RESENHA
Um novo olhar empírico sobre a saúde mental em contexto e seus desdobramentos para a análise do comportamento
A new empirical view on mental health in context and its implications for behavior analysis
Uma nueva mirada empírica sobrela salud mental em contexto y sus implicaciones para el análisis del comportamiento
Guilherme Bergo Leugi1
Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer
University of South Australia, Centre for Social Change
Obra: Guerin, B. (2017). How to rethink mental illness: The human contexts behind the labels. London: Routledge. 237 p.
A caracterização do comportamento como pergunta de pesquisa e a explicação do comportamento como resposta a essa pergunta são características fortes da Análise do Comportamento como campo de conhecimento. Em linhas gerais, essa é a proposta do livro de Bernard Guerin, ao propor uma abordagem fortemente empírica, com um olhar contextual, para o que chamamos de saúde ou doença mental. Como repensar a doença mental: Os contextos humanos por trás dos rótulos2 aparece como o terceiro livro de uma trilogia que traça um caminho para repensar o comportamento humano e a psicologia, de um ponto de vista trans e multidisciplinar, entendido como uma análise contextual. Após Como repensar a psicologia: Novas metáforas para compreender as pessoas e seus comportamentos (Guerin, 2016b) e Como repensar o comportamento humano: Um guia prático para análise social contextual (Guerin, 2016a), cujas leituras são enfaticamente recomendadas, o autor traz a aplicação de uma visão contextual sobre o comportamento considerado “mentalmente doente”, com incursões a diversos corpos de conhecimento das ciências humanas e sociais.
A obra é organizada de modo que o leitor é apresentado a um questionamento essencial já no título do primeiro capítulo: “Quais comportamentos são considerados como ‘doença mental’ e por que são chamados ‘mentais’?”. O ponto de partida e o ponto de chegada do livro, segundo o autor, estão contidos na epígrafe: “Pessoas não ‘têm uma doença mental’; pessoas vivem, e viveram, em contextos que não sustentam comportamentos saudáveis” (p. 1). Guerin nos leva a questionar a metáfora explicativa da cognição como intermediadora e definidora de modos de pensar, atualmente bastante difundida nas ciências psicológicas como um recurso heurístico posto e dado. Recurso este que também, ainda que talvez com inserção mais gradual e tardia, tem direcionado pesquisas e interpretações na Análise do Comportamento. Ao enfatizar a importância do olhar contextual do que é considerado “doença mental”, o autor não só questiona tal noção epistemológica e ontologicamente, mas oferece caminhos práticos de intervenção que vão além dos “processos internos” do indivíduo.
Destarte, o autor posiciona o livro como um convite ao questionamento de construtos estabelecidos em saúde mental, inclusive taxonomias recursivas do DSM, e entrega ao leitor a possibilidade de uma psicologia pós-interna. Uma abordagem pós-interna para a psicologia trata do exercício de pensar novas possibilidades de olhar empiricamente para o humano, em seus aspectos divergentes ou não, de um ponto de vista que reconheça as relações e audiências (ambientes) que o circundam e definem. O programa de Guerin sugere desviar o foco das teorias abstratas e generalizantes, em favor da observação contextual, e os capítulos da obra aqui resenhada fazem o detalhamento de como empreender esse tipo de observação. Especificamente, nos capítulos segundo e terceiro o autor pontua que observar contextualmente o comportamento, inclusive aquelas ações que recorrentemente têm recebido o rótulo de “mentais” (saudáveis ou não), implica identificar: relações de troca de recursos simbólicos e materiais; uso estratégico da linguagem (inclusive pensamentos) dentro dessa perspectiva de troca; identificar as trocas ao longo do tempo; entre outros aspectos que usualmente não são analisados em detalhe quando se decide por um diagnóstico ou rótulo (ver Figura 2.1, página 42). Um programa equivalente a esse está (ou esteve) presente na Análise do Comportamento desde seu nascimento. Afinal, o que é dizer que o que as pessoas fazem é definido pelas contingências a que estão submetidas, se não um convite à pesquisa empírica e aplicada a cada instância de comportamento? E isto feito a fim de identificar o que acontece naquele momento, para aquela pessoa, a despeito de generalizações teóricas grandiosas.
Outro dos pilares da proposta de Guerin, em sua epistemologia pós-interna, é substituir a dicotomia racional/irracional por uma interpretação contextual. “Agir irracionalmente é sempre um caso de fortes consequências sociais alternativas” (p. 160). Mais contundentemente, o autor coloca que ao categorizarmos “comportamentos como irracionais ou não-funcionais (DSM), isto significa, na verdade, que nós não investigamos todos os contextos apropriadamente” (p. 161). Usualmente, aqueles contextos que são ignorados são os das consequências sociais das ações, em favor de estruturas de pensamento e de agir pré-estabelecidas e derivadas de construtos metafóricos de cognição. “O oposto de racionalidade não é loucura, mas socialidade” (p. 161).
Para além da desconstrução das metáforas estabelecidas de cognição, doença mental, mental, entre outras, quais então são as implicações práticas da abordagem de Bernard Guerin? A primeira, mais evidente, é que eventuais tratamentos em saúde mental devem olhar para os contextos dos comportamentos considerados problemáticos e não tentar “consertar” modos equivocados de pensamento ou fala. Esforços devem ser feitos para modificar contextos, e não apenas o pensamento, por este último estar relacionado ao próprio contexto.
A segunda implicação dessa abordagem contextual para profissionais e pesquisadores em saúde mental e análise do comportamento é um tanto mais complexa e exige treinar e exercitar um (novo) olhar contextual para os fenômenos considerados mentais, especialmente em suas subcategorias tratadas como doença ou transtorno. No capítulo quarto da obra, o autor oferece um ponto de partida para estabelecer esse novo olhar. Em Desconstruindo o DSM, Guerin empreende uma análise crítica das definições de comportamento presentes no manual estatístico, e oferece alternativas contextuais para outras definições e interpretações.
Após oferecer uma análise da construção textual em si dos sintomas encontrados no DSM, o autor desorganiza e desconstrói as hierarquias diagnósticas presentes do DSM do ponto de vista das descrições de comportamento. O que as pessoas estão, de fato, fazendo? Essa lista aparece na Tabela 4.4 (p. 112) que oferece um agrupamento desconstruído dessas descrições de comportamento, em ordem alfabética, “para ajudar a reverter a intensa categorização aprendida no DSM” (p. 112).
Ao contemplar a extensa lista, fora da ordem implícita das compreensões oriundas das metáforas explicativas mais difundidas hoje em saúde mental, é possível começar a, tentativamente, propor contextos sociais em que cada um dos comportamentos descritos poderia ser considerado “normal” e não “patológico”. Guerin orienta seus leitores a observar possíveis efeitos ambientais e nas relações interpessoais que tais comportamentos possam ter. Que tipos de recursos são obtidos? Que tipo de alteração nas relações sociais emergem da ocorrência de tais comportamentos?
Mais adiante, os comportamentos subjacentes a todas as grandes categorias de transtornos mentais presentes no DSM são reordenados funcionalmente, em uma tentativa de direcionar o olhar do profissional para as modificações e interferências contextuais que produzem (Tabela 4.5, pp. 116-120). Por exemplo, “distanciamento de relações sociais, falta de empatia e inibição social” pode, estrategicamente, produzir ou fomentar “soluções em problemas de relacionamento por esquiva, evitação e fuga” (p. 117). Ainda, “não se importar com os direitos dos outros” pode, estrategicamente, fazer com que a pessoa que apresenta tais comportamentos “obtenha recursos sem negociação” (p. 118). É importante notar que a terminologia recursos, aqui, tem significado amplo, em termos de recursos materiais, sociais, ou ainda simbólicos. Tais recursos são definidos como produtos de relações sociais, ainda que temporalmente espaçadas do fato analisado em si.
A segunda “metade” da proposta de mudança de postura em se olhar fenômenos sob um viés contextual é construída pela ampliação da concepção de ambiente, empreendimento no qual o autor utiliza literatura de vários campos do conhecimento sociológico, antropológico, psicológico e de linguagem. O capítulo quinto, Saúde mental na modernidade, explicita condições de formação de relações sociais de especial interesse para profissionais de saúde mental, do ponto de vista das modificações desses modos de formação hoje. O autor fala de efeitos do capitalismo na formação e manutenção de relações sociais por intermédio de recursos financeiros e como isso promove, por exemplo, ansiedade em função da dependência obrigatória de um sistema sobre o qual não se tem controle algum, ou muito limitado para a maioria das pessoas (Tabela 5.1, pp. 135-139). A Tabela 5.2 (pp. 146-147) oferece um resumo de implicações para identificação de relações funcionais, considerando os aspectos específicos da modernidade em que a maioria de nós vive hoje, caracterizando tipos de relações sociais, suas modificações e consequências. Por exemplo, é um fator tipicamente mencionado desse modo de vida contemporâneo (usualmente em sociologia e outras áreas do conhecimento) que as relações sociais são hoje majoritariamente estabelecidas entre “estranhos”, por vias contratuais (sociais), com mediação financeira, e sem obrigações sociais embutidas nessas relações. Tal modificação pode, entre outros efeitos, contribuir para certos aspectos do aparecimento de transtornos de ansiedade, uma vez que o suporte familiar (ou de comunidades baseadas em parentesco) não é necessariamente presente, levando as pessoas a serem forçadas a solucionarem eventuais situações-problema “por si só”. Mas o autor é muito efetivo em mostrar que o “por si só” não acontece no mundo, e mesmo tais comportamentos encontram-se, novamente, mediados por outros indivíduos, ainda que também mediados por recursos sociais generalizados (por exemplo, dinheiro).
Em Crença e racionalidade, algumas desordens do pensamento e identidade de si (capítulo sexto), o autor aponta maneiras de interrogar fenômenos consistente e largamente identificados como “internos” de modo a produzir análises contextuais. Por exemplo, em vez de imaginar que a consistência de uma crença representa algo “dentro” do indivíduo, é possível pensar “Qual o valor [em termos de recursos sociais] de mostrar-se consistente em conversas e relações sociais?; O que acontece em conversas e em relações sociais quando nos mostramos inconsistentes?” (p. 159). Tais questionamentos se estendem também para outras características, como a identidade, que o autor também posiciona como estratégia social para obtenção de recursos sociais e equilíbrio das relações (p. 170). Contextos para opressão social: ser mulher, pobre, ou de um contexto de refugiados (capítulo sétimo) apresenta modos específicos de funcionamento de relações sociais, e suas consequências são explicitadas para os grupos do título do capítulo. Também, em Contextos de devastação: Saúde mental indígena e colonização (capítulo oitavo), outros aspectos específicos dessas populações e comunidades são trazidos à baila, de modo que alguém trabalhando com esses grupos tem por necessidade o conhecimento dos grandes e profundos efeitos do âmbito político e histórico no comportamento considerado patológico. Por exemplo, o profissional precisa estar atento ao fato de que muitos dos efeitos da colonização nas populações indígenas foram ativamente e estrategicamente escondidos e obscurecidos da opinião pública em geral ao longo da história e ainda hoje (p. 200).
Dessa maneira, a compreensão de ambiente presente neste livro é ampla e inovadora. Ela se distancia de um certo imediatismo de influência, daquilo que é “positivisticamente” observável, e navega orientando-se pela concepção de múltiplas influências no comportamento, derivadas de estruturas sociais, grupais, étnicas, de gênero, entre outros.
Assim, a grande conclusão da obra é que comportamentos presentes em casos de saúde mental não são especiais. Não se apresentam ou se formam de maneira diferenciada daqueles que são, de outro modo, considerados normais. Ao difundir essa mensagem, Guerin dá novo fôlego para a análise de contingências, tão importante na epistemologia e na prática dos profissionais de saúde mental, e inclui variáveis típica e historicamente ignoradas na formulação das grandes generalizações teóricas acerca dos transtornos mentais. A proposta é laboriosa. Trata-se, no limite, de treinar o olhar para observar os contextos individuais e comunitários específicos para cada caso, e desafiar as generalizações diagnósticas como única explicação para o que é considerado “doença mental”.
Como o autor enfatiza em vários momentos ao longo do texto, essa tentativa de recuperação e nova proposição de análises funcionais é uma possibilidade. O livro não deve ser lido como um compêndio em que o profissional e o pesquisador encontrarão as respostas, mas maneiras de enunciar perguntas. E essas maneiras se pretendem contextuais, como proposta de incluir na descrição e interpretação do patológico mais do mundo em que as pessoas vivem, e menos de generalizações abstratas em construtos tradicionais. Será de grande valia começar a observar o surgimento de estudos fundamentados por essa perspectiva contextual, a fim de revigorar a força heurística da análise funcional e de contingências para o bem-estar humano de populações em sofrimento psicológico.
Referências
Guerin, B. (2016a). How to rethink human behavior: A practical guide to social contextual analysis. London: Routledge.
Guerin, B. (2016b). How to rethink psychology: New metaphors for understanding people and their behavior. London; New York: Routledge.
Recebido: 30/07/2017
Última revisão: 16/10/2017
Aceite final: 22/01/2018
Sobre o autor:
Guilherme Bergo Leugi: Doutor em Psicologia pela University of South Australia. Mestre em Filosofia e Psicólogo pela Universidade Federal de São Carlos. Pesquisador (PCI-DA CNPq) no Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, e associado voluntário ao Centre for Social Change, da University of South Australia. E-mail: gbleugi@gmail.com
1 Endereço de contato: Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI). Rodovia Dom Pedro I (SP-65) - Km 143,6 - Amarais, Campinas, SP. CEP 13069-901. Tel.: (19) 3746-6109.
2 Os títulos das obras, dos capítulos, bem como as passagens mencionadas no texto foram redigidos em português em caráter de tradução livre.
DOI: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v10i2.603