O Entrecruzamento Psicologia-Saúde via Políticas Públicas: Uma Análise Discursiva a partir das Cartilhas do CREPOP
The Psychology-Health Intertwining Through Public Policies: A Discursive Analysis from CREPOP Brochures
El Entrecruzamiento Psicología-Salud a Través de Políticas Públicas: Un Análisis Discursivo a partir de las Cartillas del CREPOP
Pablo Severiano Benevides1
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Adolfo Jesiel Siebra
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Resumo
O suposto vínculo, original e longínquo, da psicologia com a saúde não desmente o fato de a psicologia, em território brasileiro, ter laços institucionais reconhecidos com o campo da saúde somente nas últimas décadas. Assumindo que o critério para a formação desse laço são os enunciados que efetivamente alçam estatuto institucional de discursos oficiais, o escopo deste estudo consiste em examinar, sob um prisma foucaultiano, a formação de um conjunto de práticas discursivas que sobrepõem psicologia, saúde e políticas públicas. O corpus dessa investigação consistirá nas cartilhas produzidas pelo Centro de Referência em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP). Tal sobreposição acarreta um efeito duplo: a tentativa de uma metamorfose no interior da própria psicologia e sua inserção nas práticas de saúde. Mediante a recorrência a toda uma gramática jurídica-progressista, discursos psicológicos passam a funcionar como discursos de saúde e sinalizadores de um horizonte democrático e emancipado para a humanidade.
Palavras-chave: práticas psicológicas, práticas em saúde, políticas públicas, CREPOP, análise do discurso
Abstract
The supposed, original and remote link between psychology and health is no denial of psychology, in Brazilian territory, having institutional links recognized with the field of health only in the recent decades. Assuming that the criterion for the formation of such link are the statements effectively raising institutional status of the official speeches, the scope of this study consists of examining, from a Foucauldian perspective, the formation of a set of discursive practices that overlap psychology, health, and public policies. The corpus of this research will consist of the booklets produced by the Reference Center in Psychology and Public Policy (CREPOP). Such overlap has a double effect: the attempt of a metamorphosis within psychology itself and its insertion into health practices. By referring to a whole progressive-legal lexicon, psychological discourses begin to function as health discourses and signal an emancipated and democratic horizon for humanity.
Keywords: psychological practices, health practices, public policies, CREPOP, speech analysis
Resumen
El supuesto vínculo, original y lejano, de la psicología con la salud no desmiente el hecho de que la psicología, en territorio brasileño, tenga vínculos institucionales reconocidos con el campo de la salud solamente en las últimas décadas. Asumiendo que el criterio para la formación de ese lazo son los enunciados que efectivamente alzan estatuto institucional de discursos oficiales, el alcance de este estudio consiste en examinar, bajo un prisma foucaultiano, la formación de un conjunto de prácticas discursivas que superponen psicología, salud y políticas públicas. El corpus de esa investigación consistirá en las cartillas producidas por el CREPOP. Tal superposición acarrea un doble efecto: el intento de una metamorfosis en el interior de la psicología y su inserción en la salud. Mediante la recurrencia de toda una gramática jurídica-progresista, discursos psicológicos pasan a funcionar como discursos de salud y como señalizadores de un horizonte democrático y emancipado para la humanidad.
Palabras clave: prácticas psicológicas, prácticas en salud, políticas públicas, CREPOP, análisis del discurso
Introdução
Se, por um lado, no que tange à psicologia, a filiação com a saúde vem sendo constantemente enunciada enquanto um laço de origem remota, animada pela tese de que a “psicologia desde o seu surgimento esteve relacionada à saúde” (Prates & Nunes, 2009, p. 97), por outro lado, ocorre que o discurso institucional de legitimação da psicologia no interior do domínio chamado de saúde parece ainda se apresentar como algo recente no território brasileiro. Afinal de contas, foi somente no ano de 1997 que o Conselho Nacional de Saúde (CNS) reconheceu a psicologia no hall das profissões voltadas para a área da Saúde (Resolução n. 218 [CNS, 1997]). E foi também apenas em 2016 que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) institucionalizou a especialidade em saúde enquanto uma nova área de exercício dos profissionais psi (Resolução n. 3 [CFP, 2016]). Por sua vez, embora esses episódios não sejam fatos isolados no enredo que liga esses dois campos, posto que há uma gama de eventos que contribuíram para o fortalecimento desse vínculo, esses dois registros supracitados ilustram o recente estreitamento de laços entre psicologia e saúde que vem acontecendo de forma mais incisiva, sobretudo, nas últimas décadas.
Entretanto, convém esclarecer uma questão de método. Segundo Foucault (2008), a formação dessas supostas unidades (“a psicologia”, “a saúde”) não seria tributária à realidade de um objeto subjacente que desempenharia a função de fixar definitivamente seus limites e manter estável a circunscrição de suas fronteiras. Diferentemente, a formação de campos de saber constitui, fundamentalmente, uma junção de componentes heterogêneos, plásticos, maleáveis e, muitas vezes, estranhos entre si. Sua unificação resulta muito mais de um sistema ordenado por regras que são “imanentes a uma prática e a definem na sua especificidade” (Foucault, 2008, p. 52). Essas regularidades, também chamadas de regras de formação, “são as condições de existência (mas também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada repartição discursiva” (Foucault, 2008, p. 43). Com efeito, são essas regularidades – históricas e contingentes – que determinam a disposição desses regimes discursivos, assim como também seu estatuto, permitindo com que alguns sejam considerados sérios, oficiais e reconhecidos. Em suma, que estejam inscritos no verdadeiro, visto que “não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos” (Foucault, 1999, p. 35).
Desse modo, ao situarmos no plano discursivo esse movimento recente e agudo que a psicologia vem executando nos últimos anos em direção ao terreno da saúde, tal fato bem ilustra a compreensão de Foucault (2008) de que “se há unidade, ela não está na coerência visível e horizontal dos elementos formados; [mas] reside, muito antes, no sistema que torna possível e rege sua formação” (Foucault, 2008, p. 80). Assume-se, com isso, a premissa de que cada um desses arranjos historicamente datados foi regido por regularidades específicas e distintas que condicionavam sua existência, sua distribuição e seus contornos.
Em nossa atualidade, entretanto, parece que ocorre a produção de uma espécie de borramento nessas fronteiras. E isto na medida em que alguns discursos, pertencentes outrora de forma mais exclusiva ao território psicológico, passaram a funcionar também enquanto discursos (inclusive em âmbito genérico) da saúde. Trata-se, portanto, de uma determinada discursividade existente no terreno da psicologia que, para adentrar a ordem discursiva da saúde, precisou negociar os termos dessa migração, de modo que nem as regularidades psicológicas fossem completamente abolidas e nem as regras de formação das práticas de saúde fossem inteiramente extintas. Logo, diante dessa mutação arqueológica que vem se passando em nossa atualidade, este estudo se propõe a examinar, a partir de um prisma foucaultiano, as condições discursivas que permitem com que certos discursos psicológicos se enunciem, anunciem-se e funcionem como discursos da saúde.
Indicativos Metodológicos
Na esteira das problematizações anteriormente expostas, seria um equívoco insistir em uma investigação que objetivasse analisar a relação entre “a” psicologia e “a” saúde. Com isso, estaríamos (re)afirmando que esta relação dar-se-ia como uma espécie de conexão entre bloco de solidez já constituída e de forma já desenhada. Poderíamos, a título de mea-culpa, ainda insistir no seu aspecto múltiplo, plural e diverso de cada um dos campos. Entretanto, a linguagem nos trairia e denunciaria a imagem de pensamento da (re)cognição que subjazeria ao nosso empreendimento – isto porque, ao afirmar que estudaríamos as diversas práticas discursivas no campo “da” psicologia e “da” saúde, estaríamos com um braço apontando a diferença e com o outro reabsorvendo a diferença na unidade da representação (Schopke, 2004). Efetivamente, o que existe são tanto “práticas discursivas psicológicas” quanto incontáveis “práticas discursivas de saúde”, sendo difícil assegurar que a junção de cada uma conseguisse formar uma massa consensual de conhecimento sob o esteio do termo psicologia ou do vocábulo saúde. Por isso, o corpus dessa investigação se restringirá a um recorte bastante específico dessa superfície discursiva existente no domínio psicológico que apresenta essa dupla condição.
Assim, para essa tarefa, delimitamos enquanto materialidade algumas referências produzidas pelo Centro de Referência Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas. Conforme assinala Barros (2014), o âmbito das políticas públicas, nas últimas décadas, alcançou significativa relevância para o campo psi, sobretudo no cenário brasileiro, convertendo-se “em grande atrator de trabalhadores sociais, dentre os quais os profissionais de psicologia” (p. 157). Nesse sentido, esse órgão emerge enquanto um importante instrumento de qualificação e orientação do exercício profissional da categoria, assumindo o encargo de formular e socializar conteúdos – legitimamente qualificados – a respeito das práticas psicológicas, especialmente quando pensadas em relação às políticas públicas (Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas [CREPOP], 2017; Passone & Perez, 2013). Entre os mais diferentes documentos produzidos por esta instância, selecionamos cinco impressos voltados para a temática da saúde e que são considerados, também, os marcos lógicos e legais para os profissionais psicólogos atuarem nessa área – são eles: Referências Técnicas para a prática do(a) psicólogo(a) nos programas de DST e aids (CREPOP, 2008a), Saúde do Trabalhador no âmbito da Saúde Pública: referências para a atuação do(a) psicólogo(a) (CREPOP, 2008b), Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial (CFP, 2013a), Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) em Políticas Públicas sobre Álcool e outras Drogas (CFP, 2013b), Senhoras e senhores gestores da Saúde, Como a Psicologia pode contribuir para o avanço do SUS (CFP, 2011). Outro aspecto importante desses textos reside no fato de que todos eles estão submetidos ao Ministério da Saúde, entidade majoritária responsável pelas ações em saúde pública do país. Em meio a isso, vale observar ainda que essas produções aglomeram uma série de enunciados heterogêneos que, apesar de se situarem em campos distintos (epistemológicos, políticos, históricos, jurídicos), têm certas propriedades que são acionadas para a composição da narrativa que endossa a presença dos discursos psicológicos no âmbito da saúde.
Por fim, cumpre esclarecer também que o conjunto de estratégias analíticas operadas nesses impressos não terão o caráter totalitário, empreendendo algo como uma exegese dos documentos, com o propósito de esgotar todas as suas possibilidades de análise; nossa pretensão não consiste em falar “a” verdade dessas publicações, mas, sob um ponto de vista mais micro, falar “da” verdade dessas publicações. Para a ordenação dessa etapa, optamos por não separar as regularidades em tópicos, sendo anunciadas à medida que o próprio encadeamento argumentativo impelia. Assim, o resultado a seguir irrompe como uma das várias possibilidades de construção que o estudo desses documentos poderia apresentar, mas com a especificidade de ser regido por um tipo de leitura que “procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações” (Foucault, 2008, p. 7).
Dos Temas às Tramas: Decompondo as Narrativas do CREPOP
Estabelecer-se na ordem discursiva da saúde impeliu uma mobilização significativa por parte de determinada parcela do campo psi, visto que atender a todos os critérios exigidos para a sua inscrição requisitou um esforço e certas concessões que não são todos os saberes que estão dispostos a fazer. Para tanto, a psicologia brasileira precisou ser outra, mas não completamente diferente a ponto de não conseguir mais ser reconhecida; tratava-se, apenas, de produzir uma outra versão de si mesma. A questão era evidenciar que, se até então recaía sobre a psicologia a responsabilidade por equívocos e deslizes em seu passado, tais elementos teriam permanecidos tão somente enquanto lição amargamente aprendida.
Em vista disso, uma das primeiras obrigações que parece se impor para a realização dessa empreitada consiste em publicizar “a construção dessa outra Psicologia [agora] comprometida com uma prática transformadora e crítica” (CREPOP, 2008b, p. 9). É preciso, portanto, anunciar essa boa nova. Mas não para todos, vale sublinhar. Ainda que estes textos sejam acessíveis a quem tiver interesse, seu enunciado direciona-se, fundamentalmente, para um público específico: aqueles senhores e senhoras gestores da Saúde que carecem de conhecimento a respeito de como a psicologia pode contribuir para o avanço do SUS (CFP, 2011). Trata-se, então, de conferir visibilidade a essa “nova etapa na construção da presença social da profissão de psicóloga(o) no Brasil” (CFP, 2013a, p. 19), demarcando nitidamente o papel do psicólogo na realidade brasileira, bem como a relevância da sua prática na implementação e na consolidação de políticas públicas de saúde no Brasil. Sob a égide desse arranjo, a psicologia despontaria e se converteria em um dispositivo capaz de contribuir tanto na “promoção da saúde, da dignidade e – por que não? – da realização humana [quanto] na melhoria das políticas públicas e no avanço das garantias dos direitos humanos” (CREPOP, 2008b, pp. 10-11).
No entanto, se a primeira urgência foi mostrar-se de um outro modo e fixar uma tarefa para si a partir dessa outra conjuntura, em seguida, a questão parece se inclinar para o fato de que a nomeação da psicologia para certas funções e sua inscrição em determinados campos não consistem em algo aleatório ou arbitrário, como o caso da saúde. Tal situação seria decorrente de um processo orgânico, em que, “ao longo das décadas de atuação nesse campo, a categoria vem sendo convocada a debater e defender a Política Pública de Saúde” (CFP, 2011, p. 7), fruto do envolvimento da psicologia, nos últimos anos, “nas questões mais candentes da sociedade contemporânea, buscando contribuir para seu enfrentamento e solução” (CFP, 2013b, p. 68). Por conta dessas articulações, teria sido possível desenvolver uma prática comprometida socialmente com a realidade social do país, “com especial destaque ao seu compromisso com a garantia da promoção e da atenção integral à saúde como política pública” (CFP, 2013a, p. 76).
Dessa forma, se existe a prerrogativa de esboçar algumas discussões a respeito de certas regiões do domínio da saúde, a psicologia enuncia que tal fato nada mais é do que um efeito de esses contextos já apresentarem “tradição na Psicologia; abrangência territorial; existência de marcos lógicos e legais e o caráter social ou emergencial dos serviços prestados” (CFP, 2013b, p. 12). E não somente ela, mas todas as áreas até então referidas pelos documentos oficiais, em maior ou menor grau, passam a serem descritas com algum tipo de conexão com esta disciplina. A formulação desses documentos torna-se, curiosamente, também um instrumento publicitário para expor essa outra versão da psicologia, exibir suas conexões, mostrar ao público as bases democráticas que as sustentam e indicar que “a história da Psicologia no Brasil se confunde com a própria história do país” (CFP, 2011, p. 10). Com efeito, opera-se uma espécie de superposição tendente à identificação entre a psicologia, a esfera dos direitos e as garantias legais existente nas políticas públicas. Assim, ao colaborar para a expansão da psicologia na sociedade, estar-se-ia, do mesmo modo, contribuindo para a promoção dos Direitos Humanos (CFP, 2013b).
Ao longo da narrativa, os marcos legais serão acionados de maneira recorrente, mas ocupando atribuições distintas. Em um primeiro momento, eles assumirão a função de matéria-prima com a qual a psicologia, nas mãos e nas vozes de seus representantes, produzirá o seu fazer. A partir desse referencial, anuncia-se a excelência dos futuros constructos, já que, por meio dele, “o psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos” (CREPOP, 2008a, pp. 20-21). Ainda que, para isso, seja impulsionado a rever concepções teóricas e construir novas metodologias, pois, se “o SUS está em processo de consolidação, cabe aos psicólogos refletirem sobre a prática e criar novas possibilidades de intervenções técnicas, assumindo seus lugares de protagonistas na história da saúde em nosso país” (CREPOP, 2008a, p. 80). Mais tarde, em um segundo momento, os princípios e diretrizes jurídico-administrativos ligados ao SUS deslocam-se do papel de base teórica para atuarem também enquanto “um campo ético que delimita os limites [sic] dos recursos teóricos e técnicos que podem ser tomados e disponibilizados” (CFP, 2013a, p. 85). Aliado a isso, observa-se também que a apropriação desse campo jurídico-legal converte-se, em certa medida, em um aspecto condicionante para a atuação no âmbito da saúde, uma vez que
[. . .] para tornar possível a inserção do profissional de saúde, particularmente a do(a) psicólogo(a), no sistema de saúde, é necessário que ele tenha como referência o sistema de saúde brasileiro, a epidemiologia e os programas de saúde (federal, estaduais e municipais), pois essas informações fornecerão elementos para decidir quais serão as áreas prioritárias e as demandas da população. (CREPOP, 2008a, p. 33)
E não apenas isso – vale destacar –, pois dependendo da área em que esteja atuando, outros conteúdos são reclamados. No contexto do programa de Álcool e Outras Drogas, por exemplo, o profissional se guiará, ainda, pelo Código de Ética Profissional do Psicólogo e pelos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), bem como pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição da República Federativa do Brasil (CFP, 2013b). Trata-se, com isso, de
[. . .] garantir o alinhamento com as diretrizes da Política para Atenção Integral a Pessoas que Usam Álcool e Outras Drogas, do Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas, do Plano Integrado de Enfrentamento do Crack, da Política Nacional de Saúde Mental, da Política Nacional de DST/AIDS, da Política de Humanização e da Política de Atenção Básica do Ministério da Saúde. E mais recentemente do Programa Crack, é possível vencer. (CFP, 2013b, p. 51)
E à psicologia, diante dessas exigências, atribui-se então a tarefa de trabalhar, desenvolver e defender os conceitos e estratégias que lhe são concedidos (seja qual for o lugar em que esteja inscrito), conferindo-lhes certa anuência, mediante a integração dessas ferramentas ao seu vocabulário e ao seu fazer psicológico. No entanto, para que seja possível desfrutar dos proveitos que esse outro arcabouço psicológico tem a oferecer, por meio da produção de um referencial que consiga enquadrar-se nesses quesitos, impõe-se uma condição ainda mais anterior: a condição de que o direito a esses serviços possa ser garantido. Por conseguinte, passa-se então a reivindicar que “o acesso à saúde e ao tratamento clínico tem que ser entendido como integrado ao campo dos direitos” (CFP, 2013b, p. 28). E passa-se, ainda, a endossar que a saúde é um dever do Estado e a defender, em última instância, que o direito à saúde consiste em “um dos pilares na constituição de uma sociedade mais justa e democrática” (CFP, 2013a, p. 67). Dessa maneira, a necessidade agora reside em evidenciar, por meio da retomada dos marcos legais, o quanto
Esse sistema se sustenta numa concepção de política pública na qual o Estado, entendido como Estado Democrático de Direito, se organiza para oferecer respostas aos problemas sociais, considerando os direitos sociais historicamente conquistados pela sociedade, dentre eles, aqueles relacionados à saúde. (CFP, 2013a, p. 45)
Por meio dessa enunciação, a aquisição da saúde e, sobretudo, a concretização das políticas públicas de saúde convertem-se em não somente uma reivindicação estatal, mas também em um pleito de caráter popular. Esse processo é redimensionado de tal maneira que passa a ser inscrito enquanto uma demanda de uma grande parcela da população, uma vez que esse direito inalienável também “diz respeito à sua qualidade de vida, transcendendo, portanto, às doenças, estando muito mais relacionado com as condições gerais de existência, como moradia, saneamento básico, alimentação, condições de trabalho, educação e lazer” (CFP, 2013a, p. 58). Com efeito, a produção do direito à saúde ganha novos autores e motivações, engendrando uma espécie de relação colaborativa na qual todos aparentam ter uma função (CFP, 2013a).
Coextensivamente a esse apelo pelo coletivo que enfatiza a questão da responsabilidade pela mobilização e reivindicação em prol do direito à saúde, há também um clamor em favor do compartilhamento das ações e do diálogo com outras disciplinas, fundamentado na premissa de que “a saúde é um campo de práticas interdisciplinares e multiprofissionais, ou seja, há um ponto comum no trabalho de todo e qualquer profissional de saúde” (CREPOP, 2008a, p. 43). Sob o esteio da valorização dos diversos olhares e práticas profissionais e da visão integral de homem, a noção de interdisciplinaridade é colocada, então, não apenas como uma aspiração ou uma escolha, mas como uma prerrogativa fundamental, constituindo-se enquanto um “componente importante para o desenvolvimento do trabalho clínico e comunitário, envolvendo a relação entre os saberes, auxiliando o processo de trabalho das equipes e garantindo a efetividade do cuidado realizado em um determinado espaço social” (CFP, 2013b, p. 48). Um tipo de interação e integração que diz ultrapassar o campo dos conhecimentos científicos, englobando também a dimensão dos conceitos, das diretrizes, das metodologias e dos procedimentos, tudo em torno de um objetivo comum. Ao se dizer em defesa da interdisciplinaridade, a psicologia reforça o entendimento de que existe uma pluridimensionalidade do homem e, com ela, a exigência de uma abordagem interdisciplinar, apoiando, assim, o argumento de que, quanto mais fracionado este homem é considerado, mais instâncias precisam ser convocadas para dar conta de uma de suas facetas (CREPOP, 2008b). Com isso, a psicologia, a um só tempo, postula a necessidade de um alargamento em relação ao conjunto de profissionais envolvidos nesse processo e se coloca como uma de suas possibilidades (mais) iminentes e necessárias (CFP, 2011).
A tentativa de alinhar-se ao universo axiológico presente nas políticas públicas de saúde conduz a psicologia não apenas à busca por se reedificar a partir dessa matriz, mas também incumbir-se quase que exatamente dos mesmos desafios que tais políticas encaram. O estreitamento passa a ocorrer mediante a formação de um esforço partilhado, agora tendo em vista questões/problemas similares, criando assim uma espécie de agenda comum – e isto o faz ora enunciado que “para ter saúde é preciso enfrentar a desigualdade social no país” (CFP, 2011, p. 10), ora afirmando que “o enfrentamento da questão da saúde está ligado à erradicação da miséria” (CFP, 2011, p. 10), ora, por fim, anunciando “garantir a atenção à saúde de todos, principalmente em relação às populações mais vulneráveis (. . .) a defesa dos direitos humanos, a luta contra todo e qualquer tipo de discriminação social” (CREPOP, 2008a, pp. 19-20). Diante dessa tarefa, a psicologia começa então a demarcar o seu posicionamento, enunciando contra o que está se opondo e em substituição a que tais recursos estão sendo propostos. Constrói-se, assim, uma narrativa progressiva e linear que reforça a tese de que as estratégias atualmente adotadas constituem a instância mais moderna e democrática, sendo o resultado de um processo de aperfeiçoamento que veio a superar outras práticas já defasadas. Por meio dessas colocações, a psicologia consegue, gradativamente, fabricar uma certa identidade a partir do que ela não é e, principalmente, em ruptura com o que ela deixou de ser.
Apesar das dificuldades e dos empecilhos que a efetivação desse empreendimento suscita, sobretudo no tocante à operacionalização da atuação do psicólogo, tal condição parece não comprometer a enunciação do potencial contributivo da psicologia em relação a esse território. Alegando ser detentora de um olhar “capaz de compreender ‘aspectos subjetivos que são constituídos no processo social e, ao mesmo tempo, constituem fenômenos sociais’, possibilitando que tais políticas efetivamente garantam direitos humanos” (CFP, 2011, p. 9), a psicologia faz questão de evidenciar sua competência em recuperar o individual existente no social e no coletivo, ocupando-se desse sujeito psicológico ante suas articulações com os aspectos multideterminantes da saúde, nos mais diferentes níveis de atenção. Desse modo, o empenho se volta agora para o anúncio do quanto a psicologia poderia contribuir na melhoria de questões como a promoção da saúde e da cidadania, tendo em vista que se trata de “um processo que capacita a população a ter controle e a desenvolver sua própria qualidade de vida, [estando portanto] diretamente relacionada com a construção da subjetividade individual e social” (CREPOP, 2008a, p. 31). Em vista disso, os psicólogos seriam então os profissionais mais bem treinados para examinar com mais propriedade esses elementos, tornando as respostas aos problemas – individuais e coletivos – ainda mais efetivos (CREPOP, 2008a).
A psicologia anuncia, então, promover uma mudança, deslocando a ênfase da doença para a pessoa, inscrevendo “a dimensão subjetiva entre todas as outras dimensões – físicas, sociais e espirituais” (CREPOP, 2008a, p. 43). Com isso, o conhecimento acerca da dimensão subjetiva (história de vida) passa a ser situado agora como uma espécie de imperativo, uma premissa imprescindível na elaboração de práticas alternativas de cuidado, pois passou-se a identificar “como ideias, crenças, sentimentos e pensamentos são parte dos processos de prevenção e tratamento que precisam ser trabalhados nas Políticas de Saúde” (CFP, 2011, p. 7). Trata-se de uma certa alteração no olhar que possibilita, tomando o âmbito do trabalho a título de exemplo,
[. . .] reconhecer a subjetividade no trabalho, o significado que os indivíduos atribuem a determinadas situações, o modo como cada um reage a partir da sua história de vida, de seus valores, das suas crenças, das suas experiências e das suas representações sobre a atividade desenvolvida. (CREPOP, 2008b, p. 28)
Por meio da leitura dos condicionantes sociais e uma ênfase no trabalhador, a psicologia diz impetrar uma outra grade de compreensão do processo saúde-doença, considerando agora aspectos envolvendo as condições e os contextos de trabalho. A enunciação de um olhar diferenciado também é encontrada e reforçada em outros espaços de atuação profissional, como no caso da política de saúde mental, das políticas relativas ao álcool e outras drogas e daquelas voltadas para a questão das DST e HIV. Nesta primeira, a psicologia diz contribuir “com a não alienação do paciente no processo saúde-doença, não exclusão de seu ambiente social, uma vez que a vida social é fator importante no processo de recuperação” (CFP, 2011, p. 10). Sua preocupação se endereça agora em “acolher e resgatar a subjetividade de cada um e, ao mesmo tempo, possibilitar a construção de redes relacionais e de convivência social” (CFP, 2013a, p. 68). Na segunda, a atuação psicológica enuncia “entender como se dá a construção de significados e da subjetividade em indivíduos que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas” (CFP, 2013b, p. 67), com a finalidade de “resgatar o sentido subjetivo deste uso para cada um dos sujeitos envolvidos” (CFP, 2013b, p. 75). Logo, se coloca como necessário “conhecer o lugar e o papel da droga na configuração subjetiva de cada um, para conduzir o processo de ressignificação individual, que pode auxiliar na construção de uma nova forma de olhar, ler, compreender e agir sobre o mundo” (CFP, 2013b, p. 75). Já em relação ao terceiro campo de trabalho, por meio do acompanhamento terapêutico, a psicologia atualiza, mais uma vez, seu comprometimento “com as singularidades, complexidades e necessidades de saúde da pessoa, e não somente com a enfermidade (aids, por exemplo) ou evento (transmissão)” (CREPOP, 2008a, p. 47).
Concomitantemente ao fato de estabelecer a dimensão subjetiva como foco de sua atuação, a psicologia passa também a situá-la em um outro nível, concebendo-a agora como um dos componentes que integram a saúde, na medida em que “ao atuar com elementos subjetivos, psicólogas e psicólogos contribuem com o entendimento da relação saúde-doença” (CREPOP, 2011, p. 7). Desse modo, o processo saúde-doença adquire, assim, outros contornos, passando a integrar “as dimensões da biologia, da ecologia, da sociologia, da economia, da cultura, da subjetividade de cada ser humano e dos valores e significações que são atribuídos à vida expressas na subjetividade social” (CREPOP, 2008a, p. 30). E a saúde, nesse ínterim, passa também a ser expressa de uma outra forma, enquanto um constructo multifatorial, “cujos determinantes incluem idade, sexo, fatores hereditários, estilo de vida individual, influências sociais e comunitárias, condições de habitação e trabalho, bem como condições socioeconômicas, culturais e ambientais” (CREPOP, 2011, p. 11). E passa, também, a ser compreendida a partir de outras esferas de sentido, posto que “conceber a saúde de forma integral e sistêmica significa pensar o homem como totalidade, um ser biológico, psicológico e sociológico, determinado por suas condições de vida, pelo momento histórico e pela cultura e pela sociedade em que está inserido” (CFP, 2013b, p. 70).
Com base nessa descrição, a noção de saúde passa a ser encarada não como algo já dado e consumado em sua plenitude, mas enquanto um projeto a ser realizado, uma conquista de cada um, da comunidade e da sociedade em geral. E a psicologia incumbe-se, doravante, do papel de “facilitadora do desenvolvimento desse projeto individual e coletivo que possibilite saúde e qualidade de vida aos cidadãos” (CREPOP, 2008a, p. 31). Tal enunciação permite que a psicologia, agora imbuída dessa atribuição, apresente-se, por um lado, capaz de “contribuir com condições específicas no movimento de conquista de saúde individual e grupal, comunitária, através da ação educativa, que envolve informação, troca, compreensão, revisão e proposta de solução para os problemas vividos por elas” (CREPOP, 2008a, p. 32), e, por outro, apta a atender também o preceito evocado pela promoção de saúde que “demanda capacitar a população a assumir controle e responsabilidade por meio de ações espontâneas e planejadas, o que requer que a informação esteja disponível a todos” (CREPOP, 2008a, p. 31). A partir dessa leitura, o uso da informação torna-se uma ferramenta estratégica nesse processo, sendo disposta como uma condição para o alcance da cidadania, pois o acesso a informações torna-se um conceito-chave na tentativa de criar possibilidades para o exercício da cidadania. A informação, portanto, converte-se no “primeiro passo para se assumir controle e responsabilidade sobre as ações de cidadania, que deverá ser seguida de reflexão e da organização individual e dos diferentes grupos que compõem o território para as ações se efetivarem” (CREPOP, 2008a, p. 31).
Mediante esse arranjo, o exercício da psicologia adquire atributos de uma “prática emancipatória, voltada ao fortalecimento da autonomia e ao empoderamento do protagonismo da população, especialmente aquela que se encontra em condição de vulnerabilidade” (CFP, 2013b, p. 65). A sua tarefa torna-se, agora, a de promover a capacidade de intervenção transformadora – pessoal e coletiva – das pessoas sobre o mundo cotidiano, com o propósito de instrumentalizar os indivíduos para o enfrentamento das situações vividas. E seu eixo de atuação, por sua vez, passa a incidir “menos sobre a cura de uma doença ou um sintoma e mais sobre a produção de subjetividades que, podemos dizer, devem se produzir como subjetividades inconformadas” (CFP, 2013a, p. 83), visto que “o bem-estar psicológico está relacionado com as vivências associadas à percepção de controle sobre a vida, à liberdade de escolha, à autonomia e à satisfação” (CFP, 2011, p. 12).
Com efeito, a ênfase dessas práticas psicológicas recai agora na produção de novos sentidos, na ressignificação do processo de adoecimento, bem como na “construção de estratégias individuais e coletivas visando a melhor qualidade de vida” (CREPOP, 2008b, p. 32). Um tipo de incitação que não se restringe à “participação, no sentido de falar sobre a doença a fim de aliviar ansiedades e angústias” (CREPOP, 2008a, p. 40), mas que procura também fomentar nas pessoas a necessidade de adotarem uma postura ativa, “na medida em que os indivíduos autônomos são protagonistas nos coletivos em que participam, co-responsáveis pelo cuidado de si e do mundo em que vivem, ou seja, co-responsáveis no processo de produção de saúde” (CFP, 2013a, p. 118). A concepção de saúde, nesses termos, amplia-se mais ainda, tornando-se, além de um direito a ser conquistado, uma responsabilidade a ser cumprida por todos. Em função disso, pergunta-se e responde-se: “quem promove saúde? Em princípio, todas as pessoas, pois todas têm o direito inalienável à saúde” (CREPOP, 2008a, p. 32).
O empenho, por parte dessa narrativa, em enunciar a imprescindibilidade da capacitação das pessoas – mediante intervenções terapêutico-informativas, de modo a habilitá-las para que consigam fazer suas escolhas devidamente embasadas e cuidar de si mesmas – apoia-se no pressuposto de que “a informação completa, o debate de valores e o apoio para que cada um decida como encaminhar a vida nunca aumentam comportamentos pouco saudáveis, ao contrário, estimulam decisões e atos bem pensados e bem informados” (CREPOP, 2008a, p. 57). Como no caso da adesão ao tratamento, haja vista que “para tratar, rigorosamente, é necessário ser livre para decidir quando e porque tratar-se” (CFP, 2013a, p. 95). Por sua vez, a não adesão ao tratamento passa a estar associada a uma falha da equipe em não fomentar suficientemente o protagonismo no usuário assistido, impedindo assim que ele adquira
[. . .] autonomia e co-responsabilidade com o seu cuidado, reconheça e valorize o saber adquirido em experiências pessoais e de vida e se esclareça sobre o processo de sua saúde e doença e as opções que se lhe apresentam para que possa participar da condução do tratamento”. (CREPOP, 2008a, p. 46)
Ante essa carência nas equipes de saúde, a psicologia enuncia então a relevância de sua intervenção nesse quadro, anunciando – como no caso do âmbito das políticas de DST e aids – que “‘em função do seu olhar diferenciado, voltado para a subjetividade do portador de HIV’, pode, ‘através de uma melhor compreensão da vida desse sujeito, propor e construir estratégias de adesão ao tratamento’” (Registro Grupo Focal/RJ como citado em CREPOP, 2008a, p. 32 ), incidindo e fomentando mudanças de atitudes e comportamentos nos três níveis de scripts sexuais: cultural, interpessoal e intrapsíquico. Essa forma de atuação, de modo semelhante, pode ser vista também na rede de “cuidados para as pessoas com transtornos mentais (que é também hoje uma perspectiva de orientação para o cuidado de outras doenças crônicas)” (CFP, 2013a, p. 82). Nela, parece existir, ainda, a incitação de que é preciso valorizar o paciente “como sujeito de direito, o que pressupõe a construção cotidiana de projetos de emancipação” (CREPOP, 2008a, p. 75). Um constructo que, apesar de atravessar a questão da subjetividade e todas as nuances que tal noção implica, parece encontrar no comportamento – em última instância – seu foro privilegiado. De sorte que, caso tomemos como exemplo as políticas de DST e aids, boa parte de seus estudos se inclina e se limita à dimensão do comportamento como eixo central de suas questões e investigações (CREPOP, 2008a).
Visibilizando as Regras de Formação: Examinando as Estratégias Discursivas
Conforme assinala Foucault (1999), “[. . .] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar” (p. 10). Desse modo, com o término da tarefa de descrever algumas regularidades discursivas que se dão nesse cruzamento em psicologia, saúde e políticas públicas, talvez consigamos despedaçar um pouco essa narrativa que parece deslizar automaticamente de um tema a outro e perfazer uma totalidade inquebrantável e repetida à exaustão. Fraturando o conjunto de temas, valores, princípios, problemas e entendimentos apresentados, mostrando-os ao mesmo tempo em sua diferença e em sua tentativa de superposição, procedendo com esta análise arqueológica que traz à superfície o enunciado, suas vizinhanças discursivas e conjunto de regularidades e transversalidades que perfaz uma formação discursiva – enfim, procedendo desta forma, não estaríamos a indicar com maior clareza os campos de luta, as relações de força e os discursos contra os quais e a favor dos quais se insurge toda esta grande agenda governamental que se desenha no terreno construído entre psicologia, saúde e políticas públicas?
Ao trazer à baila o modo como este cruzamento evoca noções como emancipação, autonomia, protagonismo, direitos humanos, cidadania, integralidade, contextualização etc., o que se pretende é menos escavar a superfície e alçar o sentido e as intenções profundas, ocultas e mascaradas destas formações discursivas. Trata-se, diferentemente, de ver mais uma vez. Ver aquilo que não costumamos ver, mas não porque está distante, e sim porque está próximo demais, colado demais aos nossos olhos e aderido demais ao nosso discurso. Ao ver de perto, portanto, vemos as divisões, rupturas e clivagens que os discursos oficiais, com estatuto institucional e ambição de univocidade, pretendem tornar invisíveis – e, assim procedendo, o que estamos a fazer é assumir uma atitude genealógica. E fazemos genealogia “pura e simplesmente porque apenas os conteúdos históricos podem permitir descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as ordenações funcionais ou as organizações sistemáticas tiveram por objetivo mascarar” (Foucault, 2010, p. 8).
Se, portanto, estamos lidando com um conjunto de discursos que se apresenta como uma totalidade indivisível, de modo que uma coisa vai puxando a outra, de modo que uma coisa não pode ser pensada sem a outra – e, ainda, se, com isso, acabamos por receber pacotes discursivos e práticos que devem ser executados sem muitos questionamentos e delongas, justamente aí age a genealogia: apresentando as clivagens que os discursos oficiais tentam esconder. Como já dissera Foucault (2012): “[. . .] o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (p. 28); e, indo no caso específico, para cortar justamente aquilo que se apresenta como uma síntese acabada entre os valores, como o pacto da concórdia ou a tábula pétrea da civilidade: “[. . .] o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (Foucault, 2012, p. 18).
Logo, a decomposição dessa narrativa permite-nos observar como um discurso, que, a princípio, reivindica relativa unidade, traz em seu cerne núcleos discursivos que se estabeleceram a partir das mais distintas regras de formação, as quais – assim sugerimos – apresentam as seguintes denominações: a) uma outra versão da psicologia; b) uma justificativa para sua filiação; c) os marcos legais; d) a fundamentação em princípios jurídicos; e) a importância da multidisciplinariedade e interdisciplinaridade; f) a urgência em adotar uma agenda comum; g) o olhar diferenciado; h) a importância do protagonismo, empoderamento e autonomia; i) a Corresponsabilização de todos pelos processos de saúde.
De um modo geral, esses núcleos, ou, se preferirmos, essas formações discursivas que se dão no cruzamento entre psicologia, saúde e políticas públicas, demonstram a existência de uma dupla tarefa por parte dessa psicologia, a saber: 1) enunciar uma transformação em si mesma para adentrar na almejada seara da saúde; 2) preservar uma especificidade que permita com que ela reivindique um espaço seu na ordem discursiva da saúde. No entanto, tal empreendimento parece não requerer qualquer tipo de normatividade epistemológica que orientaria a organização das formações discursivas desse regime. Aliás, o que se visibilizou, efetivamente, foi que a construção dessa narrativa passa ao largo de qualquer discussão de viés teórico, filosófico ou epistemológico que seria oriunda do próprio terreno psi ou que esteja presente nas discussões que usualmente transpassam o campo da psicologia. O significativo empenho da psicologia em incorporar e acionar todo uma gramática jurídica-progressista – a exemplo das expressões explicitadas há pouco – mostra que esses conceitos, longe de guardarem ou mesmo de pretenderem guardar qualquer coerência teórica a um sistema de pensamento já existente e reconhecido, parecem se apresentar como uma ferramenta modular que, em termos pragmáticos, faz a psicologia acessar os espaços que pretende.
Em todo caso, embora exista um esforço para se fazer ver uma nova psicologia, descrevendo-se agora a partir de uma outra matriz de inteligibilidade que diz se apoiar no que há de mais progressista-humanitário na atualidade, convertendo-se até mesmo em uma espécie de solo primário de enunciação para a (re)formulação de suas práticas, tais processos, em última instância, parecem não serem suficientes para demarcar uma ruptura abissal em relação ao seu fazer anterior. Apesar de agora revestida por uma outra indumentária, sob muitos aspectos, o que parece ter se estabelecido foi muito mais uma atualização e recomposição de certas tendências, práticas e concepções que se diziam até então abandonadas e supostamente superadas. Dessa forma, ainda é possível verificar, por exemplo, considerações pautadas em cisões entre indivíduo/sociedade, que descolam a subjetividade da sua constituição histórica e culturalmente contingente; discussões que tomam o comportamento enquanto instância privilegiada de atuação do psicólogo, visando prioritariamente à mudança na conduta do indivíduo a partir de um repertório de valores, normas e preceitos previamente estabelecidos; assim como também a adoção irrestrita de orientações éticas, teóricas e metodológicas conduzidas por um tipo de racionalidade alheia ao campo psi, prevalecendo até mesmo, em alguns momentos, sob o próprio referencial teórico específico da Psicologia.
Além disso, sublinha-se também o modo como certos eventos históricos são apropriados por essa construção discursiva, operando um recorte bastante particular que finda por reforçar, sob muitos aspectos, uma leitura que extrapola a narrativa que conecta o discurso psicológico ao da saúde, incidindo também na própria compreensão acerca do campo das práticas psi e no sentido de transmutá-las em direção a uma agenda transnacional cujas pautas são, parece-nos, mais uma vez exteriores àquelas postas pela psicologia e pelas práticas psi. Por meio desse horizonte narrativo, a psicologia passa a ser delineada, eminentemente, por interesses nobres, acontecimentos épicos, avanços tecnológicos e constantes progressos conceituais que, justificados em grande medida por ideais humanitários, teriam possibilitado a evolução do conhecimento acerca da natureza humana e, consequentemente, a articulação da psicologia com a saúde. Assim, ao inscrever esse evento no interior de uma extensa tradição histórica, além de angariar credibilidade, a conexão entre psicologia e saúde consegue adquirir também contornos de mais um fato, entre vários outros, que passam a integrar um longo processo de iluminação gradual e progressiva. Um tipo de narrativa que realiza o feito de explicar a inevitabilidade de seu acontecimento, a justificativa de sua existência e, ainda, a promoção de seu futuro. Desse modo, sob a égide da tradição, escapa-se de esclarecer o enigma de sua emergência histórica, visto que, em vez de interrogar o porquê de esse evento acontecer somente agora, passa-se a aceitar e abonar que, mais cedo ou mais tarde, tal fato ocorreria – pois, diz-se, era somente uma questão de tempo. . .
Considerações Finais
Ao nos lançarmos em uma análise eminentemente discursiva, não se pode perder de vista as relações agonísticas presentes nessas materialidades, no sentido de entender que a efetivação dessas cartilhas consiste no efeito final que envolve toda uma arena de lutas – composta por vetores heterogêneos e confronto de forças – que estavam sendo travadas naquele momento. Ou seja, são fundamentalmente discursos em relação de força com outros discursos. Por conseguinte, convém advertir que, se existe uma narrativa que insiste em enunciar que o passado considerado funesto da psicologia no Brasil teria sido encerrado, ou, em certa medida, ultrapassado, ou mesmo que essa página teria sido finalmente virada, considerando a mudança da psicologia e a emergência de outros fazeres psi ancorados sempre pelas melhores intenções, talvez essa história com um final feliz que tanto nos contam seja tributária de mecanismos de poder em pleno exercício. Mecanismos estes que, sob o esteio do conhecimento científico tomado por verdadeiro e que diz dizer a verdade, repetem, incitam e aproximam enunciados, tornando-os, se não inseparáveis, ao menos um resultado de aparência inevitável ou incontornável do suposto progresso teórico a que estamos destinados. Entretanto, não pretendemos, com isso, anunciar que a tarefa de (re)pensar os discursos psicológicos teria fracassado, tampouco endossar que ela teria sido finalizada. Não se trata, a menos que queiramos fazer da atividade acadêmica uma atividade jurídica e transformar os textos que escrevemos em sentenças ou petições, de bater o martelo. Deixemos as decisões para aqueles que têm sede de conclusão, vontade de definição e inclinação pelos manuais.
Ao empreendermos este breve estudo de caráter arqueogenealógico com ênfase em uma análise das práticas discursivas (e, portanto, na arqueologia como atitude metodológica), não efetuamos uma vinculação mais direta, é verdade, com as noções de biopolítica, de racionalidade neoliberal, de dispositivos de segurança, de poder disciplinar ou mesmo de governo das populações – noções que constituem, para a grande análise foucaultiana, operadores fundamentais para os estudos genealógicos. Este empreendimento constituirá, portanto, objeto de um estudo que se apresentará no futuro. Por ora, nossa tarefa foi um pouco mais modesta: trata-se, somente, de rever, ver mais uma vez, ver de novo – e isso não para ver o novo, mas sim para que o ver novamente seja ao mesmo tempo uma forma de ver outramente. Cuidou-se, portanto, de frear o impulso discursivo que, movido pelo automatismo com que as palavras se ligam na composição dos discursos que articulam psicologia, saúde e políticas públicas, deslizava por sobre a superfície dos temas e objetos sem encontrar muita resistência. E o que é a resistência senão aquilo que faz o exercício do poder obrigar a reformular-se mais uma vez e, por reformular-se mais uma vez, expor-se e tornar-se mais susceptível a novas práticas de resistência?
Referências
Barros, J. P. P. (2014). Psicologia e políticas sociais. ECOS – Estudos Contemporâneos da Subjetividade, 4(1), 156-170.
Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas. (2008a). Referências técnicas para a atuação do(a) psicólogo(a) nos Programas de DST e aids. Brasília: CFP.
Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas. (2008b). Saúde do Trabalhador no âmbito da Saúde Pública: Referências para a atuação do(a) psicólogo(a). Brasília: CFP.
Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas. (2017). Conheça o CREPOP. Recuperado de http://twixar.me/l0TK
Conselho Federal de Psicologia. (2011). Senhoras e senhores gestores da saúde, como a Psicologia pode contribuir para o avanço do SUS. Brasília: CFP.
Conselho Federal de Psicologia. (2013a). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial. Brasília: CFP.
Conselho Federal de Psicologia. (2013b). Referências técnicas para a atuação de psicólogas/os em políticas públicas de álcool e outras drogas. Brasília: CFP.
Conselho Federal de Psicologia. (2016). Resolução CFP n. 3 (5 de fevereiro). Altera a Resolução CFP n. 013/2007, que institui a Consolidação das Resoluções relativas ao Título Profissional de Especialista em Psicologia e dispõe sobre as normas e procedimentos para seu registro. Recuperado de http://twixar.me/XdTK
Conselho Nacional de Saúde. (1997). Resolução CNS n. 218 (6 de março). Resolve reconhecer a Psicologia e outros como profissionais de saúde de nível superior. Recuperado de http://twixar.me/MGTK
Foucault, M. (1999). A ordem do discurso (5a ed.). São Paulo: Loyola.
Foucault, M. (2008). A arqueologia do saber (7a ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade (2a ed.). São Paulo: Martins Fontes.
Foucault, M. (2012). Microfísica do poder (30a ed.). Rio de Janeiro: Graal.
Passone, E. F. K., & Perez, J. R. R. (2013). Psicologia e análise de implementação de políticas públicas: Um diálogo interdisciplinar. Psicologia: Ciência e Profissão, 33(3), 612-629. doi:http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932013000300008
Prates, L. G., & Nunes, L. P. (2009). A (re)construção do lugar do psicólogo na saúde pública: Das quatro paredes do centro de saúde para os lares. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 4(1), 96-101. Recuperado de http://twixar.me/r0TK
Schopke, R. (2004). Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. Rio de Janeiro: Contraponto Editora.
Recebido em: 09/04/2019
Última revisão: 30/09/2019
Aceite final: 14/10/2019
Sobre os autores:
Pablo Severiano Benevides: Pós-Doutor em Filosofia da Educação pela Universitat de Barcelona. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor adjunto III do Curso de Psicologia da UFC/Sobral − Setor de Estudos: Psicologia Social; professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC/Fortaleza − Linha de Pesquisa: Sujeito e Cultura na Sociedade Contemporânea. E-mail: pabloseverianobenevides@hotmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8168-7315
Adolfo Jesiel Siebra: Doutorando em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). E-mail: jesielsiebra@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-3591-2603
1 Endereço para contato: Av. da Universidade, 2762, Benfica, Fortaleza, CE, CEP: 60.020-180 – Área 2 do Centro de Humanidades, Bl. Didático Prof. Ícaro de Sousa Moreira, Laboratório LAPSUS. Telefone: (85) 3366-7723 / 3366-7722. E-mail: pabloseverianobenevides@hotmail.com
doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v13i1.973