Clínicas de Orientação: Cuidado Infanto-Juvenil e Participação Feminina na Constituição do Campo Psi
Guidance Clinics: Child and Youth Care and Female Participation in the Constitution of the Psy Field
Clínicas de Orientación: El Cuidado de los Niños y de los Jóvenes y la Participación de las Mujeres en la Constitución del Campo Psi
Ana Maria Jacó-Vilela1
Maria Claudia Novaes Messias
Filipe Degani-Carneiro
Camilla Felix Barbosa de Oliveira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
Este trabalho tem por objetivo apresentar as Clínicas de Orientação infanto-juvenis existentes na cidade do Rio de Janeiro no período situado entre as décadas de 1940 e 1960, a saber: a) COJ/DNCr; b) COI/SNDM; c) COI/IPUB. Por meio de pesquisa documental e entrevistas, constatamos a importância das clínicas de orientação no processo de constituição da Psicologia como um campo autônomo no Brasil, a partir de sua articulação com ideais preventivistas dirigidos à infância, influenciados pelo higienismo. Por fim, destacamos o protagonismo da atuação feminina nesse período de gênese da profissão de psicólogo no Brasil.
Palavras-chave: infância, orientação psicológica, mulher, história da Psicologia
Abstract
This paper aimed to discuss the importance of the existing Child and Youth Guidance Clinics in the city of Rio de Janeiro from the 1940s to the 1960s; they were: a) COJ/DNCr; b) COI/SNDM; c) COI/IPUB. Through document analysis and interviews, we observed the importance of the Guidance Clinics in the process of establishing Psychology as an independent science field in Brazil based on their articulation with the preventive health ideals influenced by the hygienist movement. Finally, we highlight the protagonism of the female performance in this period of genesis of the profession of psychologist in Brazil.
Keywords: childhood, psychological orientation, woman, history of Psychology
Resumen
Este trabajo tiene como objetivo presentar las Clínicas de Orientación infanto-juveniles existentes en la ciudad de Rio de Janeiro, durante el período que abarca desde las décadas de 1940 a 1960, a saber: a) COJ/DNCr; b) COI/SNDM; c) COI/IPUB. Por medio de la búsqueda documental y la realización de entrevistas, constatamos la importancia de las clínicas de orientación en el proceso de constitución de la Psicología como un campo autónomo, a partir de su articulación con ideales preventivos dirigidos a la infancia, influenciados por el higienismo. Finalmente, destacamos el protagonismo de la actuación femenina en este período de génesis de la profesión del psicólogo en Brasil.
Palabras clave: infancia, orientación psicológica, mujer, historia de la Psicología
Introdução
Na virada do século XIX para o XX, mulheres e crianças se tornaram alvo privilegiado de intervenções higienistas. Se a condição do sexo feminino, inferiorizada a partir das suposições de fragilidade, irracionalidade e emotividade naturais, fora um fator limitante da posição da mulher nas esferas pública e privada, nesse período lhe foi fornecido um novo papel: educar os futuros cidadãos do Brasil moderno e civilizado que se intentava construir. A infância tornou-se, assim, a fase da vida propícia para a recepção dos cuidados preconizados pela higiene mental.
Uma importante colaboração nesse tema surgiu com a apropriação da psicanálise pela elite psiquiátrica, quase totalmente masculina, nas primeiras décadas do século XX. Como explica Russo (1998), a ênfase freudiana na experiência e na fantasia infantis foi vinculada às propostas preventivas em relação à neurose e ao desajustamento psíquico. Enfatizava-se a responsabilidade dos pais em prover uma educação adequada, não repressora e, ao mesmo tempo, que não fornecesse zelo e carinho excessivos, a fim de canalizar a sexualidade infantil para fins civilizados.
Era necessário, portanto, educar a criança. Se, no lar, essa educação deveria ser ministrada pela mãe, outras mulheres – normalmente também mães – deveriam assumir esse encargo no sistema educacional. Por outro lado, nesse período também ocorreu a emergência da psicologia científica no Brasil, enquanto campo de saber e de práticas. Uma observação pertinente é que as mulheres que se dedicavam a esse novo campo vinham atuando, em sua maioria, na educação, área que possibilitou a inserção inicial das moças das classes médias no mercado de trabalho (Messias, Jacó-Vilela, & Espírito-Santo, 2007).
O movimento dos educadores brasileiros, também da mesma época, e que se filiou fortemente à Escola Nova, demonstrou grande interesse na utilidade da Psicologia para a compreensão do aluno e aferição de suas capacidades, mediante principalmente o emprego dos testes.
Nesse sentido, o objetivo deste texto é não apenas demonstrar a forte relação entre mulher, infância e psicologia, mas principalmente apontar algumas condições que propiciaram a atuação feminina na psicologia e assim, resgatar, por meio do percurso dessas mulheres e instituições, a relevância de sua atuação nesse campo nascente, inclusive para a regulamentação da profissão e dos cursos no Brasil.
A análise dessa participação feminina, segundo a perspectiva aqui adotada, vai ao encontro do conceito de gênero e suas relações como categoria de análise. Parte-se da percepção de que este é fundamental para a compreensão de qualquer acontecimento histórico (Rohden, 2001; Gonçalves, 2006; Perrot, 2005; Scott, 1992, 1995; Rago, 1998), evidenciando o que já havia sido proposto por Scott (1995): o gênero como elemento constituinte das relações sociais, baseado nas diferenças percebidas entre os sexos que, por sua vez, constituem uma forma primordial de significar as relações de poder. Portanto inserir as mulheres na história de um determinado campo de conhecimentos e práticas pode provocar uma ressignificação daquilo que tradicionalmente é considerado relevante para a construção histórica. Nesse sentido, ressalta-se que as relações entre os gêneros não incidem apenas sobre temas evidentes, como família, relação amorosa, mas também em toda a complexidade de fenômenos sociais e históricos (Messias, 2013).
Dessa forma, entende-se que, para compreender a participação feminina em certo contexto sócio-histórico, é necessário compreender os espaços sociais disponíveis para as mulheres nesse dado contexto, assim como compreender os seus espaços de resistência, as suas práticas. Considera-se relevante, pois, uma análise que considere as questões de gênero, porém não será objetivo deste trabalho o aprofundamento dessa temática e, sim, a questão da participação feminina no campo de construção e autonomização da psicologia no Brasil. Para isto, destacam-se, neste texto, as chamadas “Clínicas de Orientação”, fundadas no Brasil desde o início da década de 1940, inspiradas em serviços congêneres da Inglaterra (Tavistock Clinic, de Londres) e dos Estados Unidos (Institute for Juvenile Research, de Chicago), que utilizavam o modelo de “child guidance” (Abrão, 2001). Tais clínicas eram voltadas à investigação, ao cuidado e ao atendimento de crianças e adolescentes, bem como de suas famílias, visando a seu melhor ajustamento ao meio social. Embasavam-se, pois, nos princípios da higiene mental infantil. Seu modelo apresentava um caráter preventivo, a partir de uma concepção (influenciada pela leitura da época do pensamento freudiano) de que a doença mental é quase sempre resultado de um longo processo, com origem na infância.
Nessas clínicas de orientação, foram iniciadas as primeiras experiências em atendimento psicoterápico infanto-juvenil do Brasil – até então, as crianças e jovens recebiam somente atendimento psiquiátrico, avaliadas sob o signo da “anormalidade” (Lobo, 2000). No período situado entre as décadas de 1940 e 1960 (quando ocorreu a regulamentação legal da profissão de psicólogo no Brasil), houve no Rio de Janeiro três dessas clínicas. Este texto apresenta, a seguir, cada uma delas, quais sejam: a) Clínica de Orientação Juvenil/ COJ; b) Clínica de Orientação Infantil/ COI-DINSAM; c) Clínica de Orientação Infantil/ COI-IPUB, ressaltando a participação feminina nessas diferentes clínicas.
A presente pesquisa é um estudo historiográfico da Psicologia, que se baseia em uma perspectiva construcionista da história das ciências (Rosa, Huertas, & Trejo, 1996). Como recursos metodológicos, foram empregados pesquisa documental e entrevistas. Os documentos consultados foram publicações e relatórios do COJ, da COI-DINSAM e da COI-IPUB, os quais foram obtidos em revistas de psicologia do período estudado (notadamente, os Arquivos Brasileiros de Psicotécnica) e visita a arquivos das instituições, localizados respectivamente no Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ, na Colônia Juliano Moreira e no IPUB/UFRJ. Por sua vez, as entrevistas foram realizadas com psicólogas e psicanalistas que atuaram nas referidas instituições.
O Centro de Orientação Juvenil (COJ)
Este Centro, como outros órgãos de âmbito federal ou de iniciativa experimental, foi criado pelo Ministério da Educação e Saúde (MES) por meio da Portaria 80, de 09/12/1946, sendo considerado o principal órgão da Seção de Orientação Social da Divisão de Proteção Social do Departamento Nacional da Criança (DNCr). Este último coordenava todas as atividades de proteção à maternidade, infância e adolescência, nos níveis federal, estadual e municipal. Quando, em 1953, ocorreu a divisão do MES, com a criação das pastas de Saúde e de Educação e Cultura, o DNCr bem como o COJ ficaram vinculados ao Ministério da Saúde.
A criação2 do DNCr em 1940 se inseriu em um contexto de preocupação do governo estadonovista com a educação e assistência à criança e juventude como forma de “cuidar” do futuro da nação. As preocupações com o bem-estar orgânico e psíquico da criança e com seu crescimento saudável, embrionárias desde o início do século XX, mas de forma intermitente e aos cuidados de particulares – como o atesta o trabalho de Moncorvo Filho3 (Silva Junior & Garcia, 2010) – tornaram-se objeto de políticas do Estado, durante a Era Vargas. Estas visavam sobretudo à família e à escola, dada a compreensão da influência que tais instituições sociais exerciam no desenvolvimento intelectual e moral dessa criança.
No momento em que a direção do DNCr assumiu a necessidade de que as atividades de orientação médica e pedagógica na área da maternidade e infância fossem complementadas por outras, de natureza psicológica, criou-se o COJ em 1946. Para seu planejamento, foram convidados dois personagens de renome na história da Psicologia do Brasil: Helena Antipoff e Emilio Mira y López.
A psicóloga russa Helena Antipoff (1892-1974) já era um nome de grande relevo no Brasil desde o início dos anos de 1930. Fora aluna de Édouard Claparède e atuou no Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra. Antipoff veio para o Brasil em 1929, a convite do governo mineiro para trabalhar na Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte, experiência pioneira no campo da Psicologia da Educação no país. Seu trabalho foi todo dedicado à criança, principalmente à criança excepcional – desde a criação do próprio conceito até o desenvolvimento de testes para detectar a excepcionalidade e de técnicas para lidar com ela, culminando com sua grande criação, a Fazenda do Rosário, em Ibirité, MG, espaço rural, com múltiplas atividades, em que, contrariando o modelo de sua época, a criança excepcional não se encontrava isolada das “normais”. Para a assistência à excepcionalidade, criou também a Sociedade Pestalozzi (Campos, 2002). Antipoff veio para o Rio de Janeiro em 1944, atuando no Ministério da Educação e Saúde, tendo sido designada como primeira diretora do COJ, posto que ocupou até 1949, quando retornou a Minas Gerais.
Emílio Mira y López (1896-1964), por sua vez, foi um psiquiatra espanhol que teve renome internacional na área de psicotécnica nos anos de 1920-1930. Chefiou o Serviço Psiquiátrico do Exército Republicano durante a Guerra Civil espanhola (1936-1939) (Jacó-Vilela & Rodrigues, 2014). Exilado após a tomada do poder pelo General Franco, percorreu diversos países e, em 1945, veio para o Brasil a convite de várias instituições governamentais e empresariais (DASP e SENAI, por exemplo) para ministrar cursos e conferências sobre psicotécnica e psicologia aplicada ao trabalho. Ainda em 1945, o DNCr também o convidou – por sugestão de Helena Antipoff - para uma série de conferências sobre seleção e orientação profissional e para demonstração do seu teste Psicodiagnóstico Miocinético, o famoso PMK (Jacó-Vilela & Rodrigues, 2014). As conferências ministradas a convite do DNCr estreitaram mais uma vez as relações e foram ponto de partida para essa colaboração no COJ. Em que exatamente consistiu a sua contribuição não está claro, porém a vinculação de seu nome a uma instituição de grande relevância para a psicologia clínica no Brasil é mais um exemplo do peso de Mira y López em nossa história.
O COJ foi a primeira clínica pública federal voltada ao atendimento psicológico de jovens de toda a América Latina, funcionando como uma clínica de orientação. A demanda de atendimentos era fundamentalmente de jovens com desajustes de comportamento, problemas emocionais, familiares, sociais, desempenho escolar ruim. Os atendimentos, inicialmente, estavam restritos a adolescentes da faixa etária dos 12 aos 18 anos. Porém, em torno de 1953, oficialmente ampliou essa faixa para casos de crianças menores de 12 anos (o que na verdade, já era feito antes, em alguns casos específicos), com o argumento de que, em um serviço preventivo, “quanto mais cedo puder se iniciar a recuperação, melhores serão os resultados” (Brasil, 1956, p. 8).
Na clínica de orientação, a assistência à criança ou ao adolescente era feita de uma forma que hoje poderia ser chamada de multidisciplinar, visto que abrangia uma equipe composta por médicos psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais psiquiátricos. O COJ oferecia à comunidade diversos serviços de orientação e diagnóstico, com técnicos das três profissões acima. Atendia pacientes de diversas áreas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, tanto de classe média quanto de áreas mais carentes.
Aliás, esse trabalho em equipe é citado diversas vezes, nos relatórios publicados pelo COJ, como um dos grandes fatores responsáveis pelo sucesso do Centro. As tarefas eram bem divididas. A entrevista inicial, bem como o estudo do ambiente familiar, escolar ou institucional do paciente eram feitos pelas assistentes sociais. Os médicos psiquiatras realizavam o exame médico inicial e se encarregavam dos casos “mais complexos” e problemas de natureza psicossomática.
Por sua vez, aos “psicologistas” (denominação usual para os profissionais de Psicologia, à época) cabia a aplicação e interpretação dos testes psicológicos (como testes de inteligência, personalidade e aptidões), que eram maciçamente empregados, refletindo uma tendência geral da Psicologia da época. Alguns dos testes mais utilizados eram o Psicodiagnóstico Miocinético (PMK), Minhas Mãos, Teste de Apercepção Temática (TAT), Binet-Simon e Rorschach. Eram encarregados também do tratamento psicoterápico dos casos que requeriam uma orientação eminentemente psicológica: a chamada “orientação vital”, de caráter mais “pedagógico” do que médico. Realizavam também orientação à família.
Inicialmente o COJ voltava-se ao psicodiagnóstico e à orientação profissional. O perfil do atendimento psicológico foi se transformando, à medida que a equipe se consolidou e começou seus estudos teóricos de técnicas psicoterápicas (principalmente rogerianas e psicanalíticas). Para isto muito contribuiu a presença de profissionais com formação no exterior, visto que alguns técnicos conseguiram bolsas de estudo para aperfeiçoamento em outros países, notadamente os Estados Unidos4. Além disto, o COJ contou com a contribuição de Reba Campbell, médica americana, natural de Washington, que durante oito anos ofereceu supervisão e auxiliou o Centro a estruturar seu atendimento psicoterápico. A partir de sua supervisão, o COJ começou a realizar psicoterapia infantil.
Por outro lado, as primeiras experiências com tratamento analítico, ainda que incipientes, começaram em 1960. Em 1965, foi a vez de se iniciar a psicoterapia de grupo. A “demora” do COJ em realizar terapia de grupo, que seria uma forma de aumentar o alcance do Centro em atendimentos, deve-se à orientação de Reba Campbell de que os tratamentos em grupo só deveriam ser realizados após o Centro ter uma boa experiência com tratamento individual (Brasil, 1956, p. 36).
O cuidado com a infância e juventude, tradicionalmente domínio da medicina e da educação, tornou-se uma área própria para o estudo e prática profissional da Psicologia; como o COJ, em sua constituição, bebe das fontes tanto da Pedagogia como da Medicina, apresenta-se como um exemplo privilegiado dos percursos e embates percorridos pela Psicologia em sua autonomização no Brasil.
Ressalte-se que o COJ pertencia a um departamento do Ministério da Saúde voltado à assistência infantil e que não possuía servidores próprios, mas, sim, cedidos de outras instituições. Em uma época em que, não obstante serem denominados psicólogos, não possuíam nem título nem diploma de psicólogo, a maioria dos técnicos psicólogos do COJ eram concursados do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) para o cargo “técnico em assuntos educacionais”.
Desde o início, o COJ propunha-se a ser também uma instituição de formação, uma “atividade-meio” e não “atividade-fim” (Albuquerque, 2003). Muitos estagiários de psicologia, serviço social e psiquiatria passaram pelo COJ. Alguns, por sua atuação destacada, permaneceram como técnicos efetivos. Analisando tabelas com a lista de estagiários que passaram pelo COJ no seu primeiro decênio (1946-1955) – que constam em Brasil (1956) – é interessante notar que há uma divisão de gênero nas equipes de psiquiatria, psicologia e serviço social: foram 10 estagiários de psiquiatria: três mulheres e sete homens, 12 estagiárias no Serviço Social e 10 estagiárias na Psicologia. Isto reflete uma divisão de gênero que se observa nessas profissões. Especificamente no caso da Psicologia, não há registro de técnico do sexo masculino em nenhum momento.
Dentre as mulheres que atuavam no COJ como estagiárias e técnicas, destacam-se personagens de grande importância na Psicologia brasileira, como Elisa Dias Velloso (1914- 2002), Therezinha Lins de Albuquerque (1926), Maria Helena Novaes Mira (1926-2012) e Helena Antipoff, esta última já apresentada acima.
Elisa Dias Velloso foi aluna dos fundadores do COJ: estudou com Helena Antipoff na Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Minas Gerais (1936-1941) e fez o curso ministrado por Mira y López no DASP sobre seleção e orientação profissional (1945-1948) além de posteriormente, com o ISOP já constituído, fazer o curso sobre Psicoterapia do Menor (1948). Iniciou seu trabalho no INEP em 1941, transferindo-se em 1944 para o DNCr, quando Helena Antipoff e Mira y López planejaram este órgão. Assim, foi natural que participasse da fundação do COJ em 1946, tendo sido sua diretora de 1960 a 1964. Somente saiu com sua aposentadoria em 1967.
Também se dedicou ao magistério. Havia lecionado Psicologia no Instituto de Educação de Belo Horizonte, no período de 1938-1941; atuou na PUC-Rio, tanto na graduação (1960-1966) quanto na pós-graduação em Psicologia (1967-1969). Como muitos dos psicólogos reconhecidos da época, que lutaram pela regulamentação da profissão e dos cursos de Psicologia, também participou ativamente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (1974-1976) e do Conselho Federal de Psicologia (1976-1979), onde atuou como presidente da Comissão de Ética
Sua principal colaboradora e aluna foi Therezinha Lins de Albuquerque. Nascida em 1926, teve sua formação na primeira turma de Pedagogia na Faculdade de Filosofia do Recife (1949), hoje UFPE. Porém migrou para a Psicologia (com a qual teve contato no curso pedagógico e na faculdade), porque não encontrava na Educação o dinamismo que queria (Albuquerque, 2003). Em 1952, já no Rio de Janeiro, foi apresentada a Elisa Velloso, que a convidou para realizar sua formação em Psicologia por meio de estágio no COJ. Começou atendendo adolescentes, em psicodiagnóstico e psicoterapia. Posteriormente, fez concurso para Técnico de Assuntos Educacionais do INEP, sendo lotada no COJ. Entretanto retornou ao INEP em 1955, a pedido de seu então Diretor, Anísio Teixeira5, com a finalidade de organizar o Gabinete de Psicologia na Escola Guatemala – posteriormente denominado Serviço de Orientação Psicopedagógica (SOPP).
A respeito do SOPP, sua atuação consistia inicialmente na aplicação de testes psicológicos de personalidade, inteligência e aptidões específicas. Com o tempo, tal atividade começou a ser questionada da forma que era realizada, priorizando-se então uma preparação das professoras para a utilização dos dados dos testes de maneira proveitosa. A partir desse momento, o SOPP estruturou-se no tripé reunião com as professoras, testes com os alunos e atendimento às famílias. Com o desenvolvimento do trabalho, foi necessária a presença de uma médica e a permanência definitiva de uma assistente social na equipe, sendo esta responsável por levantar dados sobre a situação familiar dos alunos. Observe-se que foi clara a opção por mulheres nas profissões envolvidas.
Therezinha permaneceu no SOPP até 1967, quando voltou ao COJ, assumindo sua direção, de 1968 a 1977. Sua gestão foi marcada por várias turbulências decorrentes de uma reforma administrativa promovida pelo governo militar em 1970, como veremos adiante.
Tendo conhecido a abordagem rogeriana e estudado a psicanálise, em 1972 participou da criação do Centro de Estudos em Antropologia Clínica (CESAC), junto com eminentes didatas da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, como Inês Besouchet, Wilson Chebabi e Joel Birman. O CESAC tinha convênio com a PUC-Rio e apresentava uma nova proposta em psicologia clínica, com uma visão antropológica e filosófica, divergindo da orientação psicanalítica ortodoxa da época.
Da mesma forma que Elisa Velloso, Therezinha Lins também deixou sua marca no momento da formação dos conselhos regionais e federal de Psicologia. Foi a primeira presidente do CRP/RJ, de 1977 a 1979, quando foi adquirida a primeira sede do Conselho, na Rua Paulo Barreto, em Botafogo. Depois foi do plenário do CFP (1979-1982), quando fez um importante trabalho sobre a supervisão de estágios. Finalmente, também foi professora no curso de especialização em Orientação Educacional da PUC-Rio (1958 a 1960). Publicou diversos livros na área de Psicologia Escolar, em decorrência de sua experiência no SOPP. Deles, se destaca “Acompanhamento Psicológico à professora”, de 1972. Depois de aposentada, continuou ministrando cursos e palestras em diferentes lugares do país.
Maria Helena Novaes Mira licenciou-se em Letras Neolatinas, pela Faculdade Santa Úrsula do Rio de Janeiro (1946) e iniciou, em 1950, sua formação em Psicologia no ISOP, por meio de vários cursos ministrados por Mira y López, complementado essa formação com outros cursos e especializações realizados na Europa e nos Estados Unidos. Estudou, nessas oportunidades, tanto com Jean Piaget (1896-1980) quanto com Carl Rogers (1902-1987).
Participou da criação do SOPP junto com Therezinha Lins de Albuquerque. No ISOP, fez parte da criação do Centro de Testes Psicológicos e Educacionais, que desenvolveu e padronizou a primeira bateria de testes de desenvolvimento educacional no Brasil. No COJ, com o seu amplo conhecimento teórico e prático das técnicas de exame psicológico, pôde colaborar de forma intensa com os serviços ali realizados.
Envolvida no magistério e pesquisa desde 1960, doutorou-se em Psicologia na PUC-Rio em 1968 e fez livre-docência na UFRJ em 1974. Nessas duas instituições, trabalhou como docente, destacando-se por ter criado a disciplina Psicologia Escolar e Problemas de Aprendizagem na PUC-Rio. Publicou inúmeros artigos nos Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada e desenvolveu linhas de pesquisa nas áreas de diagnóstico e prognóstico escolar, criatividade e superdotação, que resultaram em diversos livros (Mira, 1970, 1976).
Essas três profissionais demonstraram um profundo interesse na formação dos psicólogos, atuando de forma diversificada na área docente e de desenvolvimento científico, participando ativamente dos primeiros cursos de Psicologia. Também se nota seu envolvimento no processo de regulamentação da profissão por meio da direta e intensa participação nos Conselhos reguladores da profissão (CFP e CRP).
À medida que a notoriedade do COJ na comunidade crescia (pelo pioneirismo da sua proposta de atendimento e pela gratuidade do serviço), aumentou a procura, esbarrando-se, então, na limitação de recursos materiais e humanos, a ponto dos relatórios da época mencionarem as “filas de espera” (Velloso, 1964; Velloso & Silva, 1965). Muitos pacientes eram encaminhados por outras instituições, por funcionários e colaboradores, além daqueles que procuravam o Centro pela divulgação feita pelos seus ex-pacientes.
Por sua vez, o COJ também encaminhava casos que não se enquadrassem em seus atendimentos (distúrbios psicopatológicos graves) ou para os quais existiam serviços mais especializados, como o ISOP nos casos de orientação profissional.
Ou seja, nesse momento de autonomização profissional da psicologia, havia um intercâmbio entre essas primeiras instituições. Tudo era novo, o espaço ainda estava se consolidando e as próprias pessoas muitas vezes atuavam em mais de uma instituição, diversificando sua experiência. Outro exemplo desse intercâmbio ocorreu quando o curso de graduação em Psicologia da PUC-RJ foi criado em 1953. Na medida em que necessitava de locais de estágio para os alunos, o COJ era uma das poucas instituições disponíveis para receber alunos e oferecer formação prática em psicologia.
Durante a ditadura militar e suas inúmeras reformulações institucionais no serviço público, o DNCr passou por um processo de esvaziamento de suas atribuições. Em 1970, foi extinto oficialmente. O COJ, então, precisou lutar para não desaparecer. Devido em grande parte ao esforço pessoal de Therezinha Lins de Albuquerque, então sua diretora, o COJ permaneceu, vinculado à Coordenação Materno-Infanto-Juvenil da Secretaria de Assistência Médica do Ministério da Saúde.
Em 1971, o diretor do Instituto Fernandes Figueira (IFF), da Fundação Oswaldo Cruz, Amaury Medeiros, solicitou a alocação do COJ no IFF (onde está ainda hoje) a fim de diversificar as atividades lá desenvolvidas. Inserido dentro de um hospital, com o passar do tempo e de acordo com os novos debates entre Psicologia e Medicina, o COJ mudou seu atendimento, passando a desenvolver atividades de psicologia médica ou hospitalar, paralelamente à psicoterapia infanto-juvenil. Seu serviço se dirige aos pacientes internados nas clínicas do IFF – crianças, adolescentes e mulheres. Oferece um Curso de Especialização lato sensu em Psicologia Médica e Psicossomática e estágio para graduandos de Psicologia.
Apesar de ter sofrido várias alterações no seu nome, desde Centro Experimental de Orientação Infanto-Juvenil, Departamento de Saúde Mental até o nome atual Serviço de Psicologia Médica (COJ) para uma melhor inserção dentro do IFF, a sigla COJ continuou a ser empregada, tanto no dia a dia da equipe quanto nos documentos oficiais, o que dificulta estabelecer um registro cronológico preciso das denominações acima referidas. Mesmo com outras características de atendimento, que refletem as mudanças históricas da própria Psicologia, as atividades do COJ ainda mantêm uma ligação histórica com a relevância e pioneirismo do Centro.
A Clínica de Orientação Infantil do Serviço Nacional de Doenças Mentais (COI-SNDM)
Fundada em 1956 pela psiquiatra e psicanalista Maria da Paz Manhães (1917-2009), essa Clínica pertencia ao então Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM), que, em 1970, passou a denominar-se Departamento Nacional de Saúde Mental (DINSAM). Foi criada ainda no modelo assistencial higienista, particularizando-se por uma curiosa característica: o atendimento a filhos de pacientes psiquiátricos. As informações encontradas sobre essa clínica foram poucas. Sua menção aqui nos pareceu importante em função de sua fundadora e mentora, um importante nome da assistência infantil no Brasil.
Maria Manhães, formada pela Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil em 1944, foi uma das primeiras médicas negras do país. Desde cedo, interessou-se pela psiquiatria, tendo sido a primeira interna oficial do Hospital de Neuropsiquiatria Infantil no Engenho de Dentro. Atuou em seguida na Sociedade Pestalozzi, bem como no COJ (ambas as instituições criadas por Helena Antipoff). Sua experiência inicial, portanto, foi sempre com crianças, fossem elas internas por “problemas psiquiátricos”, simplesmente com “retardo” ou com desajustes de comportamento.
Essa experiência lhe valeu uma bolsa do British Council, que lhe possibilitou especializar-se em psicoterapia infantil na Tavistock Clinic, na Inglaterra, em 1950. Ali permaneceu por um ano e teve supervisão de Donald Winnicott (1896-1971). De volta ao Brasil, criou uma Clínica de Orientação da Infância, no Rio de Janeiro, em 1952, mas esta não durou muito tempo. Entretanto conseguiu que o SNDM criasse esse mesmo tipo de clínica, em 1956, sob sua supervisão.
Manhães já havia tido experiência analítica na Inglaterra com Walter Schindler. Ao retornar ao Rio de Janeiro, iniciou sua formação analítica com Werner Kemper (1899-1975), enviado por Ernest Jones para auxiliar na criação de uma sociedade de psicanálise no Rio de Janeiro. Kemper e sua esposa, Anne Katherine Kemper, eram respeitados à época pelos médicos desejosos de obter aquela formação. Entretanto também sofreram denúncias de “exercício ilegal da medicina”. Seu consultório sofreu uma invasão pela polícia exatamente no momento de uma sessão com Maria Manhães (Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro [SPRJ], 1980). Já em período posterior, começou o questionamento sobre a vinculação de Kemper ao nazismo, fazendo com que este voltasse à Alemanha.
Manhães chegou a ocupar vários cargos na SPRJ – a instituição criada por Kemper – tendo sido sua presidente no período de 1969-1971. Não exerceu a docência em universidade, mas foi assídua na formação de novos psicanalistas na SPRJ.
Orientou sua prática profissional para o atendimento infanto-juvenil, como o comprovam suas inúmeras publicações na Revista de Saúde Mental e na Revista Brasileira de Psicanálise, citadas por Borges (1977). Relevante, no contexto deste trabalho, é seu artigo “Assistência Psiquiátrica Infantil”, de 1957 (Borges, 1977; Abrão, 2009), em que faz um histórico dos serviços existentes no Rio de Janeiro, comparando-os com aqueles existentes nos Estados Unidos e na Inglaterra, dando especial destaque às clínicas de orientação. Outra contribuição relevante foi a tradução do livro de René Spitz, publicada sob o título de “Desenvolvimento Emocional do Recém-Nascido”.
Mais ao final de sua vida, dedicou-se a outros temas, como “Psicologia da Mulher e Outros Trabalhos” (Manhães, 1977) e “Prisma da Psicanálise na Cultura” (Manhães, 1996).
Como dito, nas poucas fontes encontradas, Maria Manhães é a grande referência e tida como a influência principal da abrangência da prática psicanalítica de crianças desenvolvida na clínica, bem como fora dela.
Sobre a prática, mais estritamente de psicólogas neste COI, nada foi encontrado, supondo-se que também se referia à aplicação de testes para efeito de psicodiagnóstico.
A Clínica de Orientação Infantil do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (COI-IPUB)
Fundada em 1953 como órgão do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), durante a gestão de Maurício Campos de Medeiros como diretor do Ipub (1946-1955), encontrava-se ainda sob influência dos ideais higienistas.
Essa clínica surgiu da necessidade de se criar um serviço para atendimento exclusivamente infantil, pois, até então, as crianças eram atendidas no setor de psiquiatria, sob regime ambulatorial, junto com os adultos (Lobo, 2000). Vinculada à Cátedra de Psiquiatra da Faculdade de Medicina, tinha como um dos objetivos ser um campo de estágio e de elaboração de material didático para a Cátedra.
Inicialmente, a direção da Clínica coube ao psiquiatra José Afonso Netto. A orientação psicológica ficou a cargo de Marialzira Perestello, psicanalista. Também faziam parte da equipe fundadora o pediatra Vidal Dutra Filho e as psiquiatras Mara Salvine de Souza e Ana Elisa Mercadante, bem como Fernando Nogueira de Souza e William Azmar. Perestrello menciona ainda a presença de Jovita Madeira, assistente social, e Germana Figueiredo, psicóloga (Abrão, 2001).
Em 1954, Décio Soares de Souza6, recém-chegado de formação analítica na Inglaterra, começou a trabalhar na COI, sendo o seu diretor de 1956 a 1958. Considera-se que foi o introdutor da psicanálise infantil na instituição (Abrão, 2001). Foi substituído por Marialzira Perestrello em 1959.
A COI destinava-se ao atendimento de crianças de dois a doze anos, de ambos os sexos, portadores de problemas psiquiátricos e emocionais relativos à conduta, linguagem, escolaridade, hábitos e problemas psicossomáticos. Os casos que demandavam outras especialidades como psicopedagogia e neurologia eram encaminhados após triagem.
O atendimento consistia de algumas etapas: a assistente social fazia a inscrição e primeira entrevista com os responsáveis; ainda com eles, o médico psiquiatra colhia dados do histórico de vida da criança, seu desenvolvimento, seus hábitos antecedentes e da família; em seguida, era realizado o exame neuropediátrico; depois, a etapa chamada de “hora do brinquedo”, na qual eram observadas as reações e o estado emocional da criança através de uma atividade lúdica, o que normalmente era realizado por um médico com formação analítica; finalmente cabia ao psicólogo a realização de exames psicológicos por meio da aplicação de testes. Eram utilizados testes de verificação de nível mental como Binet-Terman e Cubos de Kohs; testes de personalidade como o Rorschach, Fábula de Duss e TAT. Posteriormente a essa coleta de dados, os casos eram discutidos pela equipe em reuniões semanais, em que cada técnico apresentava as suas conclusões. A equipe multidisciplinar era formada por médicos, psiquiatras, neuropediatra, psicólogo e assistente social. Visava a um diagnóstico para posterior planejamento do tratamento, que poderia consistir em sessões de psicanálise, orientação medicamentosa, sessões de psicoterapia, orientação familiar ou encaminhamento para tratamento particular.
Em 1980, foi anexada à COI o Setor de Adolescente do Instituto de Psiquiatria, criado pela psicóloga Júlia Chermont e pelo médico Edson Saggese7, dando origem à Clínica Infanto-Juvenil, com orientação predominantemente psicanalítica. No bojo das transformações provocadas pela Reforma Psiquiátrica, em 1998 a Clínica foi transformada em um dos primeiros centros de atenção psicossocial à infância (CAPSI) do Brasil, sob o nome de Centro de Atenção e Reabilitação da Mocidade (CARIM), mantido com verbas do SUS e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na atualidade, o CARIM permanece, coexistindo com o Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (SPIA). Interessante observar que a criação desse Serviço rompeu com uma tradição do IPUB: pela primeira vez, um serviço infanto-juvenil denomina-se psiquiátrico, embora seu corpo técnico tenha um grande número de psicólogos. Uma hipótese é que isto ocorreu como uma reação à força da psicanálise no CARIM e, ao mesmo tempo, devido ao avanço da psiquiatria biológica e das terapias cognitivo-comportamentais no âmbito do próprio Ipub.
Portanto consideramos que a COI emergiu em um momento em que a forma de intervenção no desenvolvimento psíquico das crianças sofria grandes mudanças. Os poucos dados obtidos, seja por meio de documentos ou de entrevistas, possibilitaram algumas – poucas – informações. Uma constante foi o destaque conferido à psicanálise. Isto pode ser explicado, sem dúvida, porque parte da elite psiquiátrica daquele momento também fazia parte do corpo docente do Ipub, e eram psicanalistas, como o próprio Maurício de Medeiros. Assim, Rochelle Gabbay, assistente social que estagiou e realizou seu trabalho de conclusão de curso na COI em 1969 e que lá continuou atuando, fez sua formação psicanalítica. Marialzira Perestrello, uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) em 1959, foi, como dissemos, diretora da COI.
Nossa pesquisa encontrou algumas dificuldades no tocante a contatar e entrevistar personagens da história da COI/IPUB, por motivos que vão desde informações insuficientes para localização até a não aceitação de ser entrevistado por parte de alguns. Realizamos, todavia, duas entrevistas: a primeira, com Marialzira Perestrello; a segunda, com Rochelle Gabbay, assistente social, que estagiou e realizou seu trabalho de conclusão de curso na COI em 1969 e que trabalha até hoje no Ipub.
Ambos os relatos atribuem destaque à psicanálise na COI. Em que se leve em conta ser esse o campo de atuação das entrevistadas, de qualquer forma somos levados a concluir pelas demais informações obtidas que, de fato, a COI foi um ambiente maçicamente influenciado pela psicanálise, o que se justifica, a nosso ver, pela vinculação da Clínica ao cenário psiquiátrico.
Embora com poucas informações a respeito da equipe de psicologia, constatamos que ela existia, liderada por Marialzira. Lá se fazia uso de testes para o psicodiagnóstico e, certamente, atendimentos psicanalíticos.
Um interessante dado relatado por Marialzira Perestrello em entrevista (também encontrado em Abrão, 2001) sobre o retorno do casal Danilo e Marialzira Perestrello da sua formação psicanalítica na Argentina, em 1949, mostra claramente a vinculação infância/mulher atravessando o campo profissional psi, por meio de um enquadramento de gênero na demanda por psicanálise (adultos seriam analisados por homem; crianças, por mulher):
Eu nunca fui psicanalista de crianças, eu trabalhei na área infantil, mas sem querer ser psicanalista de crianças. Eu só analisei duas menininhas pequenas, isto pela orientação que eu recebi (...) Arminda Aberastury achava que todo analista de adulto deveria ter uma experiência em análise infantil (...), porque o inconsciente está ali, à flor da pele. Então, quando eu cheguei no Rio de Janeiro, me telefonavam e aí vinha o preconceito, de mulher e homem. Pensavam, psicanalista de adultos era o meu marido, psicanalistas de crianças, a mulher. (Abrão, 2001, p. 162)
Considerações Finais
Nas Clínicas de Orientação, a prática da psicologia se restringia inicialmente à aplicação de testes e ao psicodiagnóstico, cabendo o atendimento terapêutico aos médicos e psiquiatras de formação analítica, no bojo das pressões efetuadas pelo poder médico para manter a psicoterapia como sua área privativa. Nada disto diferencia a prática do “psicólogo” neste momento daquela que era realizada em escolas (como a Escola Guatemala), em hospícios (como demonstra o Manual de Henrique Roxo de 1938) ou em relação à orientação e seleção profissionais (como as realizadas pelo ISOP).
Entretanto foi nessas Clínicas que os psicólogos também iniciaram a psicoterapia. Em pelo menos uma delas, o COJ, houve uma forte influência rogeriana. Nas demais, pela sua inserção em espaço médico e pela relevância da psicanálise na psiquiatria do Rio de Janeiro naqueles anos, esta última abordagem era a principal. Aos poucos, contudo, também as psicólogas começaram a se interessar, estudar e praticar a psicanálise – de novo o COJ e suas psicólogas sendo o grande exemplo. De qualquer forma, esse ingresso em novo campo será difícil, como o texto fundamental de Ana Cristina Figueiredo já demonstrou (Figueiredo, 1984).
Nesse período, e principalmente a partir dos anos de 1950, a sociedade brasileira viveu um processo de psicologização. Cada vez mais, a Psicologia era vista como uma possibilidade de oferecer explicações sobre o comportamento humano; a princípio, como uma técnica de grande utilidade em diversas áreas (principalmente a medicina e a educação) e com o status de um saber complementar; a partir de instituições como o COJ, a COI-DINSAM e a COI-IPUB, a Psicologia alcançou notoriedade, demonstrando sua utilidade social (Rose, 2008), de forma que foi possível regulamentar a profissão de psicólogo e os cursos de psicologia, por meio da lei 4119, de 1962.
Nesse contexto, a contribuição feminina foi deveras importante. As Clínicas de Orientação demonstram a relevância dessa participação, ao mesmo tempo que visibilizam as relações de gênero presentes no campo da clínica. Vimos uma cisão muito clara, ilustrada pelo relato de Marialzira Prestrello: aos psiquiatras, normalmente homens, cabe o atendimento de adultos. Às mulheres, psicólogas, o atendimento de crianças e jovens. Marialzira e Manhães, mulheres em um meio masculino, o da psiquiatria, confirmam a destinação de gênero.
Tais constatações possibilitaram refletir sobre as relações de gênero como parte constituinte dos saberes e práticas psicológicas. A relação já estabelecida entre psicologia e infância, em um primeiro momento a partir da educação, se expandiu para o atendimento e orientação infanto-juvenil, dentro das perspectivas profiláticas da época. Significam a criação de um novo campo, que em breve se tornará o preferencial dos psicólogos: a clínica.
É importante explicitar, contudo, que, naqueles idos, a prática clínica se realizava em instituições, notadamente no serviço público. A única clínica de orientação infantil particular que localizamos, aquela criada por Maria Manhães, teve uma duração efêmera. Com o passar do tempo e o maior prestígio do profissional psicólogo, seria possível atuar na clínica privada, o que iria perdurar por décadas e fornecer o famoso “olhar intimista” como caricatura do profissional. Hoje em dia, por motivos que não nos compete explorar aqui, observa-se um retorno do psicólogo ao serviço público, especificamente por meio de concursos para o Sistema Único de Saúde (Sus) ou para o Sistema Único de Assistência Social (Suas).
Este texto tem também o objetivo de auxiliar esses novos profissionais a conhecer um pouco de sua história.
Referências
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Entrevistas
Albuquerque, T. L. (2006, 14 de junho). Entrevista. [Concedida a Maria Cláudia Novaes Messias, Ana Maria Jacó-Vilela e Filipe Degani-Carneiro].
Albuquerque, T. L. (2006, 20 de julho). Entrevista [Concedida a Maria Cláudia Novaes Messias, Ana Maria Jacó-Vilela e Filipe Degani-Carneiro].
Gabbay, R. (2009, 10 de junho). Entrevista [Concedida a Camilla Felix Barbosa e Filipe Degani-Carneiro].
Manhães, M. (2009, 28 de janeiro). Entrevista [Concedida a Maria Cláudia Novaes Messias]
Perestrello, M. (2009, 13 de maio). Entrevista [Concedida a Camilla Felix Barbosa e Filipe Degani-Carneiro].
Recebido: 16/08/2016
Última revisão: 20/12/2016
Aceite final: 09/02/2017
Sobre os autores:
Ana Maria Jacó-Vilela: Professora da UERJ, Coordenadora do Laboratório de História e Memória da Psicologia - Clio-Psyché. E-mail: jaco.ana@gmail.com
Maria Claudia Novaes Messias: Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: mariaclaudiapsi@gmail.com
Filipe Degani-Carneiro: Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde é pesquisador do Clio-Psyché Laboratório de História e Memória da Psicologia. Professor do curso de graduação em Psicologia do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM), Rio de Janeiro. E-mail: filipe.degani@gmail.com
Camilla Felix Barbosa de Oliveira: Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), RJ, Brasil. Professora do curso de graduação em Psicologia no Centro Universitário do Norte (UniNorte), Manaus, AM, Brasil. E-mail: camilla-felix@hotmail.com'
1 Endereço de contato: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social. Rua São Francisco Xavier, 524 - F sala 10120 – Maracanã, Rio de Janeiro. E-mail: jaco.ana@gmail.com
2 A história dos órgãos federais de coordenação da saúde infantil começou em 1923, com a criação da Inspetoria de Higiene Infantil do Departamento Nacional de Saúde Pública. Já após a criação do Ministério da Educação e Saúde, em 1934, foi criada a Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância, substituída, em 1937, pela Divisão de Amparo à Maternidade e à Infância e finalmente, em 1940, pelo Departamento Nacional de Criança.
3 Arthur Ribeiro de Moncorvo Filho (1871-1944) foi médico e filantropo de notável atuação na causa infantil. Foi o criador do Instituto de Proteção e Assistência à Infância (IPAI), em 1901, e do Departamento Nacional da Criança, em 1919, no Rio de Janeiro.
4 Maurício Campos de Medeiros (1885-1966) , psiquiatra, interessado em Psicologia e em Psicanálise, foi diretor do Ipub (1946-1955) e Ministro da Saúde de 1955-1958, período em que estimulou os estudos no exterior de funcionários públicos da área psi.
5 Anísio Teixeira (1900-1971) foi um dos maiores ícones do escolanovismo brasileiro. Foi Inspetor-geral de Ensino na Bahia (1924-1928) e Diretor-geral de Instrução Pública (1931-1935) no Rio de Janeiro, quando concebeu e criou a Universidade do Distrito Federal. Perdeu seus cargos no governo estadonovista. Na década de 1950, dirigiu o INEP e criou a Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Sua morte em função de uma queda em um poço de elevador, em novo período ditatorial, ainda gera questionamentos.
6 Décio Soares de Souza (1907-1970) foi catedrático de Clínica Psiquiátrica na Faculdade de Medicina da Universidade do Rio Grande do Sul e um dos primeiros brasileiros a realizar formação analítica.
7 Médico formado pela UFF em 1974, doutor em Ciências da Saúde pelo IPUB/UFRJ em 1995, criador e ex- coordenador do CARIM, professor do Ipub.
DOI: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v9i2.527