Versão de Sentido na Supervisão Clínica Centrada na Pessoa: Alteridade, Presença e Relação Terapêutica
Sense’s Version in Person Centered Clinical Supervision: Alterity, Presence and Therapeutic Relationship
Versión de Sentido en la Supervisión Clínica Centrada en la Persona: Alteridad, Presencia y Relación Terapéutica
Emanuel Meireles Vieira1
Universidade Federal do Pará (UFPA)
Edson do Nascimento Bezerra
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Francisco Pablo Huáscar Aragão Pinheiro
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Paulo Coelho Castelo Branco
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Resumo
Objetiva-se discutir a supervisão de psicoterapia a partir da abordagem centrada na pessoa (ACP). Assim, apresenta-se o posicionamento de Rogers a esse respeito, bem como a visão de autores contemporâneos. Admite-se uma tensão entre a genuinidade presente na psicoterapia e os parâmetros técnicos que guiam esse tipo de relação. Diferentemente de Rogers, entende-se que essa tensão não deve ser superada, mas escutada, a fim de que o psicoterapeuta esteja aberto à diferença do cliente e à própria. A atitude primordial para isso é a presença e a supervisão deve atuar no sentido de acessar a disponibilidade do psicoterapeuta para estar presente. Por fim, indica-se a versão de sentido como um instrumento eficiente para fins de supervisão.
Palavras-chave: alteridade; formação do psicólogo; versão de sentido; supervisão psicoterapêutica; terapia centrada no cliente
Abstract
The paper aims to discuss psychotherapy supervision based on the Person-centered Approach (PCA). ´The point of view of Carl Rogers about this subject is presented, as well as the vision of contemporary authors. It is admitted that there is a tension between the genuineness present in psychotherapy and the technical parameters guiding this type of relationship. Differently from Rogers’s propositions, it is understood that this tension must not be overcome, but it must be listened in order to enable the psychotherapist to be open to the difference of the client and his own. The primary attitude on the part of the psychotherapist towards this way of being in the relationship is to be present, while the supervision must act to access the willingness to be present. Finally, the version of senses is indicated as an efficient instrument for supervisory purposes.
Keywords: alterity; psychologist education; sense’s version; psychotherapy supervision; humanistic psychology; client centered therapy
Resumen
El objetivo es discutir la supervisión en psicoterapia desde el Enfoque Centrado en la Persona (ECP). Por lo tanto, se presenta tanto el posicionamiento de Rogers a este respecto como la visión de autores contemporáneos. Se admite una tensión entre la autenticidad presente en la psicoterapia y los parámetros técnicos que rigen este tipo de relación. A diferencia de otros, Rogers entiende que esta tensión no debe ser superada sino escuchada, de modo que el terapeuta esté disponible y abierto a la discrepancia existente entre el cliente y él. La actitud primordial para esto es la presencia, y la supervisión debe actuar para acceder a la disponibilidad del psicoterapeuta para estar presente. Por último, se indica la versión del sentido como un instrumento eficaz para fines de supervisión.
Palabras clave: alteridad; formación del psicólogo; versión de sentido; supervisión terapéutica; terapia centrada en el cliente
Em meio a um dos encontros de supervisão de um grupo de estágio em Psicologia, ocorre, entre um dos estudantes e o supervisor, o diálogo apresentado a seguir. O aluno inicia a conversa dizendo:
– Professor, o cliente falou da raiva que sente de sua atual mulher e do seu medo de se separar. Eu tentei sintetizar o que ele falou e ser compreensivo, e lhe disse: ‘Você sente raiva dela e medo de se separar ao mesmo tempo. É isso?’
Após o relato, o aluno questiona:
– Eu fiz certo, professor? Consegui dar uma resposta reflexo ao que ele me disse?
Diante disso, o professor intervém:
– Entendo que você queira muito que eu lhe diga se você fez certo ou errado, e essa me parece uma preocupação muito forte em você agora.
O professor obtém a seguinte réplica:
– Sim, professor, é verdade. Mas e aí? Fiz certo ou errado?
A situação, mesmo que fictícia, sintetiza discussões que costumam ocorrer em vários momentos de um encontro de supervisão que tome a abordagem centrada na pessoa (ACP) como referencial de atendimento. Existem duas intenções que se chocam, em princípio: de um lado, o estudante não abre mão de ter certeza de que fez a coisa certa e que a supervisão é o momento apropriado para que ele possa avaliar sua atuação como psicoterapeuta iniciante. De outro, o supervisor, tentando facilitar o contato do estagiário com as emoções e sentimentos presentes em si. Coloca-se, assim, um desencontro de intenções entre ambos.
A preocupação de Carl Rogers com a formação e a supervisão de psicoterapeutas o acompanhou ao longo de toda a sua obra. Ele tinha interesse em uma formação que pudesse instrumentalizar psicoterapeutas a manter uma relação que facilitasse mudanças na personalidade de seus clientes. Devido à revolução que seu pensamento representou no campo da Psicologia, sua proposta de pensar a psicoterapia também necessitava do desenvolvimento de respostas sui generis à questão sobre como alguém se torna psicoterapeuta e, consequentemente, de que modo se deve fornecer treinamento para tanto.
Em 1946, no livro Manual de Counselling, Rogers e Wallen (2000) entendiam que a relação entre psicólogo e cliente era pautada por um clima desenvolvido pelas atitudes que aquele tinha diante deste, sobretudo a de respeito à autonomia do cliente. Isto se manifestaria através da crença na capacidade de ajustamento do cliente, bem como pela tolerância e pela aceitação da diferença do outro. Todas essas características, expressas no embrião do que viria a se tornar a psicoterapia centrada na pessoa, são valores desdobrados em atitudes, ou seja, em predisposições para agir numa dada direção: a da valorização da experiência do outro e, por isso mesmo, não podem ser aprendidas através de prescrições, senão que apenas na experiência mesma. Ressalta-se que Rogers (1959/1977a) entende experiência como tudo aquilo que se passa no presente imediato do organismo e potencialmente pode se tornar consciente, ou seja, simbolizado em termos de sentido.
Em 1951, na obra Terapia Centrada no Cliente, Rogers (1992) indica que, na formação do psicoterapeuta, devem-se trabalhar inicialmente os valores com os quais ele parte para fundamentar sua atuação. As técnicas seriam, portanto, a realização desses valores. Segundo Rogers (1992), é necessário ao psicoterapeuta um conhecimento social amplo, com experiências de relações empáticas e a afirmação de sua filosofia de base, psicoterapia pessoal e conhecimento sobre a dinâmica da personalidade. Por sua vez, cabe ao cliente se abrir para as diferenças do mundo e de si mesmo, tentado compreendê-las antes de julgá-las.
Com efeito, as nuances formativas do psicoterapeuta foram alvo de pesquisas e reflexões de Rogers, e, ainda, constituem um campo aberto de discussões nos mais diversos afluentes humanistas nacionais (Moreira, 2001; Boris, 2008; Soares, 2009; Sá, Azevedo & Leite, 2010; Freitas, Araújo, Franca, Pereira & Martins, 2012; Ximenes, Barreto & Morato, 2015; Carvalho et al., 2015; Correia & Moreira, 2016). Diante desse cenário, objetivamos tecer uma reflexão sobre o significado de trabalhar com supervisão clínica na ACP e seus desdobramentos, a partir de nossa prática como supervisores de estágio, em diálogo com a fundamentação teórica dessa abordagem. Para isso, inicialmente, ponderamos as características relacionadas à formação de psicoterapeutas que Rogers elaborou em um momento inicial de construção de sua abordagem, aprofundando os aspectos tensionais implicados no modelo de supervisão clínica desenvolvido por ele. Em seguida, discutimos a presença como atitude fundamental para a abertura ao outro (alteridade), que se apresenta na relação terapêutica. Apontamos, por fim, a versão de sentido como um recurso útil a formação e supervisão de psicoterapeutas interessados em adentrar a dimensão da alteridade.
A Supervisão Clínica no Referencial Rogeriano
Durante os anos de 1940-1950, Rogers se preocupou em desenvolver uma teoria e uma prática clínica que formassem o psicoterapeuta para adentrar o mundo experiencial do cliente, de modo a compreender sua personalidade e seu comportamento. Enquanto Rogers e os seus colaboradores desenvolviam tais aportes clínicos, havia, também, uma preocupação em pesquisar o funcionamento dessa proposta de psicoterapia. As pesquisas, os atendimentos clínicos e as supervisões constituíam a matéria-prima para a constituição da psicoterapia centrada na pessoa (Rogers & Kinget, 1977a).
Considerando-se esse viés constitutivo, admite-se que o melhor método para o aprimoramento da atuação do psicoterapeuta é a transcrição de sessões gravadas e sua avaliação posterior (Rogers & Wallen, 2000; Rogers & Russell, 2002). Ressalta-se que tal viés possibilitou, pioneiramente, o registro fonográfico, a transcrição e a publicação de um caso clínico na íntegra. Naquele texto, nomeado de caso Herbert Bryan, Rogers (2005) expõe os preparos e diálogos, e as observações ocorridas durante oito sessões de atendimento. Essa maneira de registrar a sessão seria mais efetiva do que, por exemplo, tomar notas desta. Subentende-se, portanto, que se deve lançar um olhar minucioso para a sessão, a fim de que o psicoterapeuta evolua tecnicamente e não mais cometa erros a serem identificados posteriormente aos encontros. A análise de trecho por trecho, portanto, se mostraria de muita utilidade no manejo da relação terapêutica.
Para fins de formação e supervisão, Rogers e seus colaboradores desenvolveram um registro sobre os fatores que possibilitavam a instauração e o funcionamento da psicoterapia. Ao ponderar os efeitos dos diferentes modos de interação verbal entre psicoterapeuta e cliente, segundo a gravação dos atendimentos, percebe-se um modelo de formação baseado nos aspectos comunicacionais daquela experiência que o cliente expressa ao psicoterapeuta e de como este reage a essa experiência, respondendo à demanda (Rogers & Kinget, 1977a).
Com base nos estudos de Daniel Bergman, Rogers indica alguns tipos de respostas do psicoterapeuta, a saber: avaliativas, estruturantes da relação, esclarecedoras, reflexa ao conteúdo e reflexa ao objeto da experiência do cliente. O mesmo estudo também indica os tipos de respostas do cliente ao psicoterapeuta, como as reiterativas, não reativas, de envolvimento emocional e perceptivas de algum aspecto da experiência. Com base nisso, Rogers apontou que os tipos de respostas devem favorecer o contato e a tomada de consciência da experiência do cliente e do que acontece na relação. Assim, a psicoterapia desenvolvida por Rogers e seus colaboradores se constitui como uma abordagem compreensiva da experiência alheia, afastando-se das vertentes interpretativas presentes em outras abordagens (Rogers & Kinget, 1977a).
Em um desenvolvimento posterior dos aspectos comunicacionais presentes na relação clínica centrada no cliente, Rogers e Kinget (1977b) levaram a cabo e aplicaram um conjunto de práticas das atitudes necessárias à formação psicoterapêutica. Através de exercícios que apresentam trechos transcritos da fala do cliente, relacionados a algum problema, cabe ao psicólogo em formação escolher o tipo de resposta que, por fim, denota sua preferência pessoal ao reagir à experiência do outro. Categorizando os tipos de resposta como estimativa, interpretativa, tranquilizadora, exploradora ou compreensiva, percebe-se uma tentativa de ensino da atitude não diretiva que, obviamente, apresenta um repertório de respostas compreensivas maior do que as outras.
Nesse contexto de detalhamento do que estrutura a relação clínica, percebe-se o interesse de Rogers em explicar os elementos comunicacionais que podem servir de amparo formativo ao psicoterapeuta centrado no cliente. Por um lado, tal ímpeto formativo foi útil à desmitificação da psicoterapia como uma relação sem critério, baseada no faro do psicólogo, demonstrando que há um processo definido naquilo que torna possível a mudança de personalidade e comportamento do cliente. Por outro lado, embora não seja consensual na Abordagem Centrada na Pessoa, é comum, em nossa experiência como supervisores, observarmos uma dependência e uma preocupação do psicoterapeuta em formação em expressar as respostas corretas para centrar-se no cliente, havendo, pois, uma perda da espontaneidade na relação. Nesse sentido, essa tensão está presente na abordagem de Rogers e é alvo de elaboração em uma supervisão que preza pela formação do psicoterapeuta centrado na pessoa.
A supervisão é um aspecto relevante do processo de aprendizagem na formação do psicoterapeuta. Sobre o grupo de estagiários, Rogers esclarece: “. . . um deles relata sua entrevista e recebe comentários dos outros, bem como de um terapeuta mais experiente. . .. deve haver diferentes tipos de supervisão de tal maneira que não sintam que há apenas um modelo ou uma pessoa que devem seguir” (Rogers & Russell, 2002, p. 273, tradução nossa).
Nota-se uma valorização da troca de experiências entre pessoas com o mesmo nível de aprendizado. Soma-se, a isso, a rejeição de figuras de autoridade que imponham um modelo exclusivo sobre como se comportar diante do cliente. Considerando-se estes elementos, é possível refletir sobre a interação entre supervisor e supervisionando, a partir do que Rogers entendeu como “relacionamento”. Segundo Wood (2008), em alguns escritos, Rogers considerava relacionamento como algo apreensível pelo intelecto, uma abstração passível de análise da consciência. Logo, caso consideremos essa compreensão mais lógico-racional de relacionamento, podemos pensar um processo de supervisão configurado em uma visada microscópica sobre cada detalhe da interação entre psicoterapeuta e cliente. Sobre a ideia de “relacionamento”, nota-se que Rogers também se referia a esta como algo envolto de afetividade, compreensão, segurança e liberdade de expressão. Esses elementos tornam psicoterapeuta e cliente um conjunto.
Assim, de acordo com Wood (2008, p. 227), somente é possível “obter maior clareza focalizando o fenômeno do relacionamento psicoterapêutico eficaz a partir da mesma dimensão de consciência em que seus participantes funcionam. . .”. Ou seja, a supervisão nessa perspectiva, sendo um relacionamento que se estabelece como um exercício de compreensão de outro relacionamento (psicoterapêutico), somente pode ser considerada eficaz se consegue se aproximar qualitativamente das impressões sutis e significativas, da ordem da sensibilidade, surgidas nesse contexto do relacionamento que vincula psicoterapeuta e cliente. E tal aproximação, por questões óbvias, sempre será caracterizada por sua limitação própria, uma vez que o vivido presenciado na relação psicoterapêutica já perdeu seu caráter de presente imediato e não envolve diretamente a pessoalidade do supervisor.
Há, pois, uma tensão entre olhar para a relação de um ponto de vista externo e participar dela. Essa tensão é abordada por Rogers no artigo intitulado Pessoa ou ciência? Uma questão filosófica (Rogers, 2008a) e evidencia a difícil missão de integrar dois modos de ver a relação terapêutica, que se mostram antagônicos. Há, por um lado, a visão de Rogers como cientista, que adota o modelo de conhecimento das ciências naturais. Nesse viés, os resultados do processo terapêutico podem ser previstos e controlados, na medida em que se estabeleceu uma relação de causalidade entre as atitudes facilitadoras e o processo de mudança de personalidade, havendo, portanto, algo possível de ser equacionado (Rogers, 2009). Por outra via, existe a perspectiva do psicoterapeuta que se coloca como pessoa implicada na relação com o cliente, ocorrendo uma valorização da experiência e a admissão de que esta não se presta a uma análise que atenda aos ditames metodológicos das ditas “ciências duras”. Para o psicólogo cientista, “tudo o que existe pode ser medido . . .” (Rogers, 2008a, p. 123). O experiencialista, por sua vez, entende que “o único aspecto essencial é a compreensão íntima do estado total, unificado, imediato, no aqui-e-agora do organismo que eu sou . . .” (Rogers, 2008a, p. 122).
Rogers (1973), destarte, tenta resolver essa tensão a partir da crença em uma integração entre as duas visões: a ciência seria feita por pessoas que não estão separadas da realidade subjetiva, e, dessa forma, não haveria como separar o cientista do experiencialista. No limite, ele procura uma forma conceber o cientista a partir do olhar do experiencialista.
Segundo ponderamos, Rogers se equivoca quando integra essas duas esferas e ignorar as tensões envolvidas em sua relação pode significar deixar de reconhecer que, de fato, nos cabe transitar entre a estranheza e a familiaridade, no trabalho terapêutico. Se, por um lado, nos cabe acolher o que há de estranho e ser provocados por isto, por outro lado, há um imenso arcabouço teórico, técnico e prático que nos serve de parâmetro de concepção de relação terapêutica, por exemplo. Não intencionamos, nos limites deste escrito, resolver esse conflito, pois entendemos que sua manutenção pode ser frutífera e corresponder à concretude da relação terapêutica. Afinal, nos parece pouco razoável supor que o psicoterapeuta se fixará em apenas um ponto dessa relação. Sua atuação é como o pêndulo de um relógio, que não escolhe esse ou aquele lado, mas oscila entre ambos constantemente e produz um movimento. O estagiário do início deste texto tenta se fixar num desses pontos, ao perguntar sobre a exatidão daquilo que fez, mas o supervisor também se fixa na outra ponta, ao ignorar a dimensão instrumental da atividade terapêutica. Cabe, nessa dinâmica, o trânsito entre os extremos desse relógio por conta da consideração das diferentes demandas. Nesse caso, sugere-se o convite ao diálogo como mediador entre a experiência imediata desejada pelo supervisor e a necessidade de correção por parte do supervisionando, sem qualquer pretensão à superação desse dilema através da adequação absoluta a um dos pontos de referência envolvidos.
Considerando-se essa dualidade, é interessante notar que Rogers se situava no meio de uma forte tensão entre a ideia de um treinamento estruturado como forma de aprendizado e a concepção de que há maneiras de aprender que são experienciais e não demandam qualquer tipo de instrução. Isso significa que, no entendimento rogeriano, embora estudantes possam passar por treinamento, não é somente a instrução sobre como proceder que os tornará psicoterapeutas. Diante desta tensão, o que se sobressai é a valorização da aprendizagem significativa, ou seja, aquela que ressoa na experiência do psicoterapeuta, em diálogo com as premissas tão bem desenvolvidas por Rogers (2008b), a respeito das condições que promovem a mudança terapêutica da personalidade.
Desta forma, podemos observar, inclusive no contexto da supervisão, que o maior mérito de Rogers não foi ter legado, através da ACP, um modelo, um método psicoterápico, apenas. Assim, a teleologia e os valores da ACP não culminam em uma formação/eficácia técnica, mas apontam para uma sensibilidade ética das relações humanas nos mais diversos âmbitos (Amatuzzi, 2010).
Sem tentar resolver ou fugir do dilema entre o “cientista” e o “experiencialista”, há a possibilidade de se resgatar o espírito da tentativa de solução dada por Rogers sem cair em seu reducionismo objetivo, ou seja, adequar o fazer do cientista a partir do olhar do experiencialista. Ao considerar a legitimidade das diferentes necessidades envolvidas em uma supervisão e o trânsito permanente entre a estranheza e a familiaridade derivadas desta experiência, não renunciamos ao valor da experiência imediata, apenas compreendemos que a necessidade de correção por parte do supervisionando não é somente uma derivação de sua insegurança profissional, mas o desafio para alcançar uma expertise própria que lhe possibilite atuar de modo autônomo e responsável, sustentado em sua capacidade de abertura ao inusitado.
Para isso, Buys (1987) argumenta que o psicoterapeuta iniciante parte da ideia de técnica centrada no psicoterapeuta e teoria centrada no cliente, para um movimento de maior abertura à experiência e ao presente da relação. Assim, a supervisão, que esse autor recomenda que seja feita em grupo, teria a função de focar o psicoterapeuta no processo e na atenção ao que ocorre na interação entre ele e o cliente, ou seja, na valorização do processo experiencial do cliente. O grupo deve ser facilitado por um supervisor que, pautado no modelo desenvolvido por Rogers, trabalha a escuta mútua e o potencial de construção coletiva.
Lambers (2007), como nós, identifica a tensão entre os aspectos técnicos e experienciais da ACP, e entende que “o desafio para o supervisor centrado na pessoa é integrar elementos de desenvolvimento, facilitadores com responsabilidades de ensino e de avaliação na relação de supervisão . . .” (p. 368, tradução nossa). Para a referida autora, portanto, ficar atento ao processo experiencial entre psicoterapeuta e cliente não exclui a necessidade de cuidado técnico. Cabe à supervisão facilitar o processo de congruência a ser desenvolvido pelo psicoterapeuta e, dessa forma, tornar mais claro o trânsito entre a familiaridade e o estranhamento implicados nesse trabalho. Nesse mesmo sentido, Tudor e Merry (2006, p. 134, tradução nossa) entendem que a “supervisão se concentra nos processos e dimensões relacionais da terapia, incluindo atitudes e comportamentos do supervisionando como psicoterapeuta [. . .] e, em paralelo, da supervisão em si”.
Todos os autores mencionados, incluindo Rogers, entendem a supervisão como uma relação que oferece um ambiente similar ao da psicoterapia. Caberia ao supervisor tomar o supervisionando como capaz de atuar por si mesmo, sem necessitar da tutela de uma autoridade e que, necessariamente, deve aprender a se abrir às experiências do outro e de si mesmo. Assim, Lambers (2007) afirma que a função da supervisão não é monitorar o trabalho do terapeuta, mas facilitar a descoberta da sua forma de ser terapeuta. Vieira (2012) entende que cabe ao supervisor criar condições para que o terapeuta iniciante identifique aquilo que lhe é significativo no processo de tornar-se terapeuta e na relação com o outro.
Considerando a supervisão como uma relação que possui como parâmetro o que acontece na psicoterapia, o seu objetivo não é o acúmulo de conhecimentos teóricos como instrumentos que podem ser manipulados, a partir de treinamentos. Esse caráter meramente funcional distancia-se da proposta de aprendizagem significativa que sustenta a psicoterapia em ACP, ou seja, o tipo de aprendizagem “que provoca uma modificação, quer seja no comportamento do indivíduo, na orientação da ação futura que escolhe ou nas suas atitudes e na sua personalidade . . .” (Rogers, 2009, p. 322). Para isso, não há modelos estabelecidos que sirvam de referência para validação da prática psicoterápica. O próprio Rogers não legitima essa apropriação de sua teoria, entendendo o seu valor a partir de sua construção. A disseminação se daria quando o autor entende que a teoria se torna um modelo a ser seguido.
A supervisão clínica em ACP, por analogia à proposta psicoterápica, sustenta-se no processo de facilitação realizado pelo supervisor, para que o psicoterapeuta se sinta mobilizado pelas dificuldades derivadas das experiências de atendimento. Estas não seriam vistas como empecilhos a serem evitados, mas oportunidades de aprendizagem efetiva de um modus operandi próprio, a ser construído experiencialmente pelo psicoterapeuta. Para isso, a relação de supervisão necessita ser constituída sobre a confiança do supervisor com relação à capacidade de desenvolvimento das habilidades facilitadoras do psicoterapeuta, associadas intimamente ao seu crescimento como pessoa, que se reflete pela sua cada vez maior flexibilidade, abertura à experiência e capacidade de aprender (Rogers, 2009).
Diante deste cenário, perguntamo-nos: Qual o objeto da supervisão? O que, de fato, é o foco do supervisor e do supervisionando que tomam a ACP como seu referencial de atuação? Num primeiro momento, a resposta poderia ser que seu objeto é a relação terapêutica. Ocorre que, olhando mais atentamente, a supervisão incide mais diretamente sobre aquilo que, por parte do psicoterapeuta, oferece condições para que uma relação seja, de fato, terapêutica, ou seja, a abertura do psicoterapeuta à diferença que o cliente lhe traz e desperta. A supervisão é a facilitação do diálogo com essa diferença através do fortalecimento da presença do psicoterapeuta e, consequentemente, da relação terapêutica como encontro.
O Psicoterapeuta Como Presença: Um Encontro com os Outros
Antes de continuarmos com a discussão sobre a supervisão propriamente dita, cumpre-nos debater a ideia de presença na relação terapêutica. Esse debate é importante, porque, conforme dito anteriormente, entendemos que é exatamente sobre tal presença que incide o processo de supervisão. Isso não quer dizer que ignoremos a dimensão técnica, mas que a qualidade da presença do psicoterapeuta é elemento crucial para o bom andamento de uma relação que se pretende terapêutica, inclusive no que diz respeito aos procedimentos específicos que se pretendem adotar ao longo do processo. A esse respeito, Rogers relata: “Estou muito presente para meu cliente. Não tenho total certeza do que quero dizer com isso, mas a coisa principal que está ocorrendo comigo é minha preocupação, e atenção, e escuta ao cliente. Estou muito presente; nada mais importa” (Rogers & Russell, 2002, p. 279, tradução nossa). A fala de Rogers nos remete a uma abertura permeada pela inteireza da disponibilidade para se encontrar com o outro, tomá-lo como mistério e pautar a relação por essa receptividade, o que, ressalte-se, não significa passividade. O psicoterapeuta responde a partir dessa abertura, de tal maneira que “tenho um conhecimento de quem sou, então posso me permitir entrar no mundo dessa outra pessoa – ainda que seja um mundo assustador, louco, bizarro – porque sei que posso voltar para o meu mundo e ser eu mesmo...” (Rogers & Russell, 2002, p. 281, tradução nossa).
Somente, nestes termos, entendemos o desafio e a dificuldade que significa considerar e compreender o outro. Trata-se de legitimar a alteridade presente na relação, uma vez que são tais diferenças expressadas que possibilitam o estabelecimento potente do encontro, pois “essas diferenças que separam os indivíduos, o direito que cada pessoa tem de utilizar sua experiência da maneira que lhe é própria e de descobrir o seu próprio significado nela, tudo isso representa as potencialidades mais preciosas da vida...” (Rogers, 2009, p. 24).
Estar presente, portanto, implica em estar disponível a se relacionar com a diferença do outro e a travar contato com a sua própria diferença, em lidar com o que há de inusitado e imprevisível numa relação que, mesmo pautada por parâmetros comuns, é extremamente singular. Afinal, como nos adverte Wood (2008, p. 211), psicoterapeuta e cliente não criam o relacionamento, pois “ele e o cliente são o relacionamento”. Nesse sentido, ser o relacionamento quer dizer estar disposto a construir com o outro os caminhos da relação e se implicar nesse processo sem a intenção de controlá-lo, tampouco de observá-lo.
Para Greenberg e Geller (2001, p. 133, tradução nossa), “estar presente ou totalmente em sintonia com o momento é um guia necessário, tanto para estar aberto à minha própria experiência quanto para saber como responder à ação recíproca de pessoa, situação e contexto...”. Para os referidos autores, portanto, estar presente quer dizer conectar-se e abrir-se ao momento e ao contexto da relação e de sua singularidade. Significa, pois, não repetir respostas padronizadas, mas vincular a produção da resposta ao aqui-e-agora da relação.
Nessa mesma direção, Schmid (2001) entende que todas as clássicas atitudes descritas por Rogers (2008b) podem ser unificadas pela ideia de presença, que, por sua vez, está ligada à disposição para ser si mesmo e ser tocado pelo outro numa relação. Ocorre que ser si mesmo e ser tocado pelo outro implicam num encontro com a diferença do cliente, em assumir-se como diferença a ser moldada e, portanto, sempre inacabada. De acordo com Schmid (2001, p. 223, tradução nossa), “isso implica numa contraposição radical a abordagens orientadas pelo expert (tanto em termos de conteúdo quanto de processo), enfatizando que a pessoa como tal (e não técnicas, métodos ou habilidades) é o fator ativo da mudança...”. Assim, ainda consoante ao mencionado autor, tornar-se presente deve ser o objetivo perseguido pelo psicoterapeuta ao longo do processo, com a finalidade de autorizar e empoderar o cliente para uma autoria do seu próprio futuro, através de suas vivências atuais.
O tipo de relação incitado pela atitude de presença é o encontro. Isto porque, inteiro, disponível, aberto, o psicoterapeuta se coloca numa posição contrária em relação ao cliente, ou seja, não se assume como igual, mas como alguém essencialmente diferente, disponível para, a partir dessa diferença, acolher outra. É nesse sentido que, para Schmid (2013), encontro é estar com o cliente e ser contra ele, ao mesmo tempo. Ao encarar o cliente, o psicoterapeuta está pronto para aceitá-lo no que ele pode revelar em suas singularidades, mesmo ante o desconhecimento do que está por vir. Essa aceitação é a uma postura diante do outro que opta pelo reconhecimento dele como alteridade e não pelo conhecimento de sua dinâmica psíquica, por exemplo. Enquanto o conhecimento opta por apreender a totalidade do outro e reduzi-la àquilo que o psicoterapeuta conhece e domina, o reconhecimento significa “aceitação e confirmação, desafio e pro-vocação. Ambos são mútua e dialeticamente conectados entre si...” (Schmid, 2013, p. 57, tradução nossa). Reconhecer é pôr em prática o que Rogers (1976) chama de amor não possessivo pela abertura ao mistério que o outro é, de modo que o psicoterapeuta tensiona os saberes já estabelecidos, e, por vezes, toma-se surpreso com suas próprias reações, pois se vê vulnerável a ser tocado pelo cliente.
Diante disso, interessa-nos agora pensar como a supervisão pode facilitar o fazer-se presente do psicoterapeuta, visto que, deste fator, dependem todas as formas de interação que permeiam a relação terapêutica. A seguir, partindo da discussão até aqui elaborada e de nossa experiência como supervisores, debateremos os recursos de que lançamos mão para isso.
Versão de Sentido: Presença Que se Faz Presente
Conforme debatido no tópico anterior, a presença, elemento-chave a ser facilitado pela supervisão, não pode ser incutida como uma informação a ser meramente aplicada pelo supervisionando. O que está em jogo não é seu domínio conceitual a respeito do outro com quem se relaciona, mas a abertura que tem para ser provocado por essa alteridade e responder a partir dessa provocação. É, inclusive, convidá-lo a falar da dimensão operacional da psicoterapia através dessa provocação e inseri-la num contexto significativo e relacional.
Nesse sentido, em nossa prática como supervisores, nos interessa um instrumento que pudesse facilitar, ao supervisor e ao supervisionando, o acesso à relação terapêutica em sua dimensão de presença. Isso significa que, para nós, é fundamental que o supervisionando consiga partir daquilo que lhe é significativo e presente para descrever e apreciar a relação que estabelece com clientes, numa narrativa que, longe de descrever exaustivamente os fatos, forneça aos que participam de seu compartilhamento um contato próximo ao sentido que ela faz. Em nossa experiência, a versão de sentido (VS) vem se mostrando como um instrumento frutífero no cumprimento desse objetivo.
Desenvolvida por Mauro Amatuzzi, nos anos de 1990, esta ferramenta é definida da seguinte forma: “Como produção, a VS é a fala, o mais autêntica possível, que toma como referência intencional um encontro vivido, pronunciada logo após sua ocorrência...” (Amatuzzi, 2001, p. 84). A fala autêntica não deve ser uma fala qualquer, mas algo expressivo, que diga do sentido elaborado na experiência imediata da pessoa. Há, intencionalmente, referência a uma situação específica e é a isso que o relato deve se referir. A proximidade do encontro se justifica na medida em que se tenta tornar presente, na escrita significativa, o calor por este gerado e que se vai se esvaindo com o distanciamento proporcionado pelo passar do tempo.
Além de definir a VS como produção, Amatuzzi (2001) conceitua essa ferramenta como produto. De acordo com o autor: “como produto, a versão de sentido será um texto expressivo da experiência imediata, escrito ou gravado por iniciativa da própria pessoa, ou solicitado por um interlocutor...” (p. 84). Fundamentalmente, a ideia de que se trata de um texto expressivo nos interessa mais de perto, pois significa que há uma pergunta sobre o que de fato é significativo daquele encontro para quem é solicitado a escrever uma VS.
Por ser “uma forma de contato vivo com o sentido de um encontro...” (Amatuzzi, 2001, p. 79), entendemos que a VS pode ser muito útil no trabalho de supervisão em grupo. De fato, esta aponta para aquilo que, do ponto de vista afetivo, se destaca para o psicoterapeuta, no encontro com o cliente, e indica caminhos para que o supervisor, também a partir de uma postura de abertura, presença e encontro, explore, junto com o psicoterapeuta, as rotas percorridas no processo terapêutico. Assim, Amatuzzi (2001) define a VS como um método que “consiste essencialmente em versar e conversar sobre o sentido até que se chegue a uma presentificação dele suficiente em relação ao que é esperado daquela atividade...” (p. 85).
A VS funciona inclusive como um exercício pelo qual o psicoterapeuta aprende a se abrir para sua própria diferença – por vezes, inaceitável, num primeiro momento. Não é raro, em nossa experiência, por exemplo, que a leitura de uma VS nos aponte para uma dificuldade que o psicoterapeuta experimenta de entrar em contato com experiências suas e do cliente, na relação que desenvolvem. Geralmente, VSs, assim, são um relato frio, em que a preocupação com a descrição da sucessão temporal se sobressai em relação ao acesso àquilo que de fato tocou o psicoterapeuta, e, portanto, indicam dificuldade de ele se fazer presente e encarar o que emerge no decorrer da relação.
Como supervisores, mais do que corrigir, cabe-nos, nesses momentos, também tomar o pressuposto da presença no estabelecimento da relação significativa com o supervisionando e, em parceria com o grupo de supervisão, descrever a que o relato nos remete em relação ao acontecimento analisado. Conforme esses feedbacks são dados por todos os membros do grupo, avança-se na exploração das questões que, de fato, permeiam a relação e que abrem ou fecham a disponibilidade do psicoterapeuta para estar com aquela pessoa. Observa-se que, conforme essa exploração avança, o psicoterapeuta expõe a dimensão instrumental de sua atuação e que a explanação dos sentidos envolvidos que a permeiam torna esse aspecto bem mais compreensível por parte de todos os envolvidos, tanto para quem lê como para quem escuta. Fica mais claro para todos por que o psicoterapeuta agiu desta e não daquela forma.
Nesse sentido, a preocupação inicial do psicoterapeuta do exemplo que abriu este texto deixa de ser com a correção técnica da atitude que tomou para se tornar uma contextualização atitudinal, digamos assim, quanto ao modo como se procedeu. É por essa via que podemos compreender o entendimento de Amatuzzi (2001), para quem a palavra pronunciada autenticamente na VS reúne passado, presente e futuro, pois atualiza no presente aquilo que é passado e disponibiliza o psicoterapeuta para o futuro que lhe é reservado, na relação. Em nossa experiência, é comum que relações que se mostram extremamente difíceis de seguir adiante, como que andando em círculos, ganhem novos rumos a partir do momento em que o psicoterapeuta foi fundo na leitura e discussão em grupo de sua tomada de posição na relação terapêutica e, desta forma, readequou o contexto das atitudes e procedimentos que adotou naquele encontro. Isso não quer dizer, entretanto, que o psicoterapeuta e o supervisor deixem de ter dúvidas quanto aos procedimentos a serem adotados. Aliás, é interessante que haja sempre uma ponta de abertura quanto ao que fazer, sob pena de que as atuações de psicoterapeuta e supervisor ocupem um lugar cristalizado e pouco conectado ao presente. Por parte do psicoterapeuta, isso se refletiria na repetição estereotipada de respostas mecânicas, atreladas a um modo de proceder descolado de seu encontro com o cliente, o que, em última instância, significa que tanto faz a pessoa diante dele ou o momento da relação, na medida em que sua resposta será basicamente a mesma. Do ponto de vista do supervisor, fugir da incerteza e do inusitado no processo de supervisão significaria ocupar um lugar de guru e tutelar a ação do psicoterapeuta a um modelo de atuação que deve necessariamente passar por seu crivo de avaliação.
Assumir que não se prepara o psicoterapeuta para estar com o cliente significa dizer que há uma exigência para que ele assuma um posicionamento diante do outro e verifique se a disponibilidade a que nos referimos acima, de fato, corresponde ao que lhe é possível. Significa que ele, do ponto de vista de sua atuação, parte de um pressuposto de respons-abilidade, ou seja, da habilidade de ser uma resposta para o outro, mas uma resposta que o provoca a se implicar e responder a suas questões. A VS facilita a expressão desse posicionamento e, destarte, indica ao psicoterapeuta em treinamento e ao supervisor, o lugar que aquele ocupa e as atitudes que assume perante a experiência da relação entre ele e o cliente.
Considerações finais
A supervisão é um dos pilares da formação do psicoterapeuta centrado na pessoa, que se situa na fronteira entre a apreensão técnica das atitudes necessárias para o processo de mudança da personalidade do cliente e a adoção de uma ética de acolhimento à diferença, que emerge da pessoa que procura uma relação de ajuda. No limite dessa fronteira entre técnica e ética, delineia-se uma relação que somente se consolida se aquele que a facilita constrói para si uma experiência dialética, na qual a técnica é atravessada pela presença genuína de valores, tais como a crença na potencialidade de transformação do homem e a ética que se estrutura em torno de um modelo específico de relação de ajuda, que tem se mostrado profícuo ao longo do tempo. É nesse sentido que se aposta na relação terapêutica como presença.
O desafio da formação se coloca em como garantir ao psicoterapeuta iniciante um passeio por essa fronteira, de modo que a técnica não dissolva a genuinidade dessa experiência de acolhimento do outro e, ao mesmo tempo, a dimensão organísmica que se presentifica no instante da relação possa ser elaborada de modo a garantir a consistência necessária para que aquela relação se torne produtiva. Considerando-se esse dilema, mostrou-se aqui o quão pertinente é o uso da VS, tendo em vista seu potencial de presentificar a intensidade vivida no encontro entre psicoterapeuta e cliente e, simultaneamente, garantir esse trabalho de elaboração imprescindível para a consolidação das atitudes que delimitam a atividade do psicólogo centrado na pessoa.
Como apontamentos para discussões posteriores, deve-se pontuar que há outras ferramentas, complementares à VS, que também podem ser utilizados para que a postura terapêutica ultrapasse a mera aplicação de técnicas e também não se perca sem um modelo que a oriente. Podemos citar, como exemplo, a realização de encontros em grupo fundamentados na proposta de Rogers (2001), os workshops. Estes ocorrem com o intuito de tornar o grupo de aprendizagem sensível a cada um de seus membros e disponível para tanto. Ocorrem, geralmente, durante 16 horas de intensivas de um fim de semana e não há estruturação prévia de exercícios, sendo facilitados pelos supervisores.
O grupo se reúne e determina a programação, entrando em contato íntimo com aquilo que lhe é mais significativo a cada momento daquela reunião. Interessante perceber que o lugar do facilitador vai se diluindo, enquanto o grupo toma para si a responsabilidade do encontro. Do silêncio, passando em seguida por temas banais, o grupo vai se aproximando da própria experiência de si mesmo como coletivo e, ao mesmo tempo, de cada um, individualmente. A fala vai se tornando cada vez mais autêntica e, portanto, o grupo se faz cada vez mais presente e disponível para o encontro com o que há de mais urgente no momento presente (Vieira, 2012).
Percebemos que esse tipo de encontro facilita o processo de fortalecimento do grupo como coletividade disponível para se acolher e se ouvir mutuamente, buscando maneiras de se aproximar de uma fala que mobiliza cada um. Isso implica em mudança para estar consigo e com os outros. O psicoterapeuta, então, se disponibiliza a ser outro para si mesmo e para o outro com quem se põe em relação, a partir de um processo facilitado pelo workshop, bem como da escrita e do compartilhamento de VSs, pois estes nada mais são do que maneiras de se aproximar da experiência que mobiliza a experiência genuína (Rogers, 1976).
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Recebido: 25/01/2017
Última revisão: 08/06/2017
Aceite final: 04/09/2017
Sobre os autores:
Emanuel Meireles Vieira: Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Docente da Faculdade de Psicologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará. E-mail: emanuel.meireles@gmail.com
Edson do Nascimento Bezerra: Psicoterapeuta. Especialista em Psicopedagogia pela Faculdade Ipiranga. Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão E-mail: en.bezerra@gmail.com
Francisco Pablo Huáscar Aragão Pinheiro: Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Docente do Curso de Psicologia da UFC, Campus Sobral. E-mail: pablohuascar@gmail.com
Paulo Coelho Castelo Branco: Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Docente do Instituto Multidisciplinar em Saúde da Universidade Federal da Bahia. E-mail: pauloccbranco@gmail.com
1 Endereço de contato: Universidade Federal do Pará. Rua Augusto Correia, 1, Guamá, CEP: 66073-040, Belém, PA. E-mail: emanuel.meireles@gmail.com
DOI: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v9i1.375