar o repertório profissional dos estagiários de psicologia.
Palavras-chave: estágio supervisionado; formação em psicologia; atenção básica à saúde.
Abstract
This article describes the specific supervised internship for Institute of Psychology, Federal University of Bahia (IPS/UFBA) students at the San Francisco Health Center in the city of Salvador, Bahia. The internship has been offered since 2009, with a 20-hour per week workload, 5 of those hours supervised. The diversity of health activities and programs included in the internship can be considered the strength of the education for psychologists. One of the State’s main challenges is to deal with the contradictions and limits between the theoretic-methodological approaches of psychology and the regulatory approaches of public health. This experience has been evaluated positively by those involved and has aroused in social and professional commitment students with Unified Health System (SUS). We conclude that experiences like this can overcome the lack of technology and expand the repertoire of professional psychology students.
Keywords: supervised internship, training in psychology, basic health care
Resumen
Este artículo relata el practicum específico supervisado para graduandos de Instituto de Psicología de la Universidad Federal de Bahía (IPS/UFBA) en el Centro de Salud San Francisco, en la ciudad de Salvador, Bahia. Se trata de un practicum con una carga horaria de 20 horas semanales, siendo cinco de supervisión, ofrecida desde 2009. La diversidad de actividades y programas de salud que componen este Practicum, puede ser considerado el punto fuerte en la formación de los psicólogos. Tratar con las contradicciones y límites entre los abordajes teórico-metodológicas de la psicología y las normativas de salud pública/colectiva es uno de los principales desafíos del Practicum. La experiencia ha sido evaluada positivamente por los involucrados. Además, ha despertado en los estudiantes el compromiso social y profesional con el Sistema Único de Salud (SUS). Llegamos a la conclusión de que las experiencias de este tipo pueden superar el preconcepto tecnológico y ampliar el repertorio profesional de los becarios de psicología.
Palabras clave: practicum supervisado, formación en psicología, atención básica a la salud
Introdução
O principal inspirador e fundamentação teórico-metodológica para a implantação do Estágio Específico Supervisionado em Psicologia na Atenção Básica à Saúde, aqui relatado, decorre de discussões realizadas entre 2000 e 2005, durante o doutoramento de uma das autoras (Lima, 2005; Lima & Nunes, 2006). Neste estudo, considerando os significados das atuações psicológicas construídas pelas psicólogas na rede pública de saúde de Salvador, identificamos os desafios e perspectivas para a adequação dos fazeres psicológicos à atenção básica à saúde. No momento da pesquisa, propusemos a atuação psicológica coletiva (APC), como “o processo contextual de identificação de demandas, de planejamento e de execução de necessidades de atendimento psicológico socioeconômica e culturalmente orientado” (Lima & Nunes, 2006, p. 434). No desenvolvimento do estágio relatado, buscamos colocar em prática dois elementos da APC: a) a escuta psicológica cautelosa, ou seja, aposta em uma conduta profissional socioculturalmente orientada; b) reafirmação da importância da subjetividade no processo de saúde-doença-cuidado (Lima & Nunes, 2006). Nessa direção, buscamos, nos últimos quatro anos, amadurecer e operacionalizar aquilo que aprendemos, ouvindo as psicólogas que compartilharam suas experiências de formação e de trabalho, no modelo de Estágio Supervisionado de Psicologia e Atenção Básica à Saúde, iniciado em 2009.2.
Atualmente, também nos apoiamos nas contribuições da Psicologia Social da Saúde (Spink, 1992) para o desenvolvimento das atividades propostas para a formação de psicólogas. Buscando superar o preconceito tecnológico (Goldberg, 2001), entendido como uma certa maneira de se realizar práticas, que cada profissional adota, a partir de um repertório comportamental modelado por sua profissão, sem se preocupar com o sujeito que está sob os seus cuidados, muitas vezes blindado em um não tratar tudo o que se fizer fora desse repertório. Ampliar o repertório profissional das psicólogas na atenção básica à saúde foi nossa finalidade.
O Estágio relatado era oferecido pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (IPS/UFBA) em parceira com o Centro de Saúde São Francisco (CF-SF) da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Salvador, Bahia. Desde 2009, contou com o apoio do Programa de Reorientação da Formação de Profissionais de Saúde (Pró-Saúde). Este Estágio teve como objetivos proporcionar aos graduandos: 1) vivenciar a rotina de uma unidade básica de saúde; 2) identificar problemas de saúde e definir as necessidades de saúde que requeriam a contribuição do psicólogo; 3) cooperar com a organização do processo de trabalho condizente com o nível de assistência articulado à rede de saúde; 4) planejar, executar e avaliar ações em saúde individuais e grupais que atendessem à demanda espontânea e à oferta organizada; 5) integrar criticamente o trabalho do psicólogo às ações desenvolvidas pelo serviço de saúde, potencializando os programas existentes na atenção básica de saúde.
Boarini (1996) é uma das pioneiras em apostar na inclusão de disciplinas e estágios nas matrizes curriculares dos cursos de Psicologia, que assegurem a formação consistente de psicólogos na atenção básica à saúde para a consolidação do SUS. A proposta da autora, no final do século passado, atualiza-se em estudos mais recentes (Archanjo & Schraiber, 2012; Azevedo & Kind, 2013; Sousa, Oliveira, & Costa, 2015; Oliveira et al., 2017) que destacam os desafios e perspectivas desta inserção, ressaltando as possibilidades de ampliação e superação dos fazeres psicológicos tradicionais no campo da saúde pública/coletiva, sugerindo que devemos promover formação em psicologia sólida e comprometida com o SUS.
Nesta comunicação, buscamos compartilhar o modo como o estágio foi estruturado, impulsionado pela aposta de incrementar os programas existentes em um centro de saúde, incentivado pelas parcerias institucionais Universidade e SUS, rememorando as percepções das autoras sobre os encontros semanais com as estagiárias, nos momentos singulares de ensino-aprendizagem para todos os segmentos envolvidos na proposta.
Este relato está divido em duas três partes. Na primeira, descrevemos brevemente o cenário de prática-aprendizagem, a estrutura e organização do estágio. No segundo, descrevemos cada uma das atividades desenvolvidas pelas estagiárias, relacionadas com determinado Programa oferecido no CF-SF, elaborado em nível ministerial e executado, com suas particularidades, no referido Centro. Na terceira parte, apresentamos as percepções das autoras sobre o estágio, seus potenciais formativos e limites operacionais, considerando o processo contínuo de reflexão ao qual estivemos submetidas nos últimos anos. Por fim, sintetizamos nossas conclusões.
Cenário de Prática-Aprendizagem, Método e Atividades Desenvolvidas
O estágio era oferecido para os graduandos do 9º ou 10º períodos, com carga horária de 20 horas semanais, sendo cinco horas semanais de supervisão compartilhada com a preceptora e a supervisora-professora. As outras 15 horas eram utilizadas para o desenvolvimento de algumas das habilidades previstas nas Diretrizes Curriculares para a Graduação em Psicologia (CNE-2011). A supervisão era grupal e realizada no próprio Centro de Saúde. Entre 2009.2 e 2016.1, recebemos 46 estagiários do Curso de Psicologia, sendo 63% mulheres. O principal cenário de prática-aprendizagem era o CS-SF do Distrito Sanitário Centro Histórico (DSCH) de Salvador, Bahia. O CS-SF pode ser considerado misto, porque oferece serviços de atenção básica, como imunização, assistência de enfermagem, serviço social, odontologia, farmácia, psicologia e de atenção especializada em IST/Aids, consulta de ginecologia, testagem para HIV, VDRL (sífilis) e Hepatite B e C. O CS-SF desenvolvia programas específicos, tais como: controle do tabagismo, saúde e prevenção nas escolas, prevenção das IST/HIV/Aids junto a crianças, adolescentes e jovens em situação de rua e população em geral. A equipe do CS-SF era composta por uma ginecologista, técnicos de enfermagem e enfermeiras, assistentes sociais, psicóloga, farmacêutica e cirurgião dentista, além da equipe de apoio administrativo. Considerando as mudanças de membros da equipe, nesta direção, sinalizamos que tivemos também infectologistas e dermatologistas especializadas em HIV/Aids. A diversidade de atividades e programas que compuseram esse Estágio pode ser considerada o ponto forte para a formação em Psicologia. Essa diversidade foi qualificada pelo enquadre da organização do trabalho (individual, em dupla e grupal), pelos problemas de saúde que se apresentavam para as estagiárias, além de favorecer a visão da necessária articulação e dependência entre a assistência e a gestão em saúde. Como atividade individual, as estagiárias acolhiam e/ou atendiam à demanda espontânea que fluía cotidianamente no CS-SF e participavam do aconselhamento pré e pós-teste em IST/HIV-Aids e Hepatites Virais; em dupla, conduziam grupos no “Programa de Cessação do Fumo” e no “Programa Saúde e Prevenção nas Escolas”; em grupo, participavam do “Programa de Humanização” e da supervisão semanal. Além disso, participavam de reuniões técnico-administrativas, da elaboração e execução de atividades educativas em Feiras de saúde, palestras e Salas de espera com temas relacionados. De modo geral, para cada atividade elas utilizavam um dos turnos da semana. As atividades desenvolvidas serão apresentadas em momento oportuno.
Para a elaboração do presente relato, consideramos os relatórios das estagiáriosas, que eram entregues, ao final do semestre, sobre as atividades desenvolvidas, críticas e sugestões sobre a experiência. No entanto, utilizamos principalmente para as reflexões aqui destacadas as percepções construídas grupalmente ao longo desses anos. Trata-se de nossas memórias pessoais sobre o nosso fazer, discussões, propostas, ajustes, inquietações, implicadas com uma Psicologia Social comprometida com os princípios do SUS. Nesta direção, apresentamos as atividades desenvolvidas.
Acolhimento da Demanda Psicológica
O CS-SF apresentava uma procura significativa de usuários para atendimento psicológico individual. A rede de serviços de saúde em Salvador não dispunha de uma quantidade de psicólogas que desse conta da demanda da população. Desse modo, o CS-SF possibilitava um acesso mais direto, pois dispensava o encaminhamento via outro profissional. Com a abertura do estágio supervisionado, foi possível incrementar a oferta de atendimentos especializados em Psicologia, uma vez que o CS-SF só dispunha de uma psicóloga. A demanda era espontânea e diversificada – crianças, adolescentes e adultos – as mulheres predominavam na busca de atendimento para si e/ou para seus filhos. A proposta dessa atividade, e das demais relatadas a seguir, era colocar em prática a escuta psicológica socioculturalmente orientada (Lima & Nunes, 2006), com o objetivo de acolher e realizar encaminhamentos corresponsáveis para serviços especializados de saúde ou de proteção de direitos e de assistência social, o que tem gerado a necessidade de estreitar parcerias com instituições, como o Centro de Apoio Psicossocial Jardim Baiano, o Centro de Referência Loreta Valadares, o Serviço-Escola de Psicologia João Mendonça (IPS/UFBA), entre outros.
Programa de Cessação do Fumo
O Programa de Controle do Tabagismo e outros Fatores de Risco de Câncer tem como objetivo estimular comportamentos e estilos de vida saudáveis, que contribuam para a redução da incidência e mortalidade por câncer e doenças tabaco-relacionadas (Brasil, 2003b). O Programa de Cessação do Fumo é uma das vertentes do programa maior, que operacionaliza o desenvolvimento de ações educativas visando à mudança de comportamentos de usuários tabaco-dependentes. Esse Programa foi implantado no CS-SF, em 2004, contando, desde então, com procura regular de usuários de classe socioeconômica baixa e média e de escolaridade e idade variadas. Cada grupo, no referido Programa, é composto por demanda espontânea, tendo, no máximo, 15 participantes. As estagiárias têm como material teórico, para orientar as atividades, quatro cartilhas elaboradas pelo Ministério da Saúde (MS), como indicação para a execução do referido programa. O grupo era orientado pelas quatro cartilhas do Manual do Participante, que apresentava diversas informações e estratégias exitosas que ajudam a diminuir ou extinguir o comportamento de fumar, e ainda oferecia meios para a prevenção da recaída. As cartilhas eram divididas de acordo com as sessões (1, 2, 3 e 4) e abordavam os seguintes temas, respectivamente: “Entender por que se fuma e como isso afeta a saúde”, “Os primeiros dias sem fumar”, “Como vencer os obstáculos para permanecer sem fumar” e “Benefícios obtidos após parar de fumar”. Houve uma adaptação da referida proposta à realidade vivenciada no CS-SF - foram ampliadas de quatro para seis sessões semanais para cada grupo. A cartilha número três era dividida em duas sessões e o sexto encontro constituía-se em um momento de fechamento e orientações para que o usuária pudesse manter a cessação do fumo ou a redução do uso de cigarros. Todas as cartilhas buscavam acompanhar as mudanças e dificuldades enfrentadas pelos participantes do grupo ao longo do processo. Quando necessário, ao usuário era oferecida uma escuta psicológica individualizada por mais algumas sessões, sendo ele incluído no programa de acolhimento de demanda psicológica. As estudantes conduziam diretamente de um a dois grupos por semestre. Inicialmente, elas acompanhavam, como observadoras, um grupo conduzido por uma das profissionais do CS-SF, e depois ficavam diretamente responsáveis por um grupo. Concomitantemente ao momento de observação, elas estudavam as cartilhas e discutíamos na supervisão os objetivos e metodologia do referido Programa.
Programa Saúde e Prevenção nas Escolas
O programa “Saúde e Prevenção nas Escolas: atitude para curtir a vida”, implantado no CS-SF, desde 2006, conta com a colaboração das estagiárias. Esse programa tem como objetivo central a promoção da saúde sexual e da saúde reprodutiva, visando reduzir a vulnerabilidade de adolescentes e jovens às DSTs, à infecção pelo HIV, à Aids e à gravidez não planejada, por meio de ações nas escolas e nas unidades básicas de saúde (Brasil, 2005). O foco definido era IST/HIV/Aids, considerando a atuação do CS-SF como uma unidade de referência nessa temática. As estagiárias, quando inseridas neste Programa já vinham com uma capacitação prévia, haja vista que todas cursaram a disciplina Psicologia e Saúde, IPSC-35 (68 h), que tem como uma das suas atividades práticas o planejamento, execução e avaliação do Programa (Lima, Brito, & Firmino, 2011). Nesse programa as estudantes realizavam, em dupla, a Oficina Árvores dos Prazeres, em escolas públicas da rede municipal ou estadual de educação, em Salvador. Tendo como enfoque a sexualidade e IST/HIV/Aids, as oficinas eram realizadas em um único encontro de 1 hora e 30 minutos, para estudantes maiores de 14 anos, acontecendo prioritariamente, no DSCH, uma vez que o objetivo era tornar o CS-SF uma referência para os participantes (Lima et al., 2011). Esse trabalho possibilitou, ao longo dos semestres, um aumento na demanda por atendimento de adolescentes na Unidade.
Aconselhamento Pré e Pós-Testagem para a HIV/Aids e Outras DSTs
O Programa de Controle de IST/HIV/Aids era o principal serviço desenvolvido no CS-SF, que era uma referência nessa especialidade para a população de Salvador. O aconselhamento é a estratégia utilizada para atender à demanda espontânea ou de encaminhamento dos usuários que desejam ou têm a indicação de conhecer a sorologia para o HIV e outras IST. O aconselhamento pré-teste, realizado individual e coletivamente, é o momento que antecede a testagem - pode ser laboratorial (o material é enviado ao laboratório central, com apresentação de resultado em 15 a 20 dias) ou testagem rápida (com apresentação de resultado em até 30 minutos). Nessa atividade coletiva, os usuários eram orientados sobre as IST, formas de prevenção, assistência, além de tratar de assuntos relacionados aos direitos, à discriminação e aos preconceitos decorrentes das situações de infecção e vulnerabilidade. O aconselhamento pós-teste é o momento em que o usuário recebe o resultado do seu exame. Ambos os aconselhamentos - pré-teste e pós-teste - eram organizados para dar conta das dimensões educativa, emocional e de avaliação de riscos que envolvem as situações de vulnerabilidade de todas as pessoas sexualmente ativas ou que tiverem contato com sangue e secreções. São atividades realizadas sempre por profissionais de nível superior, sendo que o aconselhamento pós-teste (momento de entrega dos resultados) só pode ser realizado de forma individual. As estagiárias participavam de todos os momentos do aconselhamento - inicialmente como observadoras e, depois, conduzindo diretamente as atividades propostas. Para as estagiárias, esta atividade possibilita conhecer a inserção do aconselhamento e do diagnóstico do HIV, na rotina na atenção básica à saúde. Situação que implica a reorganização do processo de trabalho da equipe e do serviço como um todo; atenção ao tempo de atendimento, reformulações de fluxo da demanda, funções e oferta de atividades no serviço; entendimento de que estimular mudanças de valores e práticas exige uma preparação da equipe/serviço para acolher os processos subjetivos dos usuários; compreensão de que, para executar essa atividade, é preciso conhecer as principais vulnerabilidades para a infecção do HIV, as necessidades particulares dos usuários, suas características e estilo de vida e desenvolver uma abordagem sobre os riscos, respeitando as suas especificidades (Brasil, 2003a) e os processos subjetivos singulares.
Programa de Humanização
O Programa de Controle de IST/HIV/Aids era o principal serviço desenvolvido no CS-SF, que era uma referência nessa especialidade para a população de Salvador. O aconselhamento é a estratégia utilizada para atender à demanda espontânea ou de encaminhamento dos usuários que desejam ou têm a indicação de conhecer a sorologia para o HIV e outras IST. O aconselhamento pré-teste, realizado individual e coletivamente, é o momento que antecede a testagem - pode ser laboratorial (o material é enviado ao laboratório central, com apresentação de resultado em 15 a 20 dias) ou testagem rápida (com apresentação de resultado em até 30 minutos). Nessa atividade coletiva, os usuários eram orientados sobre as IST, formas de prevenção, assistência, além de tratar de assuntos relacionados aos direitos, à discriminação e aos preconceitos decorrentes das situações de infecção e vulnerabilidade. O aconselhamento pós-teste é o momento em que o usuário recebe o resultado do seu exame. Ambos os aconselhamentos - pré-teste e pós-teste - eram organizados para dar conta das dimensões educativa, emocional e de avaliação de riscos que envolvem as situações de vulnerabilidade de todas as pessoas sexualmente ativas ou que tiverem contato com sangue e secreções. São atividades realizadas sempre por profissionais de nível superior, sendo que o aconselhamento pós-teste (momento de entrega dos resultados) só pode ser realizado de forma individual. As estagiárias participavam de todos os momentos do aconselhamento - inicialmente como observadoras e, depois, conduzindo diretamente as atividades propostas. Para as estagiárias, esta atividade possibilita conhecer a inserção do aconselhamento e do diagnóstico do HIV, na rotina na atenção básica à saúde. Situação que implica a reorganização do processo de trabalho da equipe e do serviço como um todo; atenção ao tempo de atendimento, reformulações de fluxo da demanda, funções e oferta de atividades no serviço; entendimento de que estimular mudanças de valores e práticas exige uma preparação da equipe/serviço para acolher os processos subjetivos dos usuários; compreensão de que, para executar essa atividade, é preciso conhecer as principais vulnerabilidades para a infecção do HIV, as necessidades particulares dos usuários, suas características e estilo de vida e desenvolver uma abordagem sobre os riscos, respeitando as suas especificidades (Brasil, 2003a) e os processos subjetivos singulares.
Reuniões Técnico-Administrativas, Feiras e Palestras
A estagiária participava de reuniões técnico-administrativas no CS-SF (realizadas quinzenalmente) e, às vezes, tinha a oportunidade de ir a algumas reuniões no nível distrital (mensal). No CS-SF, a estagiária, nesses momentos, podia compartilhar das questões gerenciais, acordos entre as profissionais de diferentes categorias, o que fazia com que conhecesse um pouco sobre a gestão da saúde. Nesses espaços, também era possível acompanhar o planejamento de ações de prevenção de promoção extramuros (feiras e palestras), com as demandas do nível distrital e da comunidade para o CS-SF. As atividades do CTH eram também discutidas e apreciadas nas reuniões técnico-administrativas por todos os profissionais do CS-SF.
Percepções e Desafios do Estágio
A percepção geral das estagiárias, da supervisora, da preceptora e da gestora sobre Estágio relatado pode ser considerada extremamente positiva. Ao longo desses anos, os profissionais do CS-SF foram incorporando a presença das estagiárias de psicologia como salutar para a própria Unidade. Do ponto de vista da gestão, o estágio potencializou as ações desenvolvidas pelo setor de Psicologia, triplicando a capacidade de acolhimento da demanda psicológica espontânea, ampliando o número de grupos de controle do tabagismo realizados, dinamizando processo de humanização na Unidade, reativando o trabalho de sala de espera, agilizando os aconselhamentos pré-teste em HIV-Aids, particularmente, os individuais.
Entre as reflexões advindas das atividades desenvolvidas pelas estagiárias, chamou a atenção alguns aspectos que valem a pena serem destacados. Algumas das estagiárias inicialmente estranham a possibilidade de atenderem individualmente os usuários que buscavam tratamento psicológico, por estarem na atenção básica. Este era um ponto de partida do estágio - refletir sobre o que era ou não adequado em cada nível de assistência à saúde, discutir as exigências emergentes para a atuação de psicólogas no SUS e as habilidades que devem ser desenvolvidas por esta categoria profissional.
Por sua vez, participar dos aconselhamentos coletivos e individuais e do acolhimento de usuários que buscam o CS-SF para a dispensação de preservativos, somado ao acolhimento da demanda psicológica espontânea, possibilitou-nos a valorização da atuação psicológica fora do modelo clássico da psicoterapia. Nesse sentido, diferenciá-las (psicoterapia e aconselhamento) em concepção e objetivos (Scorsolini-Comin, 2014), ao tempo que nos permite estimar as intervenções psicológicas pontuais e a importância de encaminhamentos corresponsáveis. Por outro lado, todas as estagiárias mostraram-se entusiasmadas com a possibilidade de conduzirem um grupo concreto, no caso, do Programa de Controle do Tabagismo, que não era um grupo psicoterapêutico clássico. Entusiasmo que não pode ser creditado apenas ao fato de que era a primeira vez que eles tinham a oportunidade de trabalhar na condução grupal. É marcante como habilidade para o trabalho em grupo é considerada importante para a organização do trabalho das psicólogas na saúde pública/coletiva, necessitando de aperfeiçoamento para o melhor aproveitamento dessa tecnologia de cuidado (Lima, 2005; Rasera & Rocha, 2010). Nessa mesma direção, acompanhar o GTH da Unidade, buscando a articulação com o GTH distrital, tendo, em alguns casos, a oportunidade de participar de reuniões nessa instância gestora, evidenciou-se como um diferencial à formação, na medida em que autorizou a compreensão da interface entre a assistência e a gestão na saúde.
Um dos desafios que merece destaque foi a compreensão da dimensão teórico-metodológica que permeia o Estágio e as indicações dos Manuais que definem os Programas. A operacionalização pelas estagiárias de diferentes Programas de Saúde, que se fundamentam em perspectivas diferentes da psicologia, possibilitou a reflexão sobre como podemos lidar com esta realidade em contextos concretos de trabalho. Nos manuais, o Programa de Cessação de Fumo é orientado pela abordagem cognitivo-comportamental, o Programa de Aconselhamento em IST HIV-Aids na vertente da Psicologia centrada no cliente. Este foi outro ponto muito debatido no momento da supervisão, com o objetivo de esclarecer o que é protocolar (apresentado nos manuais oficiais) e o que é a ética cotidiana de trabalho de cada profissional e/ou da equipe multiprofissional, que deve prezar por uma atuação consistente, que não desconsidere a reflexão sobre o contraditório, os limites e as potencialidades de não se esquivar do desafio posto pela confrontação entre paradigmas diferentes e, por vezes, inconciliáveis. Para fortalecer ainda mais este aspecto, é necessário ressaltar que, de modo geral, as estagiárias chegavam com apropriação teórica diversa – Psicanálise, Comportamentalismo Radical, Cognitivismo, Cognitivo-comportamental, Gestalterapia, Psicologia Social. Entre elas também havia aquelas que não tinham definido uma vertente psicológica teórica específica e tiveram a oportunidade de refletirem sobre este aspecto em situação concreta. Para tornar ainda mais complexa a situação, há o fato de preceptora e supervisora orientarem-se pela psicologia social na interface com a saúde, e não por uma abordagem psicológica de tradição estritamente clínica. Apoiamo-nos na noção de que “o que conta não é a experiência em si, mas o significado – sentido pessoal – que ela tem para o indivíduo” (Spink, 1992, p. 133). Nessa perspectiva, no acolhimento e na escuta psicológica, buscamos desenvolver a sua capacidade de proporcionar aos usuários o confronto entre o significado (social) da experiência e o sentido (pessoal) que lhe é dado por cada um (Spink, 1992). Neste particular, não tínhamos como objetivo que todos as estagiárias fizessem adesão à perspectiva da psicologia social em detrimento das suas escolhas pessoais de vertentes teóricas psicológicas. Nem os impedimos de se aproximar da atenção básica à saúde, por não serem exclusivamente afeitos à vertente teórica das supervisoras. Nunca utilizamos, como critério de seleção de estagiárias, a vertente teórica - elas eram recebidas como protagonistas e não como coadjuvantes do processo de ensino-aprendizagem.
A definição de uma vertente teórica da Psicologia para um determinado Programa, por exemplo, é arbitrária e depende da equipe que participou da sua elaboração, no nível ministerial, e obviamente do potencial de produção acadêmica vinculada àquela vertente teórica sobre o tema de que trata o Programa. Esta é a realidade dos Serviços de Saúde. Scarcelli e Junqueira (2011, p. 351), em relação aos projetos e políticas públicas, ressaltam que a inexistência de reflexão sobre a validade, sobre o alcance e seus efeitos, sobre os interesses envolvidos na construção de tais projetos e políticas públicas, pode conduzir ao desenvolvimento de práticas burocráticas e produção de conhecimento estéril. Acreditamos que essa advertência deve estar presente em qualquer processo avaliativo de formação em psicologia para a saúde pública/coletiva. Lidar com as contradições e limites entre as abordagens teórico-metodológicas da psicologia e as normativas da saúde pública/coletiva, entendemos como um ponto fundamental do Estágio. Buscamos estar com a atenção redobrada no Estágio para desenvolver como as estagiárias a capacidade de crítica construtiva sobre os Programas de Saúde implantados, no que concerne à sua concepção e operacionalização. A participação das estagiárias em um Programa de Cessação do Fumo, por exemplo, nos convidou a enfrentar a discussão sobre os limites e as potencialidades da orientação fundamentada na “cessação e abstinência”, preconizadas pelo Programa, em relação às contribuições advindas da abordagem de redução de danos (RD) (Santos; Soares, & Campos, 2010). A inclusão do raciocínio da RD foi possível no Estágio, pois havia familiaridade da equipe de saúde da Unidade com esta estratégia na abordagem em IST-HIV-Aids e com a recepção e acolhimento de usuários de substâncias psicoativas.
Considerações Finais
A imersão das estagiárias no cotidiano da Unidade, a diversidade de atividades desenvolvidas, possibilitando o aprimoramento de um conjunto de habilidades para a atuação em saúde pública/coletiva e a supervisão compartilhada foram as principais características do Estágio. O impulso para a implantação do Estágio decorreu da já exitosa parceria CS-SF e o IPS/UFBA, desde 2007. Destacaram-se alguns fatores positivos que também favorecem essa parceria: 1) a gestão participativa e a sensibilidade da gestão e dos profissionais da Unidade para a importância da formação em serviço para o SUS; 2) compromisso da preceptora com a formação dos futuros profissionais da sua categoria para a consolidação do SUS; 3) desenvolvimento exitoso, desde 2007, de atividades práticas para os estudantes do 6º semestre do Curso de Psicologia em escolas públicas, potencializando as ações do CS-SF no Programa Saúde e Prevenção nas Escolas, articulado ao DSCH; 4) disponibilidade das estagiárias em participar de ações educativas, que ampliam o enquadre clássico da psicologia; 5) a adesão do IPS/UFBA ao Pró-Saúde, em 2009; 6) mais recentemente, em 2012, a adesão ao Programa de Educação pelo Trabalho (PET-Saúde) na Unidade, favoreceu a consolidação do Estágio e a parceria com os demais profissionais; 7) aceitação dos participantes para a vivência multidisciplinar, que organizava as atividades desenvolvidas no CS-SF, uma vez que as estagiárias de psicologia também interagiam com profissionais de outras áreas no desenvolvimento de algumas atividades
Concluímos que este Estágio foi uma estratégia eficiente para aproximar e consolidar a participação de psicólogas no SUS. Não oferecemos uma formação protegida para as futuras psicólogas, mas uma formação crítica acompanhada. Participação em atividades diversas que aprimorasse a escuta cautelosa em detrimento da escuta asséptica (Lima & Nunes, 2006). O convite era para que as estudantes utilizassem tudo o que aprenderam ao longo de quatro anos em um contexto concreto de trabalho, lidando com as mazelas da saúde pública/coletiva e o sofrimento da população - não para aceitarem, antes para criarem alternativas de superação (Lima, 2005), centrando-se no cuidado respeitoso daqueles que buscam e precisam do SUS. Para tanto, foi preciso vencer o preconceito tecnológico (Goldberg, 2001), ampliando o repertório profissional da Psicologia. Esta tem sido a nossa aposta.
Referências
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Recebido: 22/04/2015
Última revisão: 19/10/2017
Aceite final: 09/11/2017
Sobre as autoras:
Monica Lima: Psicóloga. Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós Doutora em Psicologia Social pela Universidad Autònoma de Barcelona (UAB). Professora do Instituto de Psicologia/UFBA. Bolsista CAPES Pós-Doutorado (BEX 2465/14-0). E-mail: molije@hotmail.com
Manuela Brito: Psicóloga. Doutoranda em Psicologia pela UFBA. Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador, Bahia. E-mail: manuelabrito8@hotmail.com
Alice Firmino: Assistente Social. Mestre em Saúde Coletiva. Assistente Social da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador, Bahia. E-mail: alicefirmino@hotmail.com
DOI: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v10i2.383