O DSM-V e os Efeitos da Suspensão da Ontologia
The DSM-V and the Effect of the Ontology Suspension
El DSM-V y el Efecto de Suspensión de la Ontología
Ruben Artur Lemke
Marcio Luis Costa1
Universidade Católica Dom Bosco
Tiago Ravanello
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Resumo
Este artigo apresenta uma crítica à suspensão das discussões ontológicas no DSM-V. O objetivo é defender a importância destas discussões teóricas no campo da psicopatologia através da diferença ontológica em Heidegger. Primeiro, pretende-se advertir que a suspensão de reflexões ontológicas tem por efeito a redução da experiência psicopatológica e a desvalorização da linguagem e da clínica em prol da supervalorização dos suportes materiais. Segundo, que a ausência de tais discussões não impede que uma ontologia implícita esteja operando e produza efeitos sociais. Para ilustrar esta questão, é abordada a noção do deficit de substância a ser restituída, que é a matriz basilar das hipóteses etiológicas orgânicas. Conclui-se que essa matriz convoca uma ética no estilo de uma essência a cumprir, a qual se acopla à lógica de consumo em uma sociedade que exige desempenho.
Palavras-chave: saúde mental, ontologia; diagnóstico, DSM
Abstract
This article presents a critique to suspension of the ontological discussions in the DSM-V. The objective is to defend the importance of these theoretical discussions in the field of psychopathology using the Heidegger’s ontological difference. First, it is intended to warn that the suspension of ontological reflections has the effect of reducing the psychopathological experience and the devaluation of the language and the clinic in favor of overvaluation of the material supports. Second, the absence of such discussions do not prevent an implicit ontology from operating and producing social effects. To illustrate this question, it is addressed the notion of the substance deficit to be restored, that is the basilar matrix of the organic etiological hypotheses. It is concluded that this matrix convokes for an ethics in the style of an essence to be fulfilled, that is coupled with the logic of consumption in a society that demands performance.
Keywords: mental health, ontology, diagnosis, DSM
Resumen
Este artículo presenta una crítica a la suspensión de las discusiones ontológicas en el DSM-V. El objetivo es defender la importancia de estas discusiones teóricas en el campo de la psicopatología a través de la diferencia ontológica en Heidegger. En primer lugar, se pretende advertir que la suspensión de reflexiones ontológicas tiene por efecto la reducción de la experiencia psicopatológica y la devaluación del lenguaje y de la clínica en favor de la sobrevaloración de los soportes materiales. Segundo, que la ausencia de tales discusiones no impide que una ontología implícita esté operando y produzca efectos sociales. Para ilustrar esta cuestión, se aborda la noción del deficit de sustancia a ser restituida, que es la matriz basilar de las hipótesis etiológicas orgánicas. Se concluye que esta matriz convoca una ética en el estilo de una esencia a cumplir, a cual se acopla a la lógica de consumo en una sociedad que exige desempeño.
Palabras clave: salud mental, ontología, diagnóstico, DSM
Toda abordagem clínica comporta a necessidade de discutir as decisões teóricas de fundo que orientam suas práticas, como salienta Safatle (2007), para que não se converta em um dispositivo de adaptação social. No entanto, em diversas áreas do conhecimento, são utilizadas estratégias pragmáticas que colocam entre parênteses discussões relativas à ontologia. No campo da saúde mental, isto ocorre com os manuais diagnósticos estatísticos2. Estes manuais têm como objetivo criar categorias que permitam uma linguagem comum entre os profissionais da saúde mental, delimitando parâmetros confiáveis para a condução de pesquisas científicas e para o estabelecimento de hipóteses diagnósticas. Embora passem por uma crise de legitimidade, estes manuais ainda configuram o modo hegemônico de acolher o sofrimento psíquico numa estrutura conceitual que ordena as políticas públicas em seu entorno. Com suas diferentes edições ao longo de seis décadas, o DSM se tornou uma referência na psicopatologia. Quando surgiu em 1952, o DSM foi proposto como um manual ateórico, ou seja, como um sistema de classificação que se dá baseado em critérios diagnósticos estabelecidos no estudo da distribuição estatística e desvinculados de uma teoria psicopatológica. Em sua 5ª edição, assumiu uma postura transdisciplinar que acaba cumprindo a função de tornar impreciso o campo teórico no qual o sistema de classificação se inscreve. No prefácio desta edição, consta a afirmação de que é impossível uma descrição completa dos processos patológicos subjacentes aos transtornos mentais. A estratégia do manual é, partindo da distribuição estatística, apresentar a forma como se expressam os transtornos mentais, de modo que um clínico treinado possa reconhecer os critérios diagnósticos associados a estes transtornos (American Psychiatric Association, 2014).
Existem dois modelos de ordenação da racionalidade diagnóstica no campo da psiquiatria, que, de acordo com Banzato e Pereira (2014), se dividem entre um modelo de redução biológica e outro pragmatista. O primeiro trata da tentativa de encontrar uma ontologia positiva pela redução neurocientífica mapeando circuitarias neurais por meio de exames de imagem e estabelecendo relações destes suportes materiais com os quadros mórbidos. O segundo modelo é uma orientação pragmatista que ataca a essencialização do transtorno ao defini-lo como problema-alvo. Os dois modelos carregam problemas correlativos. O primeiro não é operacional, pois, apesar de oferecer um padrão de imagem para o transtorno, na prática clínica corriqueira não é viável a realização do repertório de exames para o estabelecimento de um diagnóstico. O segundo não prescinde do uso da medicação, que é o vetor de confirmação do diagnóstico. Neste sentido, os dois modelos se encontram na prescrição medicamentosa, que é um suporte material que oculta os saltos realizados sobre as questões ontológicas, e, como pretendemos argumentar, a não discussão da ontologia implica seu retorno na forma de um acordo tático não discutido sobre o uso da medicação.
Tal problemática tem sido delineada por diferentes linhas de análise que, em última instância, acirram o distanciamento entre abordagens biologizantes e os diferentes matizes que configuram as ciências do comportamento (Brendel, 2006). A situação torna-se uma questão que demanda a análise dos contextos políticos subjacentes na medida em que as evidências que poderiam afirmar o transtorno mental como um objeto natural delineável, por meio de uma ontologia positiva, têm sido paulatinamente colocadas em suspeição. Diante da fragilidade do discurso da causalidade orgânica, coloca-se em perspectiva a possibilidade de as diferenças culturais serem os pontos cruciais para a definição dos padrões de normalidade e anormalidade, extrapolando os padrões que definem a racionalidade médica (Gaines, 1992).
O diagnóstico e a sua racionalidade fundante figuram-se como um ponto nodal das discussões acerca do campo da psicopatologia e das intervenções clínicas em seus diversos âmbitos. Se a diagnose depende da matriz cultural, das práticas discursivas e do contexto social de sua narração (Kirmayer, 2005), se as categorias diagnósticas se apresentam clinicamente como tipos interativos que produzem efeitos retroativos em função de sua classificação (Hacking, 2000), convém discutir o papel assumido pelos modelos categoriais de classificação enquanto práticas culturais que extrapolam o campo da ciência stricto sensu (Shorter, 2013) e que são inseridos no contexto de uma lógica de apropriação de problemas sociais pelo campo da racionalidade médica (Conrad, 2007). Disso, resultam problemas de ordem prática que vêm sendo alvo de uma série de denúncias em diferentes âmbitos, tais como as críticas quanto à (1) confiabilidade do diagnóstico em função de mudanças de contexto ambiental (Cooper, 1972); (2) universalização, globalização, ou ainda imposição dos valores americanos para a constituição dos parâmetros de saúde, doença e normalidade, convertendo a psiquiatria numa etnopsiquiatria contemporânea (Waters, 2011); (3) inflação diagnóstica e comercialização das doenças (Frances, 2013); (4) submissão da racionalidade diagnóstica às necessidades econômicas da indústria fármaco-química e correlativa imposição de modelos de pesquisa que reduzem o sofrimento humano a um mero problema tecnológico (Sadler, 2013); e, por fim, denúncia dos laços supostamente perniciosos entre a força-tarefa de delimitação dos transtornos psíquicos com as indústrias farmacêuticas, na forma de consultorias, parcerias e financiamentos de pesquisa (Cosgrove & Krimsky, 2012).
Dentro deste contexto, o objetivo deste artigo é problematizar a estratégia de suspensão da ontologia que implica a posição multiteórica do DSM. Pretendemos argumentar que esta posição não explicita os lugares teóricos com os quais o sistema de classificação dialoga e que a adoção do modelo estatístico oculta o fato de que estes manuais diagnósticos contemplam, de modo não expresso, um corpo teórico constituído por um conjunto de hipóteses biológicas que funcionam de modo complementar às categorias diagnósticas criadas. Este conjunto de hipóteses apresenta tanto uma proposição sobre causa como uma definição sobre a natureza do sofrimento psíquico, ambas assentadas no paradigma biológico. Essa racionalidade diagnóstica oblitera o fato de que, entre as categorias nosográficas criadas e as teorias etiológicas de cunho biológico, existe um salto, o qual é transposto pelo fator político do poder das instituições e da autoridade profissional. O efeito deste salto é a manutenção de um discurso sobre a doença mental que provém de um reducionismo ontológico e que extrapola o campo da clínica médica. Propomos utilizar o modelo crítico da diferença ontológica em Heidegger (2012, 2017) para defender a importância que a discussão da ontologia adquire para a manutenção da especificidade do fenômeno psicopatológico como experiência fundamental à existência humana, para sustentar o valor da linguagem e da situação clínica e para evitar a redução ontológica a partir das nossas reduções metodológicas.
A Estratégia do DSM e sua Assimilação Social como Objeto da Cultura
A revolução no campo da psiquiatria, que representou o DSM, baseou-se em dois princípios fundamentais. O primeiro é transformar a psicopatologia em um descritivismo de sinais e sintomas, evitando, deste modo, pronunciar-se sobre a etiologia; o segundo princípio é o uso da estatística como método. Estes dois princípios conjugados sustentam sua proposição de ateorismo (Dunker, 2014a). Mas, se os manuais diagnósticos estatísticos fossem ateóricos, de que modo eles poderiam orientar uma decisão terapêutica? O DSM não é ateórico, mas funciona de modo complementar às hipóteses de etiologia orgânica. As categorias diagnósticas são criadas pelo estudo da distribuição estatística dos sintomas dos quadros mórbidos identificados (American Psychiatric Association, 2014), e a prescrição medicamentosa se baseia na evidência estatística de efeitos superiores ao placebo de certas substâncias sobre os sintomas que definem estas categorias diagnósticas (Dunker, 2014a). Existe uma relação muito próxima entre estas duas dimensões. A crítica mais comum aos manuais diagnósticos estatísticos é, de acordo com Zorzanelli, Dalgalarrondo e Banzato (2014), a de se propor como ateórico, mas fomentar na prática uma psiquiatria reducionista no sentido biológico. Embora o DSM se proponha ateórico, no texto introdutório da 5ª edição, é oficialmente assumida uma postura pluriteórica. No entanto este pluriteorismo funciona nos moldes de uma integração de informações complementares na medida em que elas possam se submeter ao paradigma biológico de base. No texto do prefácio está implícita a intenção de integração com as pesquisas mais recentes de neuroimagem e genética, bem como a intenção de que as categorias criadas possam impulsionar as pesquisas no sentido de encontrar potenciais marcadores diagnósticos (American Psychiatric Association, 2014). No caso da psiquiatria clínica contemporânea, quando se fala de marcadores diagnósticos, almeja-se encontrar marcadores biológicos, de modo a permitir uma integração mais consistente da psiquiatria no modelo da medicina baseada em evidência.
Esta passagem da proposição de ateorismo à intenção de produzir um pluriteorismo é um reflexo do que Pereira (2014) chama de crise da psiquiatria centrada no diagnóstico operacional. Esta crise se tornou evidente com o confronto público entre as duas leituras epistemológicas da natureza do diagnóstico, a proposta pragmática do DSM-V e a abordagem estritamente naturalista defendida pelo National Institute of Mental Health (NIMH), que se materializa no Research Domain Criteria (RDoC). O essencial da crítica do NIMH é que a estratégia pragmática do DSM, de se basear em critérios convencionais e estatísticos delimitados e diretamente acessíveis, por meio de relato ou observação, seria insuficiente para inscrever a psiquiatria no registro de uma ciência estritamente médica. Ou seja, faltam marcadores moleculares que possam associar os transtornos mentais com determinada combinação entre as bases nitrogenadas do DNA, presença ou quantidade de substância neural, ou ativação de determinados circuitos neurais. A crítica do NIMH pode ser resumida ao fato de que falta assentar as categorias diagnósticas em uma ontologia positiva, de modo a validar biologicamente as entidades mórbidas, circunscrevendo um suporte material e definindo sua natureza e sua etiologia específica. E esta crítica fragiliza epistemologicamente a abordagem pragmática do DSM, sem que exista ainda em seu lugar outro sistema de classificação efetivamente válido do ponto de vista biomédico (Banzato & Pereira, 2014). Delimitar positivamente marcadores biológicos ainda é uma promessa não cumprida. Pode-se argumentar que existem as iniciativas de determinação de padrões de imagem de circuitarias neuronais para a identificação de processos mórbidos, que os compêndios de psiquiatria já indicam como prova da existência do Transtorno de Deficit de Atenção por Hiperatividade (TDAH). Porém, convém salientar que na prática clínica a realização do diagnóstico não é feita por imagem.
O DSM ainda é o modo hegemônico de classificar as doenças mentais e ele ainda se mantém dentro de uma estratégia pragmática de não discutir natureza e causa. No entanto a primeira utilidade clínica das categorias diagnósticas criadas é a orientação da conduta terapêutica na forma de prescrição medicamentosa. Para perceber isto, basta observar os algoritmos das guidelines. Qualquer outro uso destes manuais, referente às suas funções administrativas, é subordinado ao estabelecimento do diagnóstico pelo médico. Além do mais, quando um psiquiatra utiliza o manual, o que difere uma hipótese do estabelecimento de um diagnóstico é a avaliação posterior do efeito da prescrição medicamentosa sobre o quadro sintomático, um efeito que Coser (2003) denominou engenharia reversa. Assim, um clínico pode definir um diagnóstico como Transtorno Esquizoafetivo quando só percebeu um efeito significativo de diminuição de sintomas ao se associar ao neuroléptico um estabilizador do humor. Outro clínico pode diagnosticar um adulto que não se adaptou ao mundo do trabalho e à vida conjugal, abusa de substâncias estimulantes e de álcool e não apresenta características antissociais, como um caso de TDAH não diagnosticado na infância. O que confirmaria o seu diagnóstico é o efeito do metilfenidato sobre o comportamento deste adulto.
Dunker (2014a) afirma que, com a ausência de uma teoria psicopatológica, que possa criar um fio que amarre história de vida, sintomas e personalidade, a medicação vem a restituir a unidade perdida por meio do exame retrospectivo dos seus efeitos, criando uma sobrevalorização do diagnóstico. Uma consequência dos efeitos clínicos disso é o caráter identitário que os diagnósticos assumem, quando se pode observar a passagem de uma posição a partir da qual se diz “eu sofro de depressão” para uma posição onde se diz “eu sou depressivo”. O diagnóstico acaba ordenando discursivamente sofrimentos difusos, como as diversas modalidades de mal-estar, e reordenando uma ontologia positiva da identidade enquanto essência, logo, o diagnóstico tem promovido a reentrada pela janela da concepção de personalidade enquanto “caráter”, que foi paulatinamente excluída da racionalidade médica.
De acordo com Dunker (2014a), a supressão da categoria da neurose no DSM-III foi uma decisão teórica, a afirmação de um paradigma, que é bem ilustrada pela substituição da neurose de angústia pela categoria do transtorno do pânico, que passou a ser abordada por meio de medicações que interferem nos circuitos biológicos de luta e fuga. A hipótese da recaptura da noradrenalina foi neste momento utilizada para explicar o mecanismo da ansiedade. Posteriormente, esta mesma lógica foi expandida para a relação entre a dopamina e a esquizofrenia, na década de 1960, para a serotonina e a depressão, nos anos 1970, e finalmente a dopamina e os circuitos de prazer, na década de 1980. Em todos estes exemplos, como salienta o autor, observa-se uma mesma matriz hipotética de fundo. O transtorno é considerado um deficit de substância neural, em que a medicação entra de modo compensatório, realizando aquilo que o corpo não pode realizar por si mesmo.
A estratégia metodológica da intervenção química sobre os neurotransmissores extrapolou o campo de origem que é a orientação de uma intervenção medicamentosa. Para um psiquiatra clínico instruído, existe a evidência de uma ligação estatística entre um quantum disponível de serotonina na fenda sináptica e os estados de humor, e ele considera, a partir disto, ser possível tirar partido desta ligação para intervir na depressão prescrevendo uma substância que iniba a recaptura da serotonina da fenda sináptica. Mas a informação que é absorvida pelo tecido social é a de que a depressão é causada pelo deficit de serotonina. Este é um exemplo simples de uma inadvertida redução ontológica a partir de uma redução metodológica, em que se inscreve todo o efeito performático das práticas de nomeação, que são a demarcação de fronteiras normativas entre os entes e a criação de pontos de ancoragem para a construção de identidades culturais (Bezerra, 2014).
Autores como Banzato e Pereira (2014) abordam o tema do reducionismo ontológico por meio do conceito de reificação3. Para os autores, no tema das categorias diagnósticas, sempre existe o perigo de que o clínico confunda a “miragem de simplicidade provocada pelo instrumento com a própria realidade” (p. 40), alertando para o problema dos efeitos de reificação das categorias diagnósticas criadas nos manuais estatísticos, ou seja, o fato de elas serem tratadas como entes concretos, e não modos de representação da realidade. Os autores argumentam que esta tendência de reificação “sugere a presença de convicções ontológicas arraigadas sobre a natureza última dos transtornos mentais, acoplada a uma concepção de mundo essencialista” (p. 35).
De acordo com Gonçalves, Dantas e Banzato (2015), esta tendência de reificação sobre as categorias diagnósticas criadas comporta diversos riscos, que vão desde o impedimento de avanços científicos pela destinação preferencial de recursos para as pesquisas que utilizem estas categorias, passando pela criação de “viseiras epistemológicas” que limitam a formulação de modelos alternativos ao adoecimento mental, até os efeitos de subjetivação sobre clínicos e pacientes, que tendem a moldar suas experiências de sofrimento psíquico à imagem das categorias diagnósticas reificadas.
De acordo com Banzato e Pereira (2014), o efeito performático destas categorias incide nas formas culturais de identificação e nos modos de subjetivação do sofrimento, pois estes processos dependem da matriz cultural que regula a atribuição de significados. Se a experiência humana só adquire sentido em relação a certos marcos referenciais, mudanças nestes marcos certamente terão repercussões sobre os processos de subjetivação. Ao receber um diagnóstico psiquiátrico, o sujeito pode absorvê-lo como uma parte integrante de sua própria personalidade e utilizá-lo como ponto de referência para reinterpretar sua história e projetar seu futuro. A racionalidade presente nos manuais estatísticos rege o aparato jurídico, político e técnico que cerca o sofrimento psíquico. Ela está intimamente relacionada com o funcionamento da indústria farmacológica, uma das mais lucrativas, rege a condução de pesquisas científicas, as discussões nos tribunais no âmbito do Direito, o funcionamento dos planos de saúde e a alocação de recursos para as políticas públicas de saúde mental (Dunker, 2014a, 2014b; Bezerra, 2014); diversas instituições de saúde mental chegam a afirmar que esta lógica criou verdadeiras epidemias psíquicas4.
Nathan (1996), etnopsicanalista que desenvolveu suas teorias psicopatológicas a partir de seu trabalho terapêutico com imigrantes na França, afirmou que nas sociedades ocidentais, que operam com uma desconexão dos elos entre o sofrimento psíquico e sua cultura, o uso da medicação é o fator que pereniza a junção entre a pessoa e seu sintoma. Afirma que “um medicamento contém a teoria inteira que presidiu sua formação” (p. 16). De forma semelhante, Zorzanelli (2014) chama atenção para o fato de que o DSM se tornou um objeto cultural, sendo um ator fundamental da medicalização da vida. Segundo a autora, as categorias criadas por estes manuais produzem diversos impactos sociais: tornam-se uma referência cultural por meio da qual as pessoas experimentam seus sintomas, produzem marcos para o estabelecimento de limites entre o normal e o patológico, bem como para a definição de quem possui uma patologia e quem não possui, que tratamento deve ser oferecido e quem recebe benefícios da seguridade social, além de oferecer nomes para experiências que são vivenciadas como fora do comum. E, de modo muito importante, estas categorias produzem uma linha decisória sobre que formas de sofrimento devem ser legitimadas, ou seja, as formas de sofrimento que são dignas de cuidado e as que não são. Como afirma Dunker (2011), todo diagnóstico reconhece, nomeia e sanciona formas de vida.
De acordo com Zorzanelli (2014), como efeito da publicação destes manuais, há uma diluição do limite entre saber especializado e leigo, gerando, para além dos diagnósticos, formas de sensibilidade ao sofrimento psíquico. Cada uma das edições destes manuais fornece uma amostra das ideias médicas vigentes em psiquiatria e uma forma de produzir ideias sobre doença, diferença e normalidade. Os manuais estatísticos permitem compreender os valores culturais em jogo nas sociedades neoliberais e as teorias médicas que estão subjacentes, sendo que estas teorias contêm concepções de normalidade e atribuições de causalidade.
Zorzanelli (2014) defende a importância de se compreender o DSM como um objeto de nossa cultura. O que quer dizer que é preciso remetê-lo ao seu contexto cultural mais amplo para compreender a que tipo de exigência social responde, pois a mercantilização das doenças não se dá dentro de um vácuo sociológico. Afirma também que não é possível compreender os efeitos de inflação diagnóstica5 apenas a partir da psiquiatria, mas que é preciso compreender os valores culturais que permeiam a adoção destas estruturas médicas. A racionalidade presente nesta articulação entre os manuais estatísticos e as hipóteses de etiologia biológica acabou criando uma saída compensatória às exigências feitas pelas sociedades neoliberais, e isso teve como efeito colocar o sofrimento psíquico no circuito do mercado de consumo de produtos.
Ehrenberg (2010) pode nos ajudar a compreender a quais valores culturais esta racionalidade diagnóstica vem responder. Na esteira da apropriação social do DSM como objeto de cultura, está o uso massivo dos psicofármacos numa lógica de consumo. Em primeiro lugar, o autor afirma que vivemos num período em que não há tolerância para erro e imprevisibilidade e que existe um verdadeiro culto à performance. Realizando suas análises na sociedade francesa, a partir do que chamou de aventura empresarial, o autor demonstra como a generalização da figura do empreendedor penetrou no tecido social. A competição se tornou o paradigma que orienta as relações sociais, de modo semelhante ao esporte de alto nível, regido por regras igualitárias de competição, em que só os melhores vencem. Os executivos adotam como modelos ideais o esportista e o aventureiro contemporâneo, que são transformados em paradigma moral, no qual vencer é o princípio fundamental.
Este modelo do empreendedor, de acordo com o autor, é o grande fator de singularização dos indivíduos, em uma época em que não se encontram mais referências simbólicas coletivas, como a religião e a política. Pois embora possamos observar um recrudescimento do fundamentalismo religioso no Brasil, mesmo esse recrudescimento vai ao encontro do que Ehrenberg (2010) afirma. Como é possível observar, no fenômeno da doutrina da prosperidade, a religião continua sendo uma estrutura organizativa das subjetividades. Mas, neste tipo de teologia, as subjetividades não se estruturam pela via da transcendência, mas pela via de um forte apego identitário, que adquire uma forma totalitarista, pois engloba diversas esferas da vida, como o trabalho e o consumo. Nisto se pode depreender uma forte influência dos valores do neoliberalismo, em que a religião assume a face de uma teologia da prosperidade e em que o sucesso profissional e a aquisição de bens são tanto signos do desempenho individual quanto sinais de que a vida religiosa está bem encaminhada. Neste sentido, essa observação estaria ainda de acordo com o autor no que se refere ao esvaziamento de valores transcendentais. Com a perda destes valores, não resta alternativa senão se lançar no jogo da concorrência. Com a diluição das posições hierárquicas, a trajetória é aberta para cada um se tornar alguém, por meio de suas competências. O imperativo moral é que todos têm o dever de empreender, de se construir por conta própria, mediante suas competências, e o sucesso individual é o modo hegemônico de participação do indivíduo na sociedade.
Tanto as entidades criadas pelo DSM como o uso de psicofármacos extrapolaram o território restrito da clínica psiquiátrica. Ehrenberg (2010) descreve a participação da lógica da competição nesta situação, em que os medicamentos assumem uma função de integração ao mundo do trabalho e ao corpo social. Assim, no mundo das corporações, a medicação é utilizada para “aliviar o peso da responsabilidade quando ela se torna muito pesada” (p. 143). Os fármacos assumiram um valor de integração no desamparo gerado pela lógica de um paradigma em que gestores buscam o ponto matemático do erro zero, e isto numa lógica de competição na qual ser posto para o lado de fora equivale a deixar de existir.
Ehrenberg (2010) toma como exemplo, no mundo das corporações, formas de organização do trabalho que apelam mais para as competências individuais do que ao ritmo de produção e que trazem enormes exigências aos trabalhadores sem o devido reconhecimento social e monetário. É o “paradigma do peso da responsabilidade para os operários de base” (p. 163), que suportam todo o peso antes assumido pela hierarquia sem um anteparo simbólico para responder a isso. Do mesmo modo, no campo das relações afetivas, podemos perceber os efeitos da solidão produzida quando a competição se torna o medidor das relações: o outro figura como padrão de medida, polo de uma relação de concorrência, de confronto ou de competição. O outro é negado em sua alteridade e reduzido a um ponto geométrico, em relação ao qual nos medimos e nos diferenciamos sem outro critério de hierarquização, exceto essa relação concorrencial, à semelhança da competição esportiva (Ehrenberg, 2010, p. 169).
Han (2017) também chama atenção para este fenômeno social. Argumenta que a cultura atual de comparação constante, que tem como parâmetro de partida o eu de cada um, acaba por abolir a relação das pessoas com a alteridade, pois a tendência da sociedade de consumo é abolir a relação com o outro na dimensão negativa de sua diferença em favor da positividade de diferenças consumíveis. Essas positividades consumíveis tratam daquilo que no outro cada um pode reconhecer em si.
Ehrenberg (2010) relaciona estes fatores com a elevada incidência de depressão em nossos tempos e o uso generalizado de psicofármacos com o imperativo da concorrência, pois as medicações, além de seus usos terapêuticos, tornaram-se uma estratégia artificial de enfrentar a concorrência quando os modos naturais falseiam. O imperativo de vencer e a dinâmica depressiva da superadaptação estão associados ao consumo em massa de psicotrópicos, na medida em que estes oferecem ao mesmo tempo um conforto ao peso da liberdade e um meio de multiplicar a resistência física e emocional. Han (2017) também afirma que o sujeito em busca de sucesso se atola no solo da depressão. Para este sujeito, os resultados funcionam como um espelho que ata o sujeito à sua imagem, produzindo o “sujeito narcisista do desempenho” (p. 11). Wendling e Coelho (2016) acrescentam a este registro do culto à performance a exigência de ser feliz com a máxima eficácia. O desamparo e o imperativo do erro zero em nossa sociedade produzem uma recusa sistemática dos signos da falta. Esta recusa demanda soluções pragmáticas que neutralizam o campo da incerteza e da imprevisibilidade. A solução contemporânea está centrada nesta lógica que vai da classificação nosográfica pragmática à prescrição de um medicamento. Este fenômeno cultural está assentado em um discurso ontológico sobre o sofrimento psíquico.
Redução Ontológica e o Efeito Performático dos Manuais Diagnósticos Estatísticos para os Transtornos Mentais
A psiquiatria contemporânea optou por colocar entre parêntese discussões ontológicas referentes à psicopatologia e buscou construir seus modos de intervenção seguindo um modelo de nosografia semelhante ao das ciências naturais. Colocar entre parêntese é o tipo de estratégia que produz uma aparência de solução a difíceis problemas que deveriam continuar no horizonte do pensamento de clínicos e pesquisadores. Além de retirar as questões sobre causa e natureza do lugar de balizadores das discussões, esta estratégia pragmática encobre a presença de uma série de problemas. Aqui gostaríamos de discutir os seguintes: 1) a redução de uma experiência fundamental à existência humana, que é a experiência psicopatológica, 2) a desvalorização da linguagem e da situação clínica em prol da supervalorização da intervenção nos suportes materiais, e 3) a redução ontológica a partir da necessária redução metodológica.
1) O primeiro problema, é que as racionalidades diagnósticas6 contemporâneas no campo da psiquiatria têm em comum a necessidade de, ao delimitar uma entidade mórbida específica, encontrar algum meio positivo de confirmar a presença da entidade através de marcadores moleculares, para poder, assim, considerar-se em pé de igualdade com outros campos da medicina. Mesmo a estratégia pragmática de suspensão das discussões teóricas do DSM e CID guarda a esperança de encontrar este marcador no futuro. Mas Pereira (2000) alerta para o fato de que a insuficiência dos conhecimentos biológicos para sustentar tal promessa não é o único problema. Uma questão anterior a esta é se os modelos das ciências naturais são adequados para descrever os fenômenos psicopatológicos. Ambos os modelos, segundo o autor, baseiam-se em algoritmos de decisões técnicas e abrem mão da escuta do sujeito em sua história e singularidade, na compreensão do fenômeno psicopatológico. O autor pergunta:
. . . ao se elaborar uma nosografia psiquiátrica segundo um jogo de linguagem exclusivamente biomédico, sem se recorrer a qualquer registro da subjetividade do paciente nem à contextualização linguística e histórico cultural das manifestações clínicas, não se estaria descartando justamente o plano psicopatológico do padecimento psíquico? (Pereira, 2014, p. 1041).
Esta pergunta é fundamental, porque a especificidade epistemológica da psicopatologia não permite enclausurá-la numa totalidade, desconsiderando a dimensão de abertura do fenômeno psicopatológico. A palavra padecimento, por sua raiz latina, remete à ideia de “estar aberto”. Heidegger (1999) relaciona o espanto dos gregos ao páthos, que remonta a palavra grega páskhein, que significa suportar, aguentar, deixar-se levar, deixar-se convocar por. Páthos se refere, então, aos singulares modos de disposição para abertura. A abertura, de acordo com Heidegger (2017), é o que há de mais originário na existência humana, sendo o seu fundamento essencial.
Tratar o homem no mesmo plano que os demais entes do interior do mundo seria desconsiderar esta dimensão fundamental da abertura. Heidegger (2017, pp. 33- 34) afirma:
. . . o existir humano em seu fundamento essencial nunca é apenas um objeto simplesmente presente num lugar qualquer, e certamente não é um objeto encerrado em si. Ao contrário, esse existir consiste em “meras” possibilidades de apreensão que apontam ao que lhe fala e o encontra e não podem ser apreendidas pela visão nem pelo tato.
Ao abordar o fenômeno psicopatológico como um objeto natural, a psiquiatria obtura qualquer plano de diferença ontológica entre o homem e os demais entes do interior do mundo. O modelo da diferença ontológica é a proposição defendida por Heidegger de que entre o ser e o ente há uma diferença fundamental. Heidegger (2017) afirma que há dois tipos de fenômenos. Os fenômenos perceptivos, que se denominam fenômenos ônticos, e os fenômenos não perceptivos, que são os propriamente ontológicos. Assim, por exemplo, uma pedra seria um fenômeno ôntico, e o existir desta pedra, ou seja, o fato de ela existir no sentido absoluto, um fenômeno ontológico. No âmbito da diferença ontológica, o ente é pura presença, tudo aquilo que subsiste, que pode se tornar por nós conhecido, tudo acerca do que podemos discorrer sobre como opera como causa ou como opera como efeito (Heidegger, 2012). Aos objetos do mundo, desde Aristóteles (Metafísica, Livro Z [2001]) os cercamos com caracteres ontológicos denominados categoriais, que pertencem ao modo de ser do ente do interior do mundo.
E o que é o ser? O ser é ao mesmo tempo o que está mais longe e o que está mais perto de qualquer ente. Segundo Heidegger (2012, p. 37 [grifo do autor]), não se pode determinar o ser cercando-o como um ente: “O ser não pode ser derivado por definição de conceitos superiores e não pode ser exibido por conceitos inferiores. . . . ‘ser’ não é algo assim como um ente”. Cada vez que usamos o verbo ser, como quando afirmamos que algo é, como no exemplo, a pedra [é] inerte, nós nos movemos em um vago entendimento do que significa o [é], mas não somos capazes de fixar conceitualmente o que quer dizer [é] em sentido absoluto, como condição de algo que possa ser secundariamente predicável.
O manter aberto desta abertura que coloca o existir humano em relação com o ser é definidor do modo de existência deste ente que somos, cada um de nós, em cada caso, e que Heidegger (2012) denomina de Dasein (ser-aí). Deste modo, o homem sustenta a abertura da diferença entre o ser e o ente. Por este motivo, as categorias ontológicas tradicionais que são utilizadas para descrever os demais entes não servem para abordar o Dasein. O autor propõe que a constituição do modo de ser do Dasein seja abordada pelo que denomina de existenciários, que não servem para pensar a subsistência de um ente. O Dasein, por sua essência, é capaz de perguntar pelo sentido do ser. Por isto o homem está dentro do campo de ressonância do ser, pois habita pela linguagem sua zona de vizinhança (Heidegger, 1991).
Heidegger (2012, p. 59) afirma: “É próprio deste ente, com seu ser e por seu ser, o estar aberto para ele mesmo. . . . O ser ele mesmo, em relação ao qual o Dasein pode comportar-se e sempre se comporta desta ou daquela maneira, é por nós denominado existência”. Deste modo, entendemos que tratar da psicopatologia com uma linguagem exclusivamente biológica, que é de certo modo herdeira das categorias aristotélicas, é desconsiderar toda a singularidade do fenômeno psicopatológico e tratar o homem no mesmo plano que os demais entes do interior do mundo, desconsiderando sua posição transcendental. Ou seja, negando qualquer diferença ontológica ao passo que se ignora a importância da experiência do páthos para o mundo dos homens. Basta observar a importância ontológica que Heidegger (2012) concede ao fenômeno da angústia, como o fenômeno que permite ao Dasein se apropriar resolutamente de uma existência autêntica.
Como afirmam Bonzato e Pereira (2014, p. 35), a “província do mental é indissociável do que poderíamos denominar de núcleo da experiência humana”. Reduzir o sofrimento psíquico a um conjunto de sinais e sintomas organizado numa apresentação temporal e suas correspondentes hipóteses orgânicas remete a um modelo de intervenção que, como afirma Dunker (2004b, p. 96) promove “deserções do sujeito diante de seu sofrimento”. Afinal, o que pode alguém fazer se estiver colocado em uma situação passiva diante da química de um cérebro que o domina? Este tipo de redução promove o que Szasz (1991, p. 1.574) denomina de a “negação institucionalizada da natureza trágica da vida”.
2) Isto nos leva ao segundo problema: tratar a psicopatologia em uma linguagem estritamente biomédica coloca toda a ênfase nos suportes materiais, tanto naquilo que concerne às hipóteses etiológicas quanto ao que concerne aos intercessores terapêuticos. A ênfase nestes suportes tem como consequência o esvaziamento da situação clínica que consiste em um encontro de dois seres falantes. Como afirma Heidegger (1991), é característica de nossa era, o esvaziamento da linguagem e o declínio de seu lugar como definidor da existência humana, em prol de um uso instrumental, como mero meio de comunicação. Deste modo, a linguagem perde a sua importância ontológica e, decaída no uso impessoal do senso comum, é convertida em instrumento de dominação humana sobre o ente. Esse esvaziamento comporta um risco, segundo o autor, pois o declínio da linguagem é uma ameaça à essência do homem.
Ao utilizar uma linguagem estritamente biomédica em uma entrevista psicopatológica, cada palavra utilizada só terá algum valor, só será acolhida e processada se de algum modo puder veicular um sinal ou sintoma do grupo que pertence a uma categoria diagnóstica. As palavras que compõem o dialeto singular de cada um, em cada caso, e que, poderíamos dizer, compõem o mundo de uma pessoa perdem toda a importância neste contexto e assumem mesmo o caráter de obstrução dos objetivos propostos.
3) Como argumentamos acima, os manuais diagnósticos estatísticos veiculam de modo não expresso um discurso sobre causa e natureza dos sintomas, pois as categorias diagnósticas possuem uma relação não totalmente explicitada com as teorias etiológicas de cunho biológico. O estabelecimento destas categorias consiste na criação de fronteiras entre os entes. Um transtorno depressivo não é mais um recorte abstrato baseado numa operação estatística, mas é um ente no interior do mundo com o qual as pessoas se relacionam. O que queremos argumentar é que estes manuais produzem um discurso ontológico. Ontologia é um metadiscurso, que tem como efeito instituir e constituir mundos. Instituir quer dizer criar algo do nada, tirar um ente do silêncio através das palavras. Constituir é dar conteúdo ao criado. No caso dos manuais diagnósticos, as categorias criadas têm o poder de tirar estruturas ligadas ao sofrimento humano do silêncio através de nomes, criando um conjunto estrutural de entes. Deste modo, ao lançar luz sobre alguns aspectos da realidade desconhecida, deixa outros aspectos no escuro.
Nas sociedades liberais com sua exigência de eficácia e velocidade, as estratégias pragmáticas costumam elidir discussões teóricas que orientam as decisões tomadas que terminam por constituir determinados discurso sobre a estrutura entitativa de uma região do mundo. Entretanto elidir estas discussões não impede que as decisões pragmáticas produzam um efeito performático. Como exemplo do efeito performático dos discursos ontológicos temos a inflação diagnóstica. Diversas associações de saúde mental apontam que as categorias criadas pelo DSM produziram verdadeiras epidemias psíquicas, como o TDAH7.
Estes fenômenos ocorrem porque existe uma relação da ontologia com o poder, pois todo discurso ontológico impõe uma forma. Levinas (1980) afirma que a cultura no Ocidente é a ontologia metafísica decantada e que essa se constitui como um obstáculo para o acesso à alteridade. A metafísica não é apenas uma teoria sobre a realidade, mas é constitutiva do modo de ser do homem ocidental, do seu perceber e pensar. A ontologia metafísica é o mecanismo tipicamente ocidental através do qual assimilamos na totalidade de nossos esquemas qualquer índice de alteridade ou fratura que remeta a um fora em relação a essa bolha ontológica na qual estamos inseridos. Esta ontologia é o lugar da força e da moral, pois ela tem o poder de impor uma forma, de traçar fronteiras, ao criar um campo de realidade e excluir outros. Lembramos aqui que Zorzanelli (2014) argumenta que os manuais diagnósticos já foram absorvidos como objeto de cultura no Ocidente. De que modo a absorção deste objeto se relaciona com a metafísica decantada de que fala Levinas? As estratégias de intervenção, de modo crítico ou acrítico, bebem de alguma fonte da tradição ocidental, e o pensamento ocidental, afirma-nos Stein (1976), não é uma mera abstração, mas um conteúdo que nos determina até os dias de hoje. De certo modo, todo ocidental é um discípulo de Aristóteles e o que rege sua mentalidade é pensar o mundo pelo paradigma da substância. Na tradição aristotélica-tomista, a substância é aquilo que há de permanente nas coisas, o substrato imutável que serve de suporte a todas as mudanças acidentais e aquilo que existe por si só, como princípio radical de individuação. A metafísica da substância tem como característica formar totalidades, ou seja, formações que contêm em si tudo o que necessitam para ser o que são.
A tendência dos discursos ontológicos, por operar pela lógica das substâncias, é promover um processo de naturalização, ou seja, apaga-se a história das decisões teóricas e políticas que presidiram a delimitação de um ente ou de uma estrutura entitativa e os transforma em coisas, existentes por si só. O problema disto é que, ao formar estas totalidades, obtura-se o fato de que, ao delimitar um ente, existe muito mais vazio que identidade e que toda afirmação sobre algo comporta a negação das dimensões que ficaram de fora das decisões teóricas que delimitaram o ente. Neste sentido, Cetran (2006) alerta para a importância da explicitação da ontologia na psicopatologia, pois, ao não se explicitar a ontologia, o clínico operará com uma ontologia implícita que determina o modo de pensar e agir sobre a realidade. No campo da nosografia contemporânea, a estratégia pragmática oblitera tudo o que ficou de fora no salto produzido entre o diagnóstico e a prescrição medicamentosa.
A matriz de base das hipóteses etiológicas de natureza orgânica, como mencionado acima, é a hipótese de que falta algo que precisa ser restituído (Dunker, 2014a). Em relação ao exemplo dos transtornos depressivos, esta hipótese está incorporada no discurso social. Em nossa experiência na clínica e em dispositivos de saúde mental, é comum ouvir entre pacientes e clínicos que a depressão é causada pelo “deficit de serotonina”, além de falas do tipo: “precisarei continuar usando, pois é uma doença que nem a do diabético, para quem falta insulina”. Junto à apropriação do DSM como objeto cultural, ocorreu a apropriação da ideia do deficit como fator explicativo do sofrimento psíquico. O modelo do deficit guarda ressonância com a doutrina da substância. O deficit tem como pano de fundo uma ideia que poderia ser expressa neste enunciado: se estou psiquicamente doente, perdi minha essência e devo voltar a encontrá-la. E tanto melhor se o mercado oferece produtos que podem promover este retorno.
Como afirma Pereira (2014, p. 1.042), “ao se passar do campo da descrição biológica para o registro especificamente psicopatológico, ocorre um salto categorial que impede a redução direta da psicopatologia à alteração biológica supostamente mórbida da função”. No entanto, com o uso dos manuais diagnósticos estatísticos, a impossibilidade deste salto é ocultada no mesmo movimento em que as hipóteses etiológicas orgânicas ficam sub-repticiamente estabelecidas. A consequência deste ocultamento é a passagem inadvertida do reducionismo metodológico presente nas hipóteses biológicas que orientam a conduta medicamentosa para um reducionismo ontológico. O transtorno depressivo é um deficit de serotonina. Implicitamente, foi criada uma unidade entre a classificação estatística e a prescrição medicamentosa. Neste sentido, ocorre uma naturalização, que oblitera qualquer compreensão relativa à historicidade da construção da categoria diagnóstica.
Considerações
A estratégia pragmática de suspender as discussões sobre questões de ordem ontológica, como causa e natureza, permite que o uso instrumental de uma redução metodológica se converta, inadvertidamente, em um reducionismo de ordem ontológica. Negar a discussão ou a existência de um discurso ontológico não impede que uma ontologia implícita esteja operando e venha a ter efeitos performáticos. Pelo contrário, uma ontologia implícita e irrefletida tem a tendência de tomar características de totalidade. No fim, nossas palavras, nossos códigos e nossos métodos constituem nosso mundo. Além do mais, toda ontologia demanda uma ética e esta relação entre ontologia e ética precisa ser explicitada. A matriz de base das hipóteses biológicas é a do deficit de uma substância que deve ser restituída. Poderíamos ainda argumentar que, mesmo quando parece se tratar de excedente a ser extirpado, ainda assim a lógica implícita é a do deficit de uma substância regulatória. Esse discurso ontológico convoca uma ética no estilo de uma essência a cumprir. Trata-se, contudo, de um tipo bem peculiar de essência a cumprir, pois não depende de nenhum trabalho de ascese do sujeito. É uma essência a se cumprir desde um intercessor externo que transcende o campo de responsabilidade do sujeito e que pode ser encontrado no mercado como objeto de consumo.
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Recebido em: 09/10/2018
Última revisão em: 08/05/2019
Aceite final: 13/05/2019
Sobre os autores:
Ruben Artur Lemke − Doutorado em Psicologia pelo Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Saúde Mental Coletiva pela Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul. Graduado em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil. Auditor dos Serviços de Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande. E-mail: lemke.ruben@gmail.com,
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4892-9308
Marcio Luis Costa − Mestrado e Doutorado em Filosofia pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), México. Graduação em Filosofia pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia da UCDB. E-mail: marcius1962@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0412-4812
Tiago Ravanello − Pós-doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria, professor associado da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: tiagoravanello@yahoo.com.br,
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-1723-9793
1 Endereço de contato: Av. Tamandaré, 6000 − Jardim Seminário. CEP 79117-900. Campo Grande, Mato Grosso do Sul, MS. Fone: (67) 3312-3605. E-mail: marcius1962@gmail.com.
2 DSM: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, da American Psychiatric Association, que está em sua 5ª versão, e o Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde, que está em sua 10ª versão e cujo capítulo 5º trata dos transtornos mentais e do comportamento. Neste artigo, centraremos as discussões no DSM, considerando que o 5º capítulo do CID tem sido historicamente uma adaptação das sucessivas edições do DSM.
3 Reificação, referente à coisa (do latim res), efeito de tornar-se atributo de uma coisa. Conceito proposto inicialmente por Marx e difundido por Lukács, refere-se ao fato de o trabalho humano se tornar atributo de uma coisa. É utilizado para descrever os efeitos sobre a subjetividade humana que é sujeitada e identificada aos atributos quantitativo, inanimado e automáticos dos objetos circulantes no mercado (Abbagnano, 2007). No contexto das discussões sobre os manuais diagnósticos, o conceito tem sido utilizado para descrever o efeito de se tomar como uma coisa concreta, um ente com existência própria, as formulações hipotéticas (Gonçalves, Dantas, & Banzato, 2015).
4 De acordo com os manifestos de Barcelona, Buenos Aires e São João del-Rei (2011) e como mostram as discussões em torno da categoria diagnóstica do TDAH.
5 Inflação diagnóstica: tratar como assunto médico questões que outrora pertenciam ao âmbito da normalidade.
6 A saber, a estratégia pragmatista do DSM-V e CID-10 e estratégia de relacionar circuitos neurais com quadros patológicos do RDoC.
7 Conforme Manifesto de São João del-Rei e Manifesto de Barcelona (2011).
doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v12i1.837