RESENHA
Tempos difíceis: A produção de conhecimento em Psicologia e os conflitos humanos
Clarice Moukachar Batista Loureiro1
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Obra: Chapuis, E., Petard, J. P., & Plas, R. (2010). Les Psychologues et les Guerres. Genebra: L’Harmattan. 231 p.
As guerras entre seres humanos, sejam como for, mundiais ou civis, de grande ou pequeno porte, de origem cultural ou econômica, deixam em aberto um vasto campo de interrogações propício aos estudiosos das ciências humanas. A singularidade do tema não se dá apenas pelo fato de que as guerras mobilizam todas as esferas da sociedade, mas também pelo fato curioso de que tanto aquele que promove as situações de guerras quanto aquele que produz conhecimento científico para amparar ou lidar com as consequências dos conflitos, são seres humanos. Além disso, o impacto das guerras sobre o conhecimento tem sido objeto de estudo frequente da história da ciência. De fato, o patrocínio dos governos às pesquisas, a criação de novas instituições científicas e a própria organização do conhecimento foram bastante impactados pelas grandes guerras do século XX (Burke, 2012).
No entanto o conhecimento produzido pela Psicologia e tangenciado pelas situações de guerra ainda é pouco explorado. Isto é o que defende Anne Rasmussen no prefácio da obra que aqui apresentamos. Les psychologues et les guerres faz parte da coleção Histoire des Sciences Humaines, dirigida por Claude Blanckaert. Organizado por Élisabeth Chapuis, Jean-Pierre Pétard e Régine Plas, o livro reúne dez artigos construídos a partir de trabalhos apresentados por diversos autores em um colóquio internacional promovido pelo Groupe d’études pluridisciplinaire d’histoire de la psychologie (GEPHP). O livro é dividido em três partes. A primeira parte intitula-se Guerres et psychologie: constructions et reconstructions. O primeiro artigo, de autoria de Hélio Carpintero, La guerre civile espagnole et le development de la psychologie en Espagne, revela como a guerra civil retardou a institucionalização da Psicologia na Espanha mas estreitou os laços entre a Psicologia espanhola e aquela da América Latina, já que muitos cientistas espanhóis da área da Psicologia se viram impelidos a se instalarem em países da América Latina durante o conflito. La psychologie sociale pendant la seconde guerre mundial aux Etats-Unis: l’émergence des sciences de la communication, o segundo artigo dessa primeira parte, de autoria de Evangelia Kourti, aponta para um amadurecimento da Psicologia Social nos Estados Unidos ao longo da guerra, utilizando-se inclusive das novas tecnologias de comunicação. Fechando essa primeira parte encontramos o texto de Horst Gundlach, Les Psychologues allemands et la première guerre mondiale, que nos mostra, com muita propriedade, como as grandes guerras contribuíram para a profissionalização da Psicologia na Alemanha.
Inaugurando a segunda parte de trabalhos, intitulada Psychologies d’aprés-guerres: prévenir et réparer, nos deparamos com o texto da psicóloga brasileira Regina Helena de Freitas Campos, Les psychologues et le mouvement de l’éducation pour la paix à Genève (1920-1940), que traz um relato sobre a mobilização de um grupo de cientistas e educadores ligados ao Instituto Jean-Jacques Rousseau para organizar espaços de discussões sobre uma educação para a paz e os direitos das crianças ao longo da década de 1920, na Europa. O texto de Élisabeth Chapuis-Ménard, Les Psychologues de l’enfance et la genération de la guerre de 1939-1945, apresenta-nos um estudo sobre as práticas de trabalho propostas pelos psicólogos franceses para atender as demandas apresentadas pela juventude que viveu a segunda grande guerra. Explorando um viés diferenciado da sequência anterior dos textos que tomam como palco as grandes guerras, o artigo de Olivier Douville, Des Mineurs sous la guerre, aujourd’hui... L’example de situations africaines, nos traz uma reflexão sobre a produção de subjetividade nas crianças e adolescentes envolvidas nas guerras africanas nos dias de hoje.
O estudo de Stéphanie Dupouy sobre as pesquisas e o trabalho do psiquiatra francês Georges Dumas durante a primeira guerra mundial dá início a terceira e última parte do livro, Des psychologues en guerre. O texto intitulado Georges Dumas, psychiatre de guerre destaca a preocupação humanitária desse médico com seus pacientes de guerra, colocando em questão uma tradição historiográfica que postula que a Primeira Guerra Mundial funcionou como um grande laboratório para a Medicina, eximindo os psiquiatras de preceitos éticos em detrimento de um imperativo de defesa nacional. Da mesma maneira, Clara Lecadet, em seu texto Winnicott sur les ondes pendant la seconde guerre mondiale: entre douleur et politique, coloca em cheque outra tradição historiográfica que afirma que Winnicott teria produzido conhecimento científico a partir de seus pronunciamentos na rádio BBC sobre as evacuações realizadas pelo governo do Reino Unido. Ela demonstra como a complexa posição desse pediatra e psicanalista não permitiu a ele realizar qualquer tipo de instrumentalização do trabalho a partir da sua experiência, restando esta para ele apenas uma referência recorrente em suas produções posteriores. Marcel Turbiaux, em seu artigo Un psychologue au front: J.-M.Lahy, apresenta o singular percurso desse autodidata em Sociologia e Psicofisiologia que desenvolveu uma série de trabalhos experimentais sobre a Psicologia do combatente de guerra. Finalizando a terceira parte, em seu texto Les activités de Piaget durant les deux guerres mondiales, Silvia Parrat-Dayan discute as ideias e reflexões de Piaget sobre os grandes conflitos e de que maneira esses acontecimentos históricos influenciaram a construção de sua teoria.
Ao reunir textos de experientes pesquisadores da história da Psicologia provenientes de diferentes países - dentre eles a Espanha, França, Brasil, Alemanha, Grécia e Suíça, a leitura da obra nos instiga a explorar a relação entre a Psicologia e as guerras ao tornar evidente o vasto campo produzido a partir do estabelecimento dessa relação e o quanto resta a ser explorado. Por isso, além de contribuir para o trabalho historiográfico desse tema, a leitura desse livro é de grande valia para aqueles que se propõem a realizar pesquisas nessa área já que os artigos se destacam por uma clareza na definição das problemáticas trabalhadas e pelo seu rigor científico e metodológico.
A percepção, durante a leitura, da maneira como cada autor constrói seu objeto de pesquisa a partir de objetivos muito bem definidos, pode contribuir para a excelência de investigações futuras no campo. Alguns deles procuram evidenciar a maneira como os conflitos armados do século XX influenciaram no desenvolvimento e institucionalização da Psicologia como ciência ou campo profissional em determinado país, ou como influenciaram as produções teóricas de determinado autor no campo da Psicologia, seja essa influência positiva ou negativa. Outros, a partir de descrições analíticas de documentos, buscaram resgatar as próprias práticas de trabalho de psicólogos desenvolvidas durante e após as guerras que contribuem para o trabalho historiográfico e para as práticas contemporâneas. Há ainda aqueles que apresentam as experiências de grandes personalidades do século XX durante os conflitos armados que colocam em cheque tradições historiográficas, como é o caso de Georges Dumas e Winnicott.
Assim, ao mesmo tempo em que essa obra garante historicidade às relações entre a Psicologia e as guerras, a leitura do livro nos conduz à reflexão sobre as especificidades do trabalho dos psicólogos que vivenciam tempos difíceis. O conflito humano, fenômeno concebido pelos autores como antropológico, universal e atemporal, permanece acortinado aos olhos do mundo científico e coloca, também nos dias de hoje, grandes desafios e questões que demandam um olhar mais atento, sobretudo daqueles que tomam por objeto de estudo o próprio indivíduo.
Referências
Burke, P. (2012). Uma história social do conhecimento II – Da Enciclopédia à Wikipédia. Rio de Janeiro: Zahar, 414 p.
Recebido: 14/08/2016
Última revisão: 24/04/2017
Aceite final: 28/04/2017
Sobre a autora:
Clarice Moukachar Batista Loureiro: Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente é membro do Laboratório de Pesquisa e Ensino em História da Psicologia, do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. E-mail: claricelou@gmail.com
1 Endereço de contato: Rua Tavares Bastos, 378/303, Bairro Coração de Jesus. CEP: 30380-232. E-mail: claricelou@gmail.com
DOI: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v9i2.522