Avaliação da personalidade e do autoconceito em crianças
com obesidade
Assessment of personality and self-concept in children with obesity
Evaluación de la personalidad y del autoconcepto en niños con obesidad
Franciane Priscila Rosa Braz
Universidade Guarulhos
Paulo Francisco de Castro1
Universidade Guarulhos e Universidade de Taubaté
Resumo
O presente artigo descreve características de personalidade e autoconceito em crianças com obesidade. A obesidade pode ser considerada um problema de saúde pública, e as crianças têm desenvolvido quadros de obesidade precocemente. Participaram do estudo 25 crianças, com idade entre 8 e 10 anos e diagnóstico de obesidade, submetidas à Escala de Traços de Personalidade para Crianças (ETPC) e à Escala de autoconceito infanto-juvenil (EAC-IJ). Os dados mais incidentes revelaram: quanto à personalidade – resultados rebaixados em psicoticismo, valores elevados em extroversão, sociabilidade e neuroticismo; para autoconceito – prejuízo no autoconceito escolar, pessoal e familiar. Não foram observadas diferenças significativas em relação à idade; em relação ao sexo, observou-se maior incidência de neuroticismo nas meninas; por fim, não foram observadas correlações significativas entre os testes, indicando que não existe relação entre personalidade e autoconceito na amostra investigada. Estudos mais amplos são necessários para possíveis generalizações.
Palavras-chave: Avaliação psicológica; Obesidade infantil; Personalidade; Autoconceito.
Abstract
This article describes personality traits and self-concept in children with obesity. Obesity can be considered a public health problem, and the children have developed obesity frames early. The survey included 25 children, aged 8 and 10 years old and diagnosis of obesity, submitted to Children’s Personality Traits Scale (CPTS) and children’s self-concept Scale (CSCS). The more incident data revealed: the personality – results in lowered psychoticism, high values in extroversion, neuroticism and sociability; to self – injury in the school self-concept, personal and family. No significant differences were observed in relation to age; in relation to sex, there was a higher incidence of neuroticism in girls; Finally, significant correlations between tests were not observed, indicating that there is no relationship between personality and self-concept in the sample investigated. Further studies are needed to possible generalizations.
Key-words: Psychological assessment; Childhood obesity; Personality; Self-Concept.
Resumen
Este artículo describe características de personalidad y autoconcepto en niños con obesidad. La obesidad puede ser considerada un problema de salud pública y los niños la tienen desarrollado precozmente. Participaron del estudio 25 niños, con edades entre 8 y 10 años y diagnóstico de obesidad, sometidas a la Escala de Traços de Personalidade para Crianças (ETPC) [Escala de Rasgos de Personalidad para Niños] y la Escala de autoconceito infanto-juvenil (EAC-IJ) [Escala de autoconcepto infanto-juvenil]. Los datos más incidentes revelaron: en cuanto a la personalidad – resultados rebajados en psicoticismo, valores elevados en extroversión, sociabilidad y neuroticismo; para autoconcepto – perjuicio en el autoconcepto escolar, personal y familiar. No fueron observadas diferencias significativas en relación a la edad; en relación al sexo, se observó mayor incidencia del neuroticismo en las niñas; por fin, no se observaron correlaciones significativas entre los test, indicando que no existe relación entre personalidad y autoconcepto en la muestra investigada. Estudios más amplios son necesarios para posibles generalizaciones.Palabras clave: Evaluación psicológica; Obesidad infantil; Personalidad; Autoconcepto.
Introdução
Existem, em todo o mundo, mais de um bilhão de adultos com sobrepeso, sendo que pelo menos 300 milhões indicam quadros de obesidade, agrava-se a isso a diversidade de problemas de saúde causados pelo referido quadro. Algumas projeções dos dados sugerem que, até o ano de 2025, os níveis de obesidade podem chegar a mais de 20% da população brasileira. Nos países em desenvolvimento, um paradoxo nutricional está surgindo – existe na mesma família pessoas com peso acima e abaixo do ideal e no Brasil, estima-se que 8% dos domicílios sofrem com esse fenômeno (Blumberg, 2006).
No que se refere à obesidade infantil, a partir da década de 1980, observou-se, cada vez mais, demanda para tratamento pediátrico para obesidade, podendo ser considerada como um quadro epidêmico. Esse aumento crescente é um norteador para pesquisadores e clínicos no sentido de atentar, cada vez mais, aos fatores múltiplos da etiologia da obesidade infantil e a necessidade de ações efetivas em saúde no contexto interdisciplinar para o cuidado dessas crianças (Radominski, 2011).
Quando se considera o contexto brasileiro, a obesidade infantil configura-se como um dos eixos centrais da atenção em saúde pública. Levantamentos indicam que a incidência de sobrepeso ou obesidade pode chegar a 5% da população até 14 anos, principalmente no sexo feminino e em localidades de maior concentração de renda. Outro fator importante é que a obesidade usualmente se associa a outros quadros clínicos como hipertensão e diabetes, além de poder ocasionar prejuízos em vários aspectos psicológicos, como autoestima, relacionamento social, produção escolar entre outros (Lacerda & Alvarez, 2006; Miyake, 2008). A prevenção desde as etapas iniciais do desenvolvimento e o diagnóstico precoce podem ser efetivos para a qualidade de vida das crianças e também para o sucesso do tratamento, se necessário (Spada, 2007a, 2007b).
Quando se reflete acerca da obesidade, impossível desconsiderar os componentes de alimentação e nutricionais que cada vez mais tem ocupado espaço de discussão e reflexão dos profissionais de saúde. Além da ação evidente do nutricionista, destaca-se aqui o papel do psicólogo no estudo das questões nutricionais, obviamente com o foco de suas representações simbólicas, compensatórias e representacionais daquilo que o alimento, em determinados casos, substitui como componente emocional. Entende-se que a alimentação está diretamente associada a um grande conjunto de processos psíquicos que podem estar relacionados a elementos de personalidade (saudáveis ou comprometidos) e relacionais (produtivos ou patológicos), criando-se uma imensidão de possibilidades de interpretação psicológica da alimentação para cada criança (Kahtalian, 2010; Loreto, 2004; Spada, 2005, 2007a, 2007b).
A reunião de diversas saberes (Psicologia, Medicina, Nutrição, entre outras áreas da saúde) no atendimento multiprofissional e interdisciplinar, tem por objetivo não somente uma ação cognitiva, mas também emocional. Sempre que possível, deve-se fazer uma aproximação dos processos somáticos e dos processos emocionais. A missão desses profissionais deve ser a de facilitar a expressão dos sentimentos e questionamentos, indicar sempre que possível as origens dos sentimentos expressos, estimular a reflexão sobre diversas experiências e proporcionar novos níveis de integração da personalidade (Campos, 2006).
Objetivo
Descrever as características de personalidade e de autoconceito em um grupo de crianças com obesidade, comparando os resultados em relação à idade e ao sexo dos participantes, além de verificar a relação entre os dois construtos.
Método
A pesquisa de campo é aquela utilizada com o objetivo de obter informações e/ou conhecimentos acerca de um problema, para o qual se procura uma resposta, ou de uma hipótese, que se queira comprovar, ou ainda, descobrir novos fenômenos ou as relações entre eles. O interesse da pesquisa de campo está voltado para o estudo de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e outros campos, visando à compreensão de vários aspectos da sociedade (Lakatos & Marconi, 2010).
Participaram do presente estudo 25 crianças, com idade entre 8 e 10 anos, com diagnóstico de obesidade que se encontravam em tratamento multiprofissional para atendimento a essa patologia. Não foram consideradas outras variáveis como sexo, nível socioeconômico ou escolaridade na investigação por não estarem relacionadas ao foco do estudo, além de não serem consideradas na interpretação proposta pelos instrumentos utilizados.
Para a coleta de dados foram utilizados dois instrumentos de avaliação psicológica: Escala de Traços de Personalidade para crianças (ETPC) e Escala de autoconceito infanto-juvenil (EAC-IJ).
A ETPC é um teste psicológico, de fundamentação psicométrica e de autorrelato, que visa à investigação de características de personalidade em crianças entre cinco e dez anos de idade. Está configurada em 30 questões, cujas respostas são articuladas como escolha forçada e dicotômica ‘sim’ e ‘não’, revelando um perfil de personalidade de forma objetiva e mensurável. As respostas são agrupadas em quatro dimensões que permitem a avaliação de aspectos relacionados a extroversão, psicoticismo, neuroticismo e sociabilidade, elementos que, segundo a proposta do instrumento, compõem a personalidade das crianças (Sisto, 2004).
A EAC-IJ é um teste psicológico, também com estrutura psicométrica e de autorrelato, que se presta à investigação de elementos relacionados ao autoconceito em crianças e jovens, com idade entre 8 e 16 anos. Está organizada em um conjunto de 20 questões cujas respostas por escolha forçada centram-se em ‘sempre’, ‘às vezes’ e ‘nunca’ diante de um conjunto de atitudes relacionadas ao autoconceito. A interpretação dos resultados está combinada em quatro fatores ligados aos autoconceitos: pessoal, escolar, social e familiar (Sisto & Martinelli, 2004).
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisas da Universidade para apreciação, aprovado sob protocolo CAAE 15641913.6.0000.5506, em 10 de junho de 2013.
Inicialmente, os responsáveis e as crianças que eram atendidas em um programa de atenção à obesidade na Universidade foram contatados para convite na participação da pesquisa. Após o convite com as devidas explicações dos procedimentos que foram adotados, os responsáveis assinaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e foram agendadas sessões para aplicação individual da ETPC e da EAC-IJ nas crianças, de acordo com as especificações técnicas dos manuais dos testes (Sisto, 2004; Sisto & Martinelli, 2004).
Resultados e Discussão
Após as aplicações, os testes foram corrigidos individualmente, e seus resultados foram analisados, considerando os valores normativos que constam nos manuais, por meio de resultados percentílicos e classificação psicométrica (Sisto, 2004; Sisto & Martinelli, 2004). Após essa análise individual, os dados foram tabulados, por meio de estatística descritiva e comparação a partir das variáveis idade e sexo por meio do Teste Exato de Fisher, considerando-se nível de significância em 5% (p<0.05). Além disso, foi realizada análise para verificação da possível relação entre as variáveis que compõem os dois testes, pela mesma estratégia estatística.
Não foram observadas diferenças estatisticamente significantes quando a idade das crianças foi considerada, por esse motivo, os dados serão expressos considerando-se o grupo como um todo.
Tabela 1.
Dados da Escala de Personalidade para Crianças (ETPC)
Variável Personalidade |
Valores Rebaixados |
Valores na Média |
Valores Elevados |
|||
N |
% |
N |
% |
N |
% |
|
Psicoticismo |
24 |
96 |
1 |
4 |
0 |
0 |
Extroversão |
0 |
0 |
0 |
0 |
25 |
100 |
Sociabilidade |
2 |
8 |
10 |
40 |
13 |
52 |
Neuroticismo |
8 |
32 |
5 |
20 |
12 |
48 |
Tabela 2.
Estatística descritiva dos dados da Escala de Personalidade para Crianças (ETPC)
Dados das crianças com obesidade |
Dados Normativos |
|||||||||
Variável Personalidade |
N |
Média |
D.P. |
Valor Mínimo |
Q1 |
Mediana |
Q3 |
Valor Máximo |
Média |
D.P. |
Psicoticismo |
25 |
1,92 |
1,98 |
0 |
0 |
1 |
3 |
7 |
5,48 |
4,00 |
Extroversão |
25 |
6,80 |
0,87 |
5 |
6 |
7 |
7 |
8 |
4,76 |
3,47 |
Sociabilidade |
25 |
3,92 |
1,55 |
2 |
2 |
4 |
5 |
6 |
3,42 |
1,94 |
Neuroticismo |
25 |
3,44 |
1,33 |
1 |
2 |
4 |
4 |
6 |
3,42 |
1,94 |
A Tabela 1 apresenta os dados obtidos na avaliação da personalidade das crianças com obesidade. Os critérios de pontuação e os dados interpretativos da ETPC foram integralmente pautados nas orientações técnicas do manual do teste (Sisto, 2004). A Tabela 2 apresenta as médias obtidas no grupo de crianças que participaram do estudo, comparando-se com os dados normativos brasileiros e podem reforçar a análise de cada fator de personalidade estudado. Observou-se o seguinte:
Em relação ao item psicoticismo, a maior parte das crianças que participou do estudo (96% – N=24) indicou resultados rebaixados, revelando que estas podem apresentar preocupação e respeito com os outros, com capacidade de socialização e com sensibilidade afetiva, além disso, possuem inclinação para tarefas simples e seguras.
No que tange à extroversão, todas as crianças com obesidade analisadas demonstraram valores elevados no item, o que pode ser interpretado como indivíduos com características impulsivas, com comportamento espontâneo, abertas e com facilidade para as relações interpessoais. Com frequência, são dominantes, aventureiras, sociáveis, assertivas, vivazes, ativas e animadas, além disso, têm uma tendência a ter muitos amigos e preferem atividades grupais.
No aspecto sociabilidade, pouco mais da metade das crianças analisadas (52% – N=13) apresentou valores considerados elevados, podendo ser descritas como adequadas e ajustadas às regras sociais, com capacidade de internalização das normas vigentes e possibilidade de empregá-las em seus contatos sociais mais amplos.
Quanto ao item neuroticisimo, 12 crianças (48%), apresentaram valores elevados, podendo ser descritas como ansiosas, com maior sensibilidade para sentimentos disfóricos e vulneráveis ao sofrimento, podem apresentar comportamentos de cunho depressivo, com certo sentimento de culpa e prejuízo na autoestima.
Ao se observar os escores médios das crianças e da amostra normativa, os resultados confirmam a análise de cada fator estudado, ou seja, tem-se expressiva diminuição dos valores relacionados ao psicoticismo, elevação dos valores sobre extroversão e ligeira elevação das médias em sociabilidade e neuroticismo.
Em relação ao psicoticismo, Salim e Bicalho (2004) confirmam em seu trabalho o fato de as crianças com obesidade serem consideradas carinhosas e preocupadas com os outros. Simões e Meneses (2007) reforçam a característica de aceitação social observada no grupo de crianças com obesidade.
No aspecto extroversão, Venturini (2000) também conclui que essas crianças revelam ter amigos, e a maior parte delas preferia brincar com grupos de amigos. A maior parte delas tinha apelidos, mas poucos relacionavam esses apelidos ao fato de estarem acima do peso e, embora os apelidos pejorativos preocupassem os pais, as crianças em seus relatos não demonstravam essa preocupação, ou conseguiam lidar bem com essa situação. Salim e Bicalho (2004) confirmam esses dados a respeito dos aspectos psicológicos da obesidade infantil, indicando que mais da metade da população estudada foi considerada extrovertida.
No que tange aos aspectos da sociabilidade, Venturini (2000) apresenta uma prevalência de crianças que revelam falta de confiança na própria produtividade e um sentimento de inadequação com relação ao ambiente e no contato com o outro, diferentemente do que foi observado no presente trabalho. Dado também observado no estudo de Andrade, Moraes, e Ancona-Lopez (2014), que indicam boa capacidade de relacionamento e possibilidades pessoais para contatos.
Em relação ao aspecto do neuroticismo, Venturini (2000) também aponta que a prevalência dos índices associados ao sofrimento foi observada no grupo, indicando iniciativa e decisão por parte das crianças, porém com dificuldades de adaptação ao ambiente e grande esforço para manter o equilíbrio da personalidade. Além disso, os dados da pesquisa da referida autora sugerem ansiedade, insegurança, falta de confiança em si e hesitação diante de novas situações, assim como a insatisfação com o próprio corpo, desejo de perfeccionismo e sinais de agressividade.
Azevedo (2003) conclui que há maior incidência de indicadores emocionais no Desenho da Figura Humana de crianças com obesidade, os quais podem revelar algum tipo de dificuldade ou sofrimento psicológico, quando comparados ao das produções gráficas de crianças com peso esperado. Nesse sentido, diferentes estudos demonstram que crianças com quadros de obesidade podem apresentar variadas formas de vivência de sofrimento psicológico e certo comprometimento de ordem psíquica que levam à dificuldade na articulação de seus conteúdos pessoais (Bertoletti & Garcia-Santos, 2012; Leite, Ferrazzi, Mezadri, & Höfelmann, 2014; Gonçalves, Silva, & Antunes, 2012; Salas, Gattas, Ceballos, & Burrows, 2010; Salim & Bicalho, 2004).
Outro aspecto a ser considerado na análise do neuroticismo é o comprometimento da autoestima em crianças com obesidade. Diferentes pesquisas apontam nessa direção, em que é possível verificar menor valoração de si, prejuízo do desenvolvimento psicológico adequado, construção de uma autoimagem depreciativa e falta de organização psicológica por parte das crianças (Andrade et al., 2014; Costa, Souza, & Oliveira, 2012; Gonçalves et al., 2012; Mishima & Barbieri, 2009; Salim & Bicalho, 2004; Silveira & Abreu, 2006).
Tabela 3
Dados da Escala de Autoconceito Infanto-juvenil (EAC-IJ)
Variável Autoconceito |
Valores Rebaixados |
Valores na Média |
Valores Elevados |
|||
N |
% |
N |
% |
N |
% |
|
Escolar |
15 |
60 |
8 |
32 |
2 |
8 |
Social |
10 |
40 |
4 |
16 |
11 |
44 |
Pessoal |
14 |
56 |
3 |
12 |
8 |
32 |
Familiar |
14 |
56 |
9 |
36 |
2 |
8 |
Geral |
15 |
60 |
6 |
24 |
4 |
16 |
Tabela 4
Estatística descritiva dos dados Escala de Autoconceito Infanto-juvenil (EAC-IJ)
Dados das crianças com obesidade |
Dados Normativos |
|||||||||
Variável Autoconceito |
N |
Média |
D.P. |
Valor Mínimo |
Q1 |
Mediana |
Q3 |
Valor Máximo |
Média |
D.P. |
Escolar |
25 |
4,12 |
1,67 |
1 |
3 |
4 |
6 |
7 |
4,98 |
2,21 |
Social |
25 |
9,32 |
2,32 |
4 |
7 |
9 |
11 |
12 |
9,10 |
2,41 |
Pessoal |
25 |
4,84 |
1,68 |
2 |
4 |
4 |
6 |
8 |
5,12 |
1,96 |
Familiar |
25 |
5,28 |
1,37 |
3 |
4 |
5 |
6 |
8 |
5,79 |
1,62 |
Geral |
25 |
23,56 |
3,98 |
17 |
22 |
23 |
25 |
30 |
24,98 |
4,86 |
A Tabela 3 expõe os dados obtidos na aplicação da Escala de Autoconceito Infanto-Juvenil a qual avaliou o autoconceito das crianças com obesidade. A correção e interpretação das informações sobre o referido construto pautaram-se nas informações do manual do teste (Sisto & Martinelli, 2004). Na Tabela 4, tem-se as médias obtidas no grupo de crianças que se submeteram à presente pesquisa, comparando-se com os dados normativos brasileiros com a finalidade de se ilustrar os resultados. Tem-se o que segue:
Em relação ao autoconceito escolar, 60% das crianças (N=15) apresentaram resultados rebaixados, revelando que estas não se percebem como aptas para atividades acadêmicas, além de perceberem que suas ideias não correspondem ao que se espera no ambiente escolar, e indicam comprometimento no autoconceito quando inseridas na escola.
Quando se observam os aspectos que envolvem o autoconceito social, pode-se perceber que quase a metade das crianças analisadas (44% – N=11) apresentaram valores elevados, demonstrando que se consideram bem articuladas socialmente, têm proximidade e capacidade em manter relações sociais, com desejo de ajudar o próximo e buscam ajuda quando precisam.
No autoconceito pessoal, mais da metade (56% – N=14) das crianças estudadas indicaram valores rebaixados, revelando que se avaliam como pessoas preocupadas, com certa ansiedade e comportamento de medo.
No que tange ao autoconceito familiar, observou-se que novamente mais da metade (56% – N=14) apresentou valores rebaixados, revelando que possuem sentimentos prejudicados no que tange aos relacionamentos familiares além de certo afastamento afetivo no contexto da família.
Os quatro fatores descritos de autoconceito escolar, social, pessoal e familiar se articulam na análise do autoconceito geral, em que é possível observar valores rebaixados na maior parte das crianças participantes da pesquisa (60% – N=15), o que era de se esperar diante dos resultados parciais apresentados. Tal dado revela certo prejuízo na percepção que essas crianças possuem sobre si mesmas.
Quando se verificam os valores da média obtida pelo grupo, comparando-os aos dados normativos, tem-se dados semelhantes à análise já exposta, ou seja, diminuição geral do autoconceito nos contextos escolar, pessoal, familiar e geral. Além disso, observa-se ainda leve aumento da média no autoconceito social.
Quando se analisa o autoconceito escolar, outros estudos apontam para a dificuldade da criança com obesidade compor o grupo no ambiente da escola de forma produtiva, indicando comportamentos de afastamento pelo fato de não se identificarem com o restante dos alunos (Gonçalves et al., 2012; Silveira & Abreu, 2006); tal conduta pode gerar ações de agressão e preconceito por parte das demais crianças, fato usualmente observado no ambiente escolar pelo grupo que o compõe (Costa et al., 2012). É possível conceber as consequências que esse tipo de relacionamento pode causar no desempenho escolar das crianças com obesidade, prejudicando seu processo de aprendizagem (Andrade et al., 2014). Professores que participaram de estudos desenvolvidos por Salim e Bicalho (2004) e de Costa et al. (2012) apontam dificuldades que crianças com excesso de peso enfrentam na escola, associando essa percepção ao comportamento que elas apresentam no ambiente escolar, devido ao fato de serem alvo de atitudes preconceituosas.
Embora as crianças do presente estudo tenham indicado, em sua maioria, concepção adequada de seu autoconceito social, outros estudos apresentam dados na direção contrária. No geral, investigações revelam comportamentos de isolamento e timidez, devido à discriminação social, o que pode levar a certa conduta agressiva ou de irritação como maneira de lidar com esses contatos, podendo desencadear vivências de estresse (Andrade et al., 2014; Bertoletti & Garcia-Santos, 2012; Salim & Bicalho, 2004).
Em relação ao autoconceito pessoal, em diversos estudos pode-se observar certo prejuízo na valoração de si e na percepção que as crianças com obesidade possuem de sua própria condição. Tais aspectos podem ser observados em uma postura de descontentamento consigo mesmo e diante de sua aparência física, gerando insatisfação de sua condição geral e prejuízo na autoimagem (Gonçalves et al., 2012; Miziara & Vectore, 2014; Pinheiro & Jiménez, 2010; Venturini, 2000). Quanto às atividades físicas, indicam percepção de pouca competência em realizar brincadeiras que envolvam ações mais dinâmicas, levando-as a condutas de isolamento e sentimentos de comiseração (Simões & Meneses, 2007; Salim & Bicalho, 2004).
Quando se analisa o autoconceito familiar, é possível identificar em diferentes estudos certo comprometimento na percepção e nas relações desenvolvidas entre os membros da família da criança com obesidade sob vários aspectos. Andrade et al. (2014) entendem que a conduta superprotetora dos pais pode levar a uma condição ambivalente na relação com a criança com obesidade, pois, por um lado, dispensam extrema atenção, mas, por outro, observa-se certa discriminação por parte dos pais diante da obesidade dos filhos. Esse componente se associa com as conclusões de Mishima-Gomes, Dezan, e Barbieri (2014) e Salas et al. (2010), que assinalam que a dinâmica psíquica dos pais de crianças com obesidade pode comprometer as ações positivas da paternidade e influenciar negativamente no desenvolvimento dos filhos e, consequentemente, na relação estabelecida na família, podendo gerar ansiedade e angústia diante das relações familiares (Mishima & Barbieri, 2009).
No tocante à família e sua influência no autoconceito das crianças, há que se destacar a função materna na dinâmica estabelecida com a obesidade infantil, possivelmente pela associação entre alimentação, nutrição e maternidade. Pesquisas observam o papel da mãe no estabelecimento de vínculos afetivos que, devido a certo comprometimento de sua dinâmica afetiva, geram e são gerados pela condição de obesidade das crianças (Mishima & Barbieri, 2009; Gomes, Moraes, & Motta, 2011).
Quando a variável sexo é considerada na análise das características de personalidade e autoconceito, apenas o neuroticismo indicou diferença estatisticamente significante.
Tabela 5.
Dados comparativos do fator neuroticismo segundo sexo das crianças
Sexo |
Feminino |
Masculino |
Total |
Sig. |
||
Classificação |
N |
% |
N |
% |
||
Baixo |
2 |
12,50 |
6 |
66,67 |
8 |
p < 0,001 |
Médio |
2 |
12,50 |
3 |
33,33 |
5 |
|
Alto |
12 |
75,00 |
0 |
0,00 |
12 |
|
Total |
16 |
100 |
9 |
100 |
25 |
Conforme se observa nos dados da Tabela 5, as meninas indicam maior incidência de neuroticismo em valores altos (75% - N=12), enquanto os meninos apresentam dados baixos nesse fator (66,67% - N=6), revelando que as crianças com obesidade do sexo feminino possuem maior vulnerabilidade ao sofrimento psicológico, dificuldades afetivas e algum tipo de problema de ordem emocional.
Bertoletti e Garcia-Santos (2012) indicaram que as meninas tendem a reagir frente à obesidade de forma diferente que os meninos, sendo mais suscetíveis aos fatores decorrentes desse quadro. Isso pode ser explicado pelo fato de as meninas possuírem maior capacidade para perceber as questões ligadas à obesidade e sua relação com autoimagem, podendo levar essas crianças a mais sentimentos depressivos ou de vergonha, além da insatisfação corporal, talvez devido às exigências que o ambiente impõe para o sexo feminino no que se refere a padrões de beleza vigentes (Gonçalves et al., 2012; Miziara & Vectore, 2014; Pinheiro & Jiménez, 2010).
Por fim, foi analisada a possível relação entre as variáveis de personalidade, que compõem a ETPC e os diferentes fatores ligados à autoimagem pela EAC-IJ.
Tabela 6
Correlação entre as variáveis de personalidade e autoconceito
Pdd-Psic |
Pdd-Soc |
Pdd-Neuro |
AC-Esc |
AC-Soc |
AC-Pes |
AC-Fam |
|
Pdd-Soc |
0,080 |
||||||
Pdd-Neuro |
1,000 |
0,890 |
|||||
AC-Esc |
1,000 |
0,246 |
0,848 |
||||
AC-Soc |
0,560 |
0524 |
0,943 |
0,255 |
|||
AC-Pes |
1,000 |
0,941 |
0,173 |
0,691 |
0,046 |
||
AC-Fam |
1,000 |
0,863 |
0,138 |
0,404 |
0,078 |
0,498 |
|
AC-Ger |
1,000 |
0,431 |
1,000 |
0,353 |
<0,001 |
0,014 |
0,025 |
Legenda: Pdd-Psic – Personalidade – Psicoticismo
Pdd-Soc – Personalidade – Sociabilidade
Pdd-Neuro – Personalidade – Neuroticismo
AC-Esc – Autoconceito Escolar
AC-Soc – Autoconceito Social
AC-Pes – Autoconceito Pessoal
AC-Fam – Autoconceito Familiar
AC-Ger – Autoconceito Geral
A partir dos dados da Tabela 6, observa-se que existe relação entre as variáveis que compõem a EAC-IJ, como segue: Relação significativa entre autoconceito social e pessoal, indicando que a concepção pessoal que a criança possui de si interfere na maneira pela qual ela constrói sua percepção quando contida no grupo social. Além disso, há influência significativa dos fatores dos autoconceitos social, pessoal e familiar sobre o autoconceito geral, tal dado era esperado uma vez que estes fazem parte da composição total do índice e confirmam-lhe a validade. Não foram observadas relações significativas entre as variáveis de personalidade e autoconceito, indicando que, nesse grupo, não existe influência desses dois construtos da articulação psíquica das crianças com obesidade.
Considerações Finais
No que se refere ao estudo da personalidade, tem-se que as crianças com obesidade que participaram do estudo revelaram, em sua maioria, índices rebaixados em psicoticismo, valores elevados para sociabilidade e neuroticismo. Além disso, todas apresentaram escores elevados em extroversão.
Na análise do autoconceito, na maioria dos participantes observa-se prejuízo nos resultados associados aos autoconceitos escolar, pessoal e familiar. Entretanto tem-se constituição positiva quanto ao autoconceito social.
Não foram observadas diferenças significativas quanto à idade dos participantes e, quanto ao sexo, apenas o neuroticismo revelou diferença relevante, indicando maior índice para as meninas. Na análise das variáveis dos dois testes, não se observou correlação significativa entre os fatores de personalidade de autoconceito.
Embora os dados estatísticos não tenham revelado correlação significativa entre as variáveis dos testes, é possível, em termos qualitativos, tecer possível interferência entre alguns dados. Conjectura-se aqui a possível influência entre as características elevadas de extroversão e sociabilidade e rebaixadas de psicoticismo sobre a constituição do autoconceito social, que se encontra preservado na maior parte das crianças. Além disso, também é possível refletir sobre a associação entre os dados de neuroticismo elevado com o prejuízo no autoconceito pessoal e escolar. Os dados objetivos podem ter sofrido influência do número reduzido de participantes, interferindo nas análises estatísticas, o que impede generalizações com os dados aqui apresentados.
Pretende-se, com os dados aqui expressos, proporcionar a ampliação do conhecimento sobre as características de personalidade e de autoconceito observados em crianças com obesidade. Assim, criar subsídios para que essas informações possam ser consideradas nos atendimentos multiprofissionais e interdisciplinares a esse grupo de crianças, podendo beneficiá-las no que tange a um cuidado psicológico mais particularizado e humanizado.
Diante disso e devido à relevância do tema, faz-se necessária a ampliação dos estudos sobre personalidade e autoconceito em crianças com obesidade, com maior número de participantes, estratificação da amostra por idade e sexo para melhor compreensão desse importante aspecto de saúde e desenvolvimento infantis.
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Recebido: 26/01/2016
Última revisão: 02/05/2016
Aceite final: 06/05/2016
Sobre os autores:
Franciane Priscila Rosa Braz – Psicóloga graduada pela Universidade Guarulhos (2015), ex-bolsista iniciação científica CNPq. Psicóloga Clínica.
Paulo Francisco de Castro – Psicólogo (1989 – UnG), Mestre em Educação (1996 – Mackenzie) e Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (2008 – IP/USP). Professor Adjunto da do Curso de Psicologia da Universidade Guarulhos e Professor Assistente Doutor do Departamento de Psicologia da Universidade de Taubaté.
E-mail: castro.pf@uol.com.br
1 Endereço de contato: Universidade Guarulhos – Clínica de Psicologia. Rua Doutor Nilo Peçanha, 47, Centro, Guarulhos, SP, CEP 07011-040. E-mail: franpri_braz@ig.com.br
* Apoio: PIBIC – CNPq/UnG
DOI: http://dx.doi.org/10.20435/2177-093X-2016-v8-n2(02)